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Processo n.º 394/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal ConstitucionalI – Relatório1. A. e B., Recorrentes nos autos, impugnaram judicialmente as decisões do Conselho Directivo da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), ora Recorrida, através das quais foi indeferida a arguição de nulidade, por eles interposta, do processo de contra-ordenação em que são arguidos.
Nas alegações de recurso para o Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, os Recorrentes pediram a revogação das decisões proferidas pela autoridade administrativa e a declaração de nulidade decorrente da falta, na notificação a que alude o artigo 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), de enunciação/identificação dos elementos de prova em que o Conselho Directivo da CMVM se fundamentou para considerar provados os factos enunciados na acusação que lhes foi notificada.
A CMVM apresentou resposta, pugnando pela manutenção das decisões por considerar não ter havido violação do disposto no citado artigo 50.º do RGCO.
2. Tendo visto a sua pretensão negada pelo Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, interpõem agora recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional).
Notificados para produzir alegações, concluíram os Recorrentes nos seguintes termos:
“A questão que se coloca nos presentes autos é a de saber se a interpretação do artigo 50.° do RGCO, no sentido de esta disposição permitir que a notificação do Arguido para se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada não inclua qualquer enunciação/identificação dos concretos elementos de prova nos quais se alicerça o juízo de indiciação dos factos, viola o disposto nos artigos 32.° n.°10 e 267.° n.°5 da Constituição da República Portuguesa.
O artigo 32.° n.° 10 da Constituição da República Portuguesa consagra que nos processos de contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa, sendo, assim, absolutamente proibida a aplicação de qualquer coima ou sanção acessória sem que ao Arguido seja garantida a possibilidade de se defender.
III. A reconhecida inexigibilidade de estrita equiparação entre o ilícito contraordenacional e o ilícito criminal e respectivos processos é conciliável com a necessidade de serem observados certos princípios comuns, designadamente o princípio do contraditório que deverá ser aplicado logo na fase administrativa do processo de contra-ordenação (Acórdão n.° 659/2006).
IV. Há, assim, nos processos sancionatórios, um núcleo essencial e intocável de respeito pelo princípio do contraditório que impede a prolação de decisão sem ter sido dada ao Arguido a oportunidade de ‘discutir, contestar e valorar’ (Acórdão n.° 278/99).
V. O princípio do contraditório abrange o direito de o Arguido intervir e de se pronunciar quanto a todos os elementos de prova e argumentos jurídicos trazidos ao processo, influindo ‘em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão’ (Jorge Miranda, Obra Citada, pág. 194).
VI. É garantida às partes a possibilidade de apresentarem as suas razões, ofereceram provas, controlarem as oferecidas pelas outras partes e pronunciarem-se sobre umas e outras (Acórdão n.° 278/99), por forma a exercerem uma influência efectiva no desenvolvimento do processo.
VII. Visa este princípio atribuir ao Arguido a oportunidade de tomar posição, a todo o momento, sobre o material que possa ser feito valer processualmente contra si.
VIII. O direito de participação do interessado nas decisões que lhe digam respeito, consagrado no artigo 267.° n.°5 da Constituição da República Portuguesa, assume, no processo contra-ordenacional, quanto ao Arguido, a modalidade qualificada de direito de audiência e defesa (Acórdãos n.° 594/2008 e 499/2009).
IX. Este direito de participação, que visa proporcionar ao Arguido a possibilidade efectiva de se pronunciar sobre todas as questões a ponderar na decisão final, exige que, para tal desiderato, ‘o interessado tenha sido colocado em posição de fazer valer perante o órgão decisor a sua perspectiva sobre todos os elementos do procedimento (de direito ou de facto) que sejam relevantes para a decisão’ (Acórdão n.° 499/2009)
X. Assim, dos direitos de audiência, defesa e participação do Arguido, tal como constitucionalmente consagrados, resulta que lhe deve ser garantida a possibilidade de expor o seu ponto de vista quanto às acusações que lhe são feitas, pronunciando-se sobre todas as questões relevantes para o processo, participando activamente na formação da decisão final.
XI. O legislador ordinário chamado a concretizar aqueles direitos, no que concerne à participação do arguido na fase administrativa do processo contra-ordenacional, estabeleceu, no artigo 50.° do RGCO, que lhe deve ser conferida a possibilidade de se pronunciar contra a contra-ordenação que lhe é imputada, o que, como esclarecido no Assento 1/2003, se traduz na ‘oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo.’
XII. Num processo regido pela princípio do contraditório e pela igualdade de partes, todas devem ser chamadas a colaborar, em condições de igualdade, no processo de formação da decisão, assumindo este aspecto particular acuidade no que concerne ao Arguido, atenta a sua relação de imediação com os factos e, consequentemente, a sua posição privilegiada para esclarecer a verdade material.
XIII. Assim, com o direito de audição e defesa previsto no artigo 50.° do RGCO pretende-se atribuir ao Arguido a possibilidade de efectuar uma intervenção útil no processo, emitindo uma declaração processualmente relevante (Acórdão n.° 442/2003).
Mas
XIV. Desconhecendo o Arguido os elementos concretos que irão ser considerados na decisão final, naturalmente fica precludida a sua possibilidade de influir no conteúdo da mesma.
XV. Assim, a autoridade administrativa, ao notificar o Arguido para exercer o direito de audição deve ‘fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito’ (Assento n.° 1/2003).
XVI. De modo a que aquele sujeito processual possa ‘pronunciar-se sobre o objecto do procedimento conhecendo todos os dados que a lei considera relevantes para a formação da decisão’, e tal como o procedimento ‘se apresenta à entidade competente para a decisão final’ (Parecer da Procuradoria Geral da República de 14/02/2002).
