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Processo n.º 621/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
O arguido A. recorreu do despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 2011, na parte em que não conheceu da arguição de nulidades suscitadas no Ponto III do requerimento para abertura de instrução.
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho proferido em 14 de Março de 2011, não admitiu o recurso.
O arguido interpôs recurso deste despacho para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, nos seguintes termos:
I– CRONOLOGIA
1º - No requerimento de abertura de instrução (RAI), apresentado em Dezembro de 2010, o recorrente arguiu, na parte III dessa peça processual, as seguintes nulidades:
i) a nulidade da acusação, porque se sustenta em escutas de conversas telefónicas nulas, uma vez que são nulas as intercepções efectuadas ao ora recorrente por terem, entretanto, sido destruídos produtos dessa natureza contra a sua vontade expressa, os quais foram julgados necessários para o exercício da sua defesa (cfr. nºs 121 a 123 do RAI).
ii) a nulidade dos actos decorrentes dos despachos do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 03/09/2009, 27/11/2009, 26/01/2010 e 18/06/2010, que produziram efeitos neste processo, porque não é admissível que o Presidente do STJ possa determinar num processo autónomo de outro – como aqui acontecia – a destruição de escutas telefónicas que foram ordenadas e validadas nesse outro processo pelo juiz competente (cfr. nº 58 a 63 do RAI).
iii) a nulidade desses despachos por incompetência do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, mesmo admitido a natureza que, por ele, foi atribuída ao que denominou de “extensão procedimental” (cf. nºs 64 a 76, 80 a 91 e 98 do RAI).
iv) a nulidade decorrente de a destruição de tais escutas/intercepções ter sido ordenada sem ter sido dado aos arguidos a possibilidade de se pronunciarem sobre esses actos, mesmo em relação ao recorrente que a isso expressamente se havia oposto – cfr. nºs 101 a 115 do RAI).
v) mesmo que assim se não entendesse, a nulidade de tais despachos por flagrante violação do preceito legal em que se fundam (art. 188º nº 6 do CPP – cfr. nºs 116 a 119 do RAI).
2º O Senhor Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal remeteu ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça o RAI do recorrente, para que este apreciasse as nulidades suscitadas na parte III de tal RAI, o que fez na esteira de promoção efectuada nesse sentido pelo Ministério Público.
3º Foi neste contexto que foi proferido, a 27 de Janeiro de 2011, o despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que não conhece das questões suscitadas pelo arguido nessa parte III do RAI.
4º Tal despacho, pelo qual se decide não conhecer as nulidades suscitadas pelo ora Recorrente no ponto III do RAI, funda-se no seguinte:
• por um lado, na circunstância de as comunicações que foram objecto dos despachos do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça não terem sido interceptadas de alvo que respeitasse ao arguido ora recorrente, uma vez que este não teve intervenção nessas comunicações, as quais, por isso, ser-lhe-iam completamente estranhas, tanto objectiva como subjectivamente [pelo que o Recorrente não teria legitimidade e interesse em agir quanto a tal arguição de nulidade];
• por outro lado, no facto de tais questões já terem sido decididas por despacho do Presidente do STJ, de 15 de Abril de 2010, transitado em julgado, o qual já teria julgado a falta de legitimidade e de interesse de agir do Recorrente.
5º Foi desse despacho que foi interposto recurso pelo arguido, que, na sua parte preambular – anterior à motivação do recurso –, dizia o seguinte:
A., arguido nos autos à margem indicados, notificado do despacho de V. Exa de 27 de Janeiro de 2011 – que não conheceu a arguição de nulidades suscitadas na parte III do seu requerimento de abertura de instrução –, o qual lhe foi notificado por determinação constante do despacho do Senhor Juiz de Instrução Criminal de 28 de Janeiro de 2011, nos termos de fax remetido a 31 de Janeiro de 2011, não se conformando, dele vem interpor recurso para a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do art. 11º nº 4-b) e 399º do C. P. P..
O recurso deve subir em separado, imediatamente e com efeito suspensivo, nos termos dos arts. 406º nº 2, 407º nº 1 e 408º nº 3 do C.P.P..
Desde já vai arguida a inconstitucionalidade do eventual entendimento normativo dado aos arts. 11º e 399º do C.P.P., devidamente conjugados, no sentido de que não há recurso para a Secção Criminal do STJ do despacho proferido pelo Presidente do STJ enquanto de juiz de instrução – no quadro das competências previstas no art. 11º nº 2-b) do C.P.P. –, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso que o art. 32º nº 1 da CRP consagra.
Vai também desde já arguida a inconstitucionalidade do eventual entendimento normativo dado ao art. 407º nº 1 do C.P.P., no sentido de que o recurso de despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, proferido ao abrigo do art. 11º nº 2-b) do C.P.P., na pendência de instrução na qual é suscitada a questão do acesso do arguido ao teor de escutas telefónicas para o efeito do exercício dos direitos consignados no art. 188º nº 8 do C.P.P., só sobe a final, por violação das garantias de defesa e do direito ao recurso que o art. 32º nº 1 da CRP consagra, bem como do direito a obter decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo, tal como está previsto no art. 20º nº 4 da CRP e no art. 6º da CEDH
6º E foi esse recurso que não foi admitido pelo despacho ora recorrido, com o fundamento em que o arguido não teria legitimidade e interesse em agir, pelo que o recurso seria inadmissível, com fundamento no art. 401º nº 1-b) e nº 2 do C.P.P..