XVII. Concretamente, deve ser-lhe conferida a ‘possibilidade de estes apontarem razões e fundamentos, quer de facto quer de direito, que invalidem o caminho que a Administração intenta percorrer e levem a que outro seja o sentido da decisão.’ (Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 30 de Janeiro de 2008, processo 00195/02)
XVIII. Sendo também de salientar que o direito de audiência se traduz numa das manifestações do princípio da transparência do procedimento, já que, ao impor à autoridade administrativa que transmita ao interessado os elementos que reporta relevantes para a decisão a tomar, confere-se àquele a possibilidade de, preventivamente, controlar a actividade da Administração.
XIX. Devem, pois, ser facultados ao Arguido os elementos necessários para que este apreenda os dados que serão considerados na decisão final e, bem assim, a posição da autoridade administrativa quanto aos mesmos (já que é o entendimento desta, no sentido de imputação ao Arguido de responsabilidade contra-ordenacional, que este sujeito processual visa contrariar).
XX. Apenas assim fica o Arguido habilitado a exercer os direitos de audiência, defesa e participação com a amplitude que são constitucionalmente consagrados.
Ora,
XXI. ‘Os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão’ não podem deixar de ser entendidos como os elementos que são ponderados na elaboração de tal decisão e que influenciam o sentido desta.
XXII. Já que se o objectivo é o de colocar o Arguido em posição de fazer valer a sua perspectiva sobre todos os aspectos do procedimento (de direito ou de facto) que sejam pertinentes para a decisão, devem ser-lhe transmitidos os dados necessários a avaliar os elementos que, obrigatoriamente, e por força da lei, integram aquela decisão.
XXIII. A autoridade administrativa é a única entidade que, até à notificação a que alude o artigo 50.° do RGCO, tomou contacto com o processo, trouxe elementos para o mesmo, e tomou posição sobre estes, determinando os que são importantes para efeitos de imputação dos factos constitutivos das contra-ordenações ao Arguido.
XXIV. E é o ponto de vista da autoridade administrativa, exarado no projecto de decisão (condenatório) que o Arguido visa rebater.
XXV. Consequentemente, devem ser apresentados ao Arguido os elementos relevantes para a decisão tal como esta se apresentou perante a entidade que elaborou o projecto de decisão (e que é também competente para a decisão final).
XXVI. Entendendo-se que ‘só com a indicação dos elementos relevantes que suportam a projectada decisão se pode considerar rigorosa e satisfatoriamente cumprida a formalidade da audiência prévia.’ (Acórdão do STA de 08 de Julho de 2010, processo 040/10) e que sobre a Administração recai a ‘obrigação de promover a audiência dos interessados, devendo informá-los não só sobre o ‘sentido provável’ da decisão, como ainda dos aspectos relevantes nas ‘matérias de facto e de direito’ em que se fundamenta o projecto ou proposta de decisão.’ (Acórdão do STA de 9 de Outubro de 2008, processo 0122/08).
XXVII. É, de todo, inviável/impossível uma participação efectiva dos interessados no processo de elaboração da decisão a que alude o art. 58° do RGCO, a qual terá obrigatoriamente a indicação das provas obtidas, quando não lhes é fornecida, para tal desiderato, nem a enunciação nem a identificação dos elementos concretos de prova em que se alicerça o projecto de decisão de facto.
XXVIII. Isto é, se a decisão final inclui, obrigatoriamente, a indicação das provas obtidas (isto é, os meios de prova que fundamentaram a convicção de que o Arguido praticou aqueles factos e não outros) e se o direito de participação e defesa do Arguido visa assegurar-lhe a possibilidade de participar na elaboração dessa decisão, então têm que ser transmitidas ao Arguido as provas na qual se baseou o projecto de decisão de facto.
XXIX. E não se pode concluir em sentido contrário pelo facto de a acusação em processo penal não exigira o indicação das provas já que, em primeiro lugar, a aplicação subsidiária deste diploma é feita de forma devidamente adoptada às especificidades do processo contra-ordenacional (artigo 41.º n.° 1 do RGCO), atenta a sua distinta natureza e efeitos, não sendo possível comparar a notificação para o direito de audição com o acusação em processo penal, ainda para mais quando, no regime jurídico das contra-ordenações , existem normas próprias que especificam qual o conteúdo do acto (artigo 50.° do RGCO).
XXX. Em segundo lugar, o acto que ‘vale’ como acusação no processo contraordenacional é a decisão a que alude o artigo 58° (artigo 62.° do RGCO).
XXXI. Por outro lado a exigência, no artigo 58.° do RGCO, de requisitos que não constam do artigo 283.° do CPP prende-se com a maior intervenção que o Arguido em processo contra-ordenacional tem na formação daquela decisão (já que, repete-se, o Arguido é chamado a pronunciar-se sobre o projecto de decisão, podendo contribuir activamente no processo de tomada da decisão) por comparação à participação do Arguido, em processo penal, na formação da decisão de acusação.
XXXII. Justificando-se, pois, que o Arguido em processo contra-ordenacional tenha o direito de apreender porque foi tomada uma decisão desconforme com os argumentos e elementos que trouxe aos autos no exercício do seu direito de defesa.
XXXIII. E, os requisitos ‘adicionais’ do artigo 58.° do RGCO também se motivam nas menores garantias de impugnação da decisão condenatória que são atribuídas ao Arguido em processo contra-ordenacional (que apenas pode recorrer da decisão judicial até ao Tribunal da Relação e só nos casos elencados no artigo 73.° do RGCO) por oposição às que são conferidas ao Arguido em processo penal face à acusação (pode requerer a abertura da instrução e recorrer da decisão judicial final até ao Supremo Tribunal de Justiça, com excepção dos casos previsto no artigo 400.° do CPP).
XXXIV. Porque o Arguido em processo de contra-ordenação tem menos possibilidades de contraditar a decisão que equivale à acusação do que o Arguido em processo penal (por não lhe ser conferido a possibilidade de requerer a abertura da instrução, e por apenas ter uma instância de recurso, e não sendo estas consideradas inconstitucionais (Acórdão 659/2006)), a lei atribui-lhe uma maior possibilidade de intervenção no processo de formação daquela decisão.
XXXV. Assim, sendo garantida ao Arguido em processo contra-ordenacional uma maior possibilidade de intervenção no processo de formação da decisão condenatório, para colmatar as menores oportunidades de reapreciação daquela, do facto do artigo 283.° do CPP não prever a indicação das provas obtidas não é possível extrair que a notificação para o exercício da defesa em processo de contra-ordenacão também não a tenha de conter.
Acresce que
XXXVI. A própria possibilidade de impugnação dos factos indiciados fica comprometida com a omissão da identificação dos meios de prova que fundamentam a indiciação.
XXXVII. O juízo de indiciação dos factos é indissociável dos meios de prova que o sustentam.
XXXVIII. Não é possível sindicar ou avaliar a lógica e legalidade de qualificação de determinados factos como indiciados sem possibilidade de conhecer quais os meios de prova concretos que levaram à decisão de qualificação como provados.
XXXIX. A plena compreensão dos factos imputados ao Arguido implica, pois, a enunciação das provas concretas em que aqueles se alicerçam.
XL. Para se impugnar a factualidade considerada indiciada, pode o interessado, para além de negar directamente a prática do facto, usar diversos meios que a lei lhe faculta: alegar que o facto não se extrai dos meios de prova que a autoridade administrativa considerou ou defender que existem outros meios de prova que o contraria.
XLI. A impugnação de um meio de prova pode ter como consequência o afastamento de um facto que fundamentava a imputação do ilícito.
Ora
XLII. Desconhecendo quais os concretos meios de prova em que se fundamentou a autoridade administrativa não pode o Arguido discuti-los, contesta-los ou apresentar outros que afastem a valoração daqueles (sendo estes os actos nos quais se traduz a impugnação de factos — artigo 412.° n.°3 do CPP).
XLIII. Isto é, desconhecendo as razões da Administração, o Arguido, na audiência prévia, não poderá contra-argumentar eficazmente (Diogo Freitas Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 320).
XLIV. Cerceia-se, pois, o direito do Arguido de contraditar as acusações que lhe são dirigidas, pronunciando-se sobre o entendimento da Administração de que certos factos (e apenas e só aqueles factos) estão indiciados.
XLV. E o próprio direito de se pronunciar sobre as provas produzidas pela outra parte, já que o interesse do Arguido não é o de manifestar a sua posição sobre todas as provas existentes, mas apenas sobre aquelas que fundamentam o projecto da decisão de facto.
XLVI. É que, atenta a identidade entre a entidade instrutora e a entidade decisora, entendendo esta, aquando da elaboração do projecto de decisão, que os factos típicos resultam demonstrados através de certas provas, com toda a probabilidade concluirá no mesmo sentido na decisão final.
XLVII. O direito de oferecer prova e/ou requerer diligências probatórias complementares (com o que se visa contrariar os meios de prova nos quais se baseia o projecto de decisão) também fica, naturalmente, comprometido com a falta de indicação destas.
XLVIII. Acresce que o direito do Arguido a pronunciar-se sobre todas as questões relevantes para a decisão final abrange também a faculdade de arguir os vícios processuais que entenda praticados, designadamente as ilegalidades de prova (artigos 124.° e seguintes do CPP).
XLIX. É que se um dado meio de prova for julgado inadmissível ou ilegal, os factos que se julgavam provados (ou, neste caso, indiciados) através do mesmo, quando não sustentados em outras provas, terão que ser considerados não provados.
L. O exercício desta faculdade também fica impossibilitado perante a omissão da identificação das provas pertinentes para o projecto da decisão de facto.
LI. Assim, a falta de enunciação dos meios de prova impossibilita o exercício das faculdades de impugnar a matéria de facto, controlar a produção de prova e, designadamente, a legalidade desta, apresentar provas ou requerer diligências complementares e pronunciar-se sobre todas as questões relevantes para a decisão da causa, as quais estão abrangidas no direito de contraditório e participação, tal como constitucionalmente consagrados (Acórdãos n.° 278/99 e 499/2009).
LII. Em suma, aquela omissão impede o Arguido de, através do exercício do seu direito de audiência e defesa, emitir uma declaração processualmente útil, influindo no processo de formação da decisão final.
LIII. Pelo que tal interpretação do artigo 50.° do RGCO, que visa concretizar, no plano ordinário, aqueles direitos, viola o disposto nos artigos 32.° n.°10 e 267.° n.°5 da Constituição da República Portuguesa.
Acresce que
LIV. Os direitos de audiência, defesa e participação do arguido em processo contraordenacional têm como contra-ponto necessário o dever de pronúncia da autoridade administrativa sobre as questões pertinentes suscitadas.
LV. Não pode a autoridade administrativa, na decisão final, abster-se de efectuar qualquer apreciação das declarações do Arguido, baseando-se apenas nos elementos que foram carreados ao processo pela acusação, sob pena de se ‘esvaziar’ o conteúdo do direito de defesa.
LVI. A decisão final, no qual não sejam apreciados os factos relevantes invocados pelo arguido em sede de direito de defesa é, assim nula, por omissão de pronúncia (artigo 379.° n.°1 al. c) do CPP e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14- 04-2010).
LVII. De igual forma, é nulo, por insuficiência de inquérito, o processo no qual não se procedam às diligências probatórias pertinentes solicitadas pelo Arguido (Acórdãos do TRP de 04 de Julho de 2007, processo 0711709 e do TRC 16 de Novembro de 2006 (processo 666/05.TTMR.C 1).
LVIII. O exercício do direito de audiência, defesa e participação pelo Arguido não é, pois, um acto meramente formal que careça de efeito útil, já que a autoridade administrativa está obrigada a considerar os argumentos relevantes invocados por aquele sujeito processual.
LIX. Como o ponto de vista do Arguido influi (ou deve influir) na decisão final, apresenta-se como premente que lhe sejam facultados os elementos necessários a efectuar uma declaração esclarecida e esclarecedora.
LX. Mostrando-se a enunciação e identificação das provas em que assenta a matéria de facto como essencial para o exercício do contraditório, o direito de defesa, audiência e participação impõe a divulgação daqueles elementos.
Para mais
LXI. O direito ao contraditório apresenta-se, também, como uma das decorrências do princípio da igualdade de armas, determinando que a todas as partes sejam atribuídas iguais oportunidades de intervenção no processo.
LXII. Mesmo quando os sujeitos têm posições no processo que não são equiparáveis, as diferentes soluções não podem ser ‘arbitrárias, irrazoáveis ou infundadas’ (Acórdãos n.° 516/94, 616/98, 688/98 e 153/02).
LXIII. A interpretação do artigo 50.° do RGCO efectuada na sentença recorrida leva a que se admita que o Arguido tenha de se pronunciar (e contraditar) o projecto de decisão de facto da autoridade administrativa sem conhecer a base em que aquele se alicerça.
LXIV. Mas a autoridade administrativa, na decisão final, ao pronunciar-se sobre a posição defendida pelo Arguido, sabe em que elementos aquele fundou o seu ponto de vista sobre o processo (por este os enunciar, juntar ou requerer a sua produção no âmbito do exercício do direito de audiência).
LXV. Inexiste qualquer razão que justifique esta diversidade de tratamentos uma vez que a mesma impede os Arguidos de exercerem, cabalmente, o seu direito fundamental de defesa.
LXVI. Assim, a interpretação do tribunal a quo, por implicar a atribuição de oportunidades desiguais arbitrárias de intervenção no processo, também viola os direitos constitucionais de defesa, audiência e participação.
Posto isto
LXVII. O direito do Arguido a consultar os autos não permite que este se aperceba de quais os elementos de prova relevantes.
LXVIII. Já que o que importa para a resposta do Arguido são os elementos de prova que a autoridade administrativa entendeu serem relevantes para o projecto de decisão, e não os elementos de prova juntos em processo que, em abstracto, possam ser relevantes.
LXIX. Com efeito, o que o Arguido visa demonstrar (no que concerne à impugnação de facto) é que dos elementos considerados pela autoridade administrativa não resulta a verificação dos factos que lhe foram imputados
LXX. Tal objectivo que não é atingido através do mero acesso aos autos, pois o Arguido vê-se confrontado com uma multiplicidade de meios de prova e documentos, não lhe sendo possível discernir qual ou quais os considerados relevantes pela autoridade administrativa.
LXXI. A imposição à autoridade administrativa do dever de transmitir ao Arguido apenas os elementos relevantes visa, precisamente, que esta possa aperceber-se, facilmente, dos elementos necessários para a sua defesa (José Manuel Santos Botelho, Obra citada. pág. 402 e 403).
LXXII. É incomportável o ónus de o Arguido ter de ‘adivinhar’ quais os elementos que a autoridade administrativa reputou pertinentes.
LXXIII. Bem como o de lhe impor a análise e contradição de todos os documentos e demais meios de prova carreados nos autos.
LXXIV. (Mais é de realçar que tal ónus é particularmente gravoso no processo em análise nos presentes autos já que este, no momento de notificação dos Arguidos para o exercício do direito de defesa, se componha por mais de 1000 páginas).
LXXV. Por outro lado, não é concessão de prazo maior ou menor para o exercício do direito de defesa que permite aos Arguidos, face à total omissão de identificação das provas considerados relevantes, proceder à sua identificação entre todos os documentos juntos aos autos.
LXXVI. Omitindo a autoridade administrativa a identificação/enunciação dos meios de prova nos quais se alicerçou o projecto da decisão de facto, o mero acesso aos autos não habilita o Arguido a exercer, de forma efectiva, o seu direito de defesa e participação.
LXXVII. Do que se conclui, pois, que a interpretação do artigo 50.° do RGCO no sentido de permitir que a notificação do Arguido para se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada não inclua qualquer enunciação dos elementos de prova nos quais se alicerça o juízo de indiciação dos factos, viola o disposto nos artigos 32.° n.°10 e 267.° n.°5 da Constituição da República Portuguesa,
LXXVIII. Deve, pois, ser declarada a inconstitucionalidade da norma indicada na interpretação da sentença recorrida e, em consequência, ser ordenada a revogação da mesma e a sua substituição por outra que aplique o artigo 50.° do RGCO num sentido conforme com a Constituição da República Portuguesa, com o que se fará JUSTIÇA.”
3. Os Recorridos Ministério Público e CMVM contra-alegaram, pugnando pela não verificação de qualquer inconstitucionalidade.
Concluiu o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal que:
“1.º A menor ressonância ética do ilícito contra-ordenacional subtrai-o, também, às mais rigorosas exigências de aplicação das garantias do processo criminal, como se extrai da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, que apenas assegura, no âmbito do processo contra-ordenacional, os direitos de audiência e de defesa do arguido.
2.º A norma cuja interpretação vem questionada, art.º 50.º do RGCO, apenas proíbe a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção (ou sanções) em que incorre, ou seja, de contraditar os factos e o seu enquadramento jurídico.
3.º Efectivamente, a autoridade administrativa, no momento do cumprimento do art.º 50.º do RGCO, não tem que explicar porque motivo considera indiciados os factos. Tal obrigação surge apenas se decidir condenar os arguidos pela prática de contra-ordenação, nos termos do art.º 58.º do RGCO.
4.º Conforme jurisprudência constante deste Tribunal Constitucional, no que respeita ao princípio do contraditório, a sua violação só ocorre quando as partes ficarem impossibilitadas de controlar, de responder, às questões colocadas ou suscitadas no processo.
5.º A Constituição, no n.º 5 do art.º 32.º, preocupa-se expressamente com a estrutura da audiência de julgamento em sede de processo penal. Assim, é na audiência de julgamento, estritamente ligada à garantia dos direitos de defesa, em especial ao direito do contraditório, que o arguido pode discutir todos os factos e questões colocadas no processo, contraditar todos os elementos de prova e os argumentos jurídicos trazidos aos autos.
6.º Mas, ressalvado esse núcleo essencial e intocável, que impede a prolação da decisão sem ter sido dada ao arguido a oportunidade de discutir e contestar os factos que lhe são imputados e respectiva qualificação jurídica, não existe um espartilho constitucional formal que não tolere certa maleabilização do exercício do contraditório (cfr. Ac. n.º 278/99).
7.º Não afronta, assim, o conteúdo e extensão dos direitos de defesa e audiência do arguido, no âmbito dos ilícitos contra-ordenacionais, tal como constitucionalmente garantidos, nomeadamente pelos artigos 32.º, n.º 10 e 267.º, n.º 5, da Lei Fundamental, a interpretação questionada de que não padece de nulidade a notificação efectuada aos arguidos, nos termos e para os efeitos do art.º 50.º do RGCO, desacompanhada de indicação das provas em que se baseia a contra-ordenação que lhes é imputada.
8.º Aliás, os arguidos não foram impedidos de, atempadamente, nessa mesma fase procedimental, aceder ao processo contra-ordenacional, conhecer o acervo probatório reunido pela CMVM, ser ouvidos, apresentar novas provas e de requerer a realização de diligências, ou seja, de participar na decisão.
9. Pelo que, deve ser negado provimento ao presente recurso.”
4. Por sua vez, a CMVM concluiu as suas contra-alegações do seguinte modo:
“1.ª A não indicação/enunciação das provas que sustentam os factos imputados ao arguido quando da sua notificação para pronúncia e exercício do direito de defesa em processo de contra-ordenação não merece qualquer censura no plano constitucional.
Sentido geral das alegações dos recorrentes e sua improcedência.
2.ª As normas invocadas pelos recorrentes não consagram o direito a que estes se arrogam e o exaustivo trabalho heurístico evidenciado pelos recorrentes apenas logra demonstrar que não existe doutrina nem jurisprudência que, no plano legal ou constitucional, defenda que em processo de contra-ordenação é, ou deva ser, obrigatória a indicação/enunciação dos elementos de prova em que se alicerça a notificação para que o arguido se pronuncie sobre a contra-ordenação imputada.
3.ª Os recorrentes só se permitem afirmar o contrário porquanto (i) não seguem a jurisprudência Constitucional, nem sequer a que invocam, e porque, para além disso, (ii) permitem-se exigir mais, do ponto de vista constitucional, para a acusação em processo contra-ordenacional do que para a acusação — ou, mesmo, para a decisão instrutória que pronuncie o arguido — em processo penal, o que se traduz numa contradição valorativa inaceitável, e ainda porque (iii) chamam à colação normas e princípios (inaplicáveis) relativos aos direitos dos administrados, que além do mais interpretam de forma indevida.
Com efeito:
Conteúdo constitucional do direito de defesa do arguido em processo de contra-ordenação e a improcedência do argumentário dos recorrentes.
4.ª O Tribunal Constitucional vem entendendo reiteradamente (cf. Acórdãos n.°s 99/2009, 405/2009, 643/2009 e muito recentemente, de forma mais breve, o Acórdão 301/2011) que:
(i) os princípios constitucionais próprios do processo criminal não são aplicáveis directa e globalmente aos processos de contra-ordenação;
(ii) as garantias conferidas aos processos de contra-ordenação não são equivalentes ou equiparáveis às asseguradas no âmbito de um processo criminal; e que
(iii) dos direitos de audiência e defesa, previstos no artigo 32.°/10 da Constituição, extrai-se o direito ao contraditório prévio à decisão que implica a comunicação, descrição e caracterização dos factos que são imputados ao arguido.
5.ª Por sua vez, na concretização do direito ao contraditório, o Tribunal Constitucional vem defendendo que o legislador ordinário dispõe de margem de conformação suficiente para plasticizar o princípio do contraditório que vigora no processo penal, e que esse poder de conformação é ainda mais aberto no domínio das contra-ordenações (v.g. Acórdãos n.°s 133/92 e 278/99).
6.ª O que significa que a Constituição, no que respeita ao processo de contra-ordenação, assegura genericamente o direito ao contraditório mas, até porque permite grande maleabilidade ao legislador ordinário, não impõe este direito de forma rígida, nem especialmente exigente ou intensa.
7.ª Deste modo de concretizar as garantias de defesa em processo de contra-ordenação manifestamente não decorre, ao contrário do que alegam os recorrentes, a inconstitucionalidade do artigo 50.° do RGCORD, na interpretação que vem questionada. Pelo contrário, a letra e a interpretação que é feita do disposto no artigo 50.° do RGCORD está em perfeita sintonia com as garantias constitucionais.
8.ª Tanto mais que da jurisprudência constitucional decorrem indicadores claros de que o Tribunal Constitucional entende que a Constituição não impõe que em processo de contra-ordenação a ‘acusação’ identifique/evidencie especificadamente as provas em se alicerça: v.g. o Acórdão n.° 643/2009 no qual o Tribunal Constitucional não considera existir uma exigência constitucional de no ‘despacho de promoção do processo’ (que, nos processos de contra-ordenação para cuja aplicação de coimas é competente o próprio Tribunal Constitucional, equivalerá à ‘acusação’ nos processos de contra-ordenação da competência da CMVM) serem desde logo indicados os concretos elementos de prova que, na perspectiva do Ministério Público, serviram de base a cada um dos concretos factos que são indiciariamente imputados ao arguido. Decisivo é que com a promoção da acusação todos os elementos de prova constantes dos autos fiquem acessíveis ao arguido, em termos de poderem ser controvertidos e contraditados pela defesa.
9.ª O artigo 32.°/10 da Constituição não tem implícita a dimensão normativa pretendida pelos recorrentes, como inequivocamente revela o facto de a norma ter sido objecto de aceso debate quando da revisão constitucional de 1989 e nunca ter sido equacionada a exigência que os recorrentes fazem. Soluções mais amplas do que a que ficou consagrada naquela norma foram claramente rejeitadas pelos parlamentares.
10.ª Por outro lado, os recorrentes, ao reconhecerem explicitamente que aquela identificação/enunciação não é exigível na acusação em processo-crime e, ao mesmo tempo, ao exigirem-na em processo de contra-ordenação (v.g. p. 34 e conclusão XXXI das alegações), estão a inverter completamente o sentido tradicional — e correcto — da discussão e a contrariar jurisprudência constitucional expressa (cf. Acórdãos n.°s 99/2009, 405/2009 e 643/2009).
11.ª A aceitação da tese dos recorrentes implicaria a criação de um desequilíbrio contrário ao que é pressuposto e exigido pela axiologia constitucional, em desrespeito pelo equilíbrio sistemático externo.
12.ª Acresce, em todo o caso, que não é verdade que aos arguidos em processo de contra-ordenação não sejam conferidos direitos de reacção homólogos aos previstos para os processos-crime. Pelo que nenhuma razão existe que justifique aquela inadmissível inversão da hierarquia constitucional entre processo criminal e processo de contra-ordenação.
13.ª Aliás, convolando-se a decisão final condenatória no processo de contra-ordenação, em caso de impugnação judicial, em acusação por via da apresentação dos autos ao Tribunal pelo Ministério Público, o que se constata é que a possibilidade de influenciar o acto que introduz os factos em juízo é muito maior em processo de contra-ordenação do que no processo penal — pelo que o arguido em processo de contra-ordenação acaba na verdade por ver efectivado o seu direito de defesa de uma forma mais intensa do que acontece no processo criminal.
14.ª A pretensão dos recorrentes de importar para a acusação em processo de contra-ordenação exigências que o legislador apenas faz para a decisão final condenatória desrespeita por completo a diferença entre imputar indiciariamente antes de decidir e decidir de forma fundamentada depois de ouvir o arguido, fazendo tábua rasa do equilíbrio sistemático interno do processo de contra-ordenação.
15.ª Para além de não encontrar abrigo na letra nem na ratio do artigo 50.° do RGCORD, a pretensão dos recorrentes é também contrariada pelos antecedentes históricos da norma: uma vez que tanto a Lei n.° 13/95, de 5 de Maio, que autorizou a alteração do RGCORD de 1995, como o Decreto-Lei n.° 244/95, de 14 de Setembro, que a promoveu e que deu a actual redacção ao artigo 50.°, declaram expressamente o propósito de clarificar, de explicitar mais rigorosamente os direitos fundamentais de audiência e defesa do arguido, não se pode pretender afirmar uma exigência (indicação da prova na acusação) que nunca foi equacionada.
16.ª Analisados diplomas sectoriais em que o legislador decidiu regular o conteúdo da acusação em processo de contra-ordenação (o que não aconteceu no Direito dos Valores Mobiliários), constata-se que nenhum deles exige que o acto contenha qualquer enunciação das provas que permitiram a indiciação dos factos, não havendo pois qualquer apoio normativo para a exigência que os recorrentes querem impor à acusação. O mesmo ocorre no âmbito do Direito disciplinar público.
17.ª A solução proposta pelos recorrentes é verdadeiramente contra legem, pelo que a sua pretensão é ilegítima a todos os títulos: a imposição de uma conduta à autoridade administrativa sem base legal, sob pena de invalidade, viola frontalmente os princípios da legalidade e da tipicidade dos vícios processuais, redundando no verdadeiro arbítrio, que não se pode aceitar.
Improcedência do alegado em torno do direito de participação dos administrados
18.ª Os recorrentes convocam para os autos o artigo 267.°/5 da Constituição e normas do Código do Procedimento Administrativo que, em rigor, no que importa para o presente recurso, nem sequer são aplicáveis — como decorre da lei (maxime do artigo 41.°/1 do RGCORD) e da doutrina, e generalizadamente os Tribunais vêm decidindo.
19.ª Em qualquer caso, mesmo à luz da jurisprudência administrativista invocada, a ausência de identificação/evidenciação dos concretos elementos de prova na ‘acusação’ não conduz a qualquer violação legal ou constitucional. Sendo (como os recorrentes reconhecem) o direito de audiência e defesa consagrado no artigo 32.°/10 da Constituição uma modalidade qualificada do direito de participação consagrado no artigo 267.°/5, a interpretação do artigo 50.° do RGCORIJ no sentido de que não é necessária a identificação/enunciação das provas que indiciam os factos imputados na notificação ao arguido para que este se pronuncie sobre as contra-ordenações de que é acusado, não violando a primeira norma, não constitui, por maioria de razão, ofensa à última.
Da realização do direito de defesa por via da consulta dos autos.
20.ª Notificado da ‘acusação’ o arguido fica a conhecer, através de descrição sequencial, narrativamente orientada e espácio-temporalmente circunstanciada, os factos e o enquadramento jurídico da contra-ordenação que lhe é imputada. Por outro lado, toda a prova que pode indiciariamente ‘incriminar’ o arguido tem de constar dos autos.
21.ª Pelo que a consulta dos autos — tarefa indissociável do exercício do direito de defesa — permite ao arguido, e ao seu defensor, tomar conhecimento de todos os elementos de que ‘órgão de acusação’ dispõe e, por conseguinte, verificar em que elementos se baseia a ‘acusação’. Permite, ainda, à Defesa controlar a licitude ou regularidade das provas obtidas porquanto as mesmas constam dos autos consultáveis (no mesmo sentido vide p. 7 a 9 da sentença recorrida). Assim é também no processo penal.
22.ª É contestando os factos descritos na ‘acusação’ e o seu enquadramento jurídico e controlando, contraditando e refutando a prova constante dos autos, que pôde consultar e que sustenta a ‘acusação’, que o arguido se pode defender, influenciando a decisão final.
23.ª Os recorrentes só se permitem afirmar o contrário porquanto querem exigir que a autoridade administrativa esteja obrigada a proceder, logo na ‘acusação’, à explicação das razões pelas quais entendem que de determinados documentos ou outros meios de prova se extraem (indiciariamente) factos que podem implicar responsabilidades infraccionais — pretensão que é, a todos os títulos, ilegítima, como os próprios recorrentes acabam por reconhecer.
24.ª Não tem sentido obrigar a autoridade a administrativa a fundamentar algo que está meramente indiciado (cf. p. 8 da sentença recorrida). Até porque, pela própria natureza das coisas, é perfeitamente incomportável exigir tamanha tarefa à notificação para pronúncia num processo de contra-ordenação. Note-se que, em nem processo penal, expoente máximo das garantias dos arguidos, a acusação tem de satisfazer tal exigência, ficando reservado para a sentença o dever de fundamentação e de crítica da prova (cfr. artigos 283.° e 374.° do CPP).
25.ª A não identificação/enunciação das provas na notificação para o exercício do direito de defesa em processo contra-ordenacional não fere o princípio da igualdade de armas, que tem de ser entendido num contexto amplo da estrutura lógico-material global da acusação e da defesa e sua dialéctica e que tem de atender às diferentes posições (não equiparáveis) que cada sujeito processual assume.
26.ª Por último, as particularidades da concreta acusação notificada aos ora recorrentes e do processo de contra-ordenação em que foi deduzida não permitem qualquer dúvida de que foi plenamente garantido o direito de defesa dos arguidos perante aquela acusação por via do direito de acesso aos autos de contra-ordenação, pois: (i) a própria redacção dos factos na acusação evidencia que elementos de prova subjazeram à sua enunciação, e (ii) os recorrentes foram autores ou destinatários de grande parte da documentação integrada nos autos tudo isto evidenciando por excesso que nenhum esforço de adivinhação sobre a prova lhes é exigido.
27.ª Conclui-se que a interpretação do artigo 50.° do RGCORD questionada pelos recorrentes não é inconstitucional, por não violar qualquer norma da Constituição.”
Para além das suas contra-alegações, a CMVM pediu ainda a junção de dois pareceres aos autos, o primeiro de autoria conjunta de Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, e o segundo de Frederico de Lacerda da Costa Pinto.
O Recorrido Ministério Público pronunciou-se, igualmente, no sentido de não se verificar qualquer inconstitucionalidade.
Cumpre apreciar e decidir.
II – FundamentaçãoDo objecto do recurso5. A questão de constitucionalidade que vem colocada, nos presentes autos, consiste em saber se a interpretação do artigo 50.° do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), no sentido de esta disposição permitir que a notificação do arguido para se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada não inclua qualquer enunciação/identificação dos concretos elementos de prova nos quais se alicerça o juízo de indiciação dos factos, viola o disposto nos artigos 32.° n.°10 e 267.° n.°5 da Constituição da República Portuguesa.
O tribunal a quo e os Recorridos entendem que a não indicação/enunciação das provas que sustentam os factos imputados ao arguido quando da sua notificação para pronúncia e exercício do direito de defesa em processo de contra-ordenação não merece qualquer censura no plano constitucional.
Vejamos.
b) Análise do mérito do recurso6. O artigo 50.º do RGCO foi já apreciado por este Tribunal Constitucional. Embora estivesse, então, em análise, interpretação normativa diversa da que ora cumpre fiscalizar, os fundamentos que então foram apresentados são inteiramente transponíveis para a questão em apreço. Disse, então, este Tribunal, no acórdão n.º 278/99 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º 43, pp. 447 e ss.), o seguinte:
“No processo civil e como observou Manuel de Andrade, o direito a ser ouvido exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de apresentarem as suas razões, ofereceram provas, controlarem as oferecidas pelas outras partes e pronunciarem-se sobre umas e outras (cfr. Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1976, pág. 377).
É, no entanto, no processo criminal que o contraditório (e independentemente de se fazer valer no direito processual em geral, ao fim e ao cabo como corolário do direito de acesso à Justiça e aos Tribunais) assume a dignidade constitucional que o nº 5 do artigo 32º da CR lhe atribui. A preservação das garantias de defesa do arguido passa, nos parâmetros do Estado de Direito democrático, além do mais, pela observância do contraditório, de modo a que sempre possa ser dado conhecimento ao arguido da acusação que lhe é feita e se lhe dê oportunidade para dela se defender. A intangibilidade deste núcleo essencial compadece-se, no entanto, com a liberdade de conformação do legislador ordinário que, designadamente na estruturação das fases processuais anteriores ao julgamento, detém margem de liberdade suficiente para plasticizar o contraditório, sem prejuízo de a ele subordinar estritamente a audiência: aqui tem o princípio a sua máxima expressão (como decorre do nº 5 do artigo 32º citado), nessa fase podendo (e devendo) o arguido expor o seu ponto de vista quanto às imputações que lhe são feitas pela acusação, contraditar as provas contra si apresentadas, apresentar novas provas e pedir a realização de outras diligências e debater a questão de direito em causa (cfr. o acórdão deste Tribunal, nº 352/98 e, ainda, inter alia, os nºs. 133/92 e 172/92, publicados no Diário da República, II Série, de 14 de Julho de 1998, 24 de Julho e 18 de Setembro de 1992, respectivamente).
Ou seja, ressalvado esse núcleo intocável - que impede a prolação da decisão sem ter sido dada ao arguido a oportunidade de “discutir, contestar e valorar” (parecer nº 18/81 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 16ºvol., pág. 154) - não existe um espartilho constitucional formal que não tolere certa maleabilização do exercício do contraditório (como, de resto, e ao menos implicitamente, se retira de certos arestos do Tribunal como, v.g., os nºs. 1185/96 e 358/98, publicados no citado Diário, II Série, de 12 de Fevereiro de 1997 e 17 de Julho de 1998, respectivamente).
No domínio do processo contra-ordenacional, este Tribunal tem-se pronunciado no sentido de uma não estreita equiparação entre esse ilícito e o ilícito criminal (cfr. acórdão nº 158/92, citado), sem deixar, no entanto, de sublinhar ‘a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra-ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matérias de processo penal’, como se escreveu no acórdão nº 469/97, publicado no mesmo jornal oficial, II Série, de 16 de Outubro de 1997. Na verdade, a menor ressonância ética do ilícito contra-ordenacional subtrai-o às mais ‘rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal’ (Maria Fernanda Palma e Paulo Otero, ‘Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social’ in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol, XXXVII 2, 1996, pág. 564), o que não deixará de se reflectir no âmbito do contraditório.
De qualquer modo, desenvolvida a actividade sancionatória da Administração a montante do recurso para o tribunal comum e não impedida a recorrente de atempadamente, na própria fase procedimental onde ainda se não exercera o controlo jurisdicional, se fazer ouvir e se defender, a interpretação que o tribunal recorrido concedeu à norma do artigo 50º do Decreto-Lei nº 433/82 não se mostra colidente com o preceituado no nº 10 do artigo 32º da CR.
Com efeito, e como salienta o magistrado recorrido, não obstante a irregularidade advinda do lapso cometido - que, de resto, não foi arguida - a recorrente teve plena oportunidade de se defender, oralmente ou por escrito, o que, pura e simplesmente, não fez, quedando-se passivamente até ao julgamento (não obstante lhe ter sido nomeado patrono), só posteriormente tendo quebrado o seu silêncio.”
O Tribunal Constitucional tem vindo a salientar que, no domínio do processo contra-ordenacional, não se verifica uma estreita equiparação entre esse ilícito e o ilícito criminal, face à menor ressonância ética do primeiro, o que o subtrai às mais rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal.
7. A propósito da crescente aproximação do direito contra-ordenacional ao direito penal, Frederico de Lacerda da Costa Pinto salienta que o essencial é a existência de uma dogmática própria que podendo acolher os contributos da dogmática penal não se limite contudo a uma importação acrítica de regimes e figuras (Frederico Lacerda da Costa Pinto, in “O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidariedade da intervenção penal”, Direito Penal Económico e Europeu/Textos Doutrinários, p. 209 e segs).
Quanto ao direito de audição e defesa do arguido, Figueiredo Dias salienta o princípio do contraditório e da audiência, no sentido da “oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo (…)” (Direito Processual Penal, I, 1974, p. 153).
Com efeito, se «não é permitida a aplicação de uma coima [...] sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção [...] em que incorre» (artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações), a concretização da «forma» e do «prazo razoável» de se assegurar esse «direito de audição do arguido» não poderá prescindir dessa audiencia, já que «os preceitos reguladores do processo criminal» não prevêem uma «decisão condenatória», ao cabo do «inquérito».
8. Na situação em apreço, no que respeita ao princípio do contraditório, a sua violação só ocorreria quando as partes ficassem impossibilitadas de controlar, às questões colocadas ou suscitadas no processo, o que não sucedeu.
O artigo 50.º do RGCO apenas exige que sejam comunicados aos arguidos os factos que lhe são imputados, a respectiva qualificação jurídica e sanções que incorrem, não impondo que a aludida notificação contenha a alusão às provas tidas em conta pela autoridade administrativa e que sustentam a imputação que lhes é dirigida. No entanto, tais obrigações legais referem-se às comunicações que se podem ter como essenciais de modo a que seja assegurado o direito de defesa. Com efeito, sem o acesso a tais informações, não poderiam os arguidos lançar mão, em termos substantivos, das garantias de defesa previstas na Constituição.
Também o Assento n.º 1/2003 do STJ defendeu que a notificação efectuada à sombra do mencionado artigo 50.º, deve fornecer os elementos necessários para que o arguido fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, não se retirando, no entanto, de tal aresto a exigência de que tal notificação deva ser acompanhada da indicação das provas que sustentam a decisão da autoridade administrativa.
9. Saliente-se que, na situação em apreço, os arguidos não foram impedidos de aceder ao processo, consultando-o, tendo exercido o seu direito a serem ouvidos e a defenderem-se, donde se conclui, igualmente, pelo respeito do seu direito de defesa.
Tiveram, com efeito, a oportunidade de conhecer o material probatório reunido pela CMVM, de apresentar novos meios de prova ou de requerer diligências e de, naturalmente, participar na decisão que lhes dizia respeito.
Por esta via se conclui que foram salvaguardadas as garantias constitucionalmente prescritas para situações deste tipo. Qualquer conteúdo normativo no sentido de estipular a obrigatoriedade de, aquando da notificação ao arguido nos termos do artigo 50.º do RGCO, a autoridade administrativa dever proceder à enunciação/identificação dos concretos elementos de prova nos quais se alicerça o juízo de indiciação dos factos, não resulta dos parâmetros constitucionais aplicáveis, designadamente dos convocados artigos 32.° n.°10 e 267.° n.°5 da Constituição da República Portuguesa.
III – Decisão10. Nestes termos, acordam, na 1ª secção do Tribunal Constitucional, em julgar improcedente o recurso.
Custas pelos Recorrentes, fixando a taxa de justiça em 25 UCs.
Lisboa, 15 de Novembro de 2011.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Rui Manuel Moura Ramos.