7º Nesse mesmo despacho, que não admitiu o recurso com o fundamento supra assinalado, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça acrescentou ainda “como esclarecimento e não como fundamento decisório” que não haveria recurso do despacho por si proferido no âmbito da competência prevista no art. 11º nº 2-b) do C.P.P..
II- DA INCONSTITUCIONALIDADE
8º Julga o Recorrente que o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça inverteu os dados do problema, já que a questão da legitimidade só se coloca depois de se decidir se a decisão é ou não susceptível de recurso.
9º Essa inversão lógica cria um problema ao Recorrente – o que, certamente, só involuntariamente terá sido desejado pelo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça –, já que fora atempadamente suscitada a questão da inconstitucionalidade do entendimento normativo dado ao art. 11º do C.P.P., no sentido da irrecorribilidade dos despachos preferidos ao abrigo das competências previstas no nº 2-b) dessa norma legal, mas não a inconstitucionalidade do entendimento normativo que consta do fundamento decisório da não admissão do recurso.
10º Contudo, é jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional que não tem de ser suscitada previamente uma questão de inconstitucionalidade com a qual o Recorrente não devesse contar.
11º É manifestamente o caso.
12º O entendimento normativo, que implicitamente foi dado, no despacho recorrido, ao art. 401º nº 1-b) e nº 2 do C.P.P. – no sentido em que não tem legitimidade em recorrer, por falta de interesse em agir, quem recorre de despacho que não atendeu a arguição de nulidades processuais, com o fundamento na sua ilegitimidade e falta de interesse em agir é inconstitucional, com fundamento em violação do direito ao recurso previsto no art. 32º nº 1 da C.R.P., bem como do direito a um processo equitativo previsto no art. 20º nº 4 da CRP.
13º O arguido não podia prever que tão insólito entendimento iria ser adoptado.
14º O arguido já sabia que o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça entendia que ele não tinha legitimidade e interesse em agir no que diz respeito à arguição das nulidades em causa.
15º Mas era insusceptível de poder ser previsto que o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça também tivesse o entendimento de que ele não tinha legitimidade e interesse em agir no recurso de despacho que indeferira a arguição de nulidades com esse mesmo pressuposto!!
16º É que, ressalvado o devido respeito, a ser assim, estaria constituído um círculo vicioso de que nunca nenhum sujeito processual conseguiria sair.
17º O arguido nunca viu tal entendimento normativo em lado nenhum, nem na doutrina, nem na jurisprudência publicada nos tribunais superiores.
18º Não podia contar com ele.
19º Assim sendo, o arguido não podia ter suscitado tal questão de inconstitucionalidade em momento anterior, razão pela qual, neste segmento, não pode ser dado cumprimento ao que está previsto na parte final do nº 2 do art. 75º-A da CRP.
20º Pelo exposto, deve ser admitido o recurso para discutir a questão da inconstitucionalidade acima assinalada no art. 12º.
21º Mas o presente recurso deve também abranger a parte do despacho recorrido – apesar de nele se dizer que, nesse segmento, não é fundamento decisório – que adopta o entendimento normativo dado ao art. 11º do C.P.P., devidamente conjugado com o art. 399º do C.P.P., no sentido em que não há recurso do despacho proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo da competência prevista no art. 11º nº 2-b) do C.P.P., por violação ao direito ao recurso previsto pelo art. 32º nº 1 da CRP..
22º Essa inconstitucionalidade já foi arguida no próprio requerimento de interposição do recurso, na parte acima transcrita no nº 5 deste requerimento, quando se previu essa possibilidade.
23º Ademais, deve ainda dizer-se que, na óptica do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, não há reclamação do despacho ora recorrido de não admissão de recurso, sendo certo que, na sua óptica, ninguém pode sequer apreciar se há ou não lugar a essa reclamação, a não ser ele próprio, que não a admite, nos termos já lavrados em despacho de 24 de Fevereiro de 2011 (renovados na parte ii) do despacho ora recorrido), a propósito de outro incidente surgido nestes mesmo autos.
24º Por isso mesmo, não há recurso ordinário possível do despacho ora recorrido.”
Por despacho proferido em 28 de Abril de 2011 o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça não admitiu este recurso, com os seguintes fundamentos:
1. O arguido A. vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional do despacho de 14 de Março de 2011, que não admitiu o recurso do despacho de 27 de Janeiro.
O recorrente invoca a inconstitucionalidade da norma do artigo 401º, nº 1, alínea b) e nº 2 do Código de Processo Penal, interpretada «no sentido em que não tem legitimidade em recorrer, por falta de interesse em agir, quem recorre de despacho que não atendeu a arguição de nulidades processuais, com o fundamento na sua ilegitimidade e falta de interesse em agir».
O recurso foi interposto com fundamento procssua1 no artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC) – aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
A inconstitucionalidade da norma do artigo 401º, nº 1, alínea b) e nº 2 do CPP não foi suscitada durante o processo, faltando, deste modo, o pressuposto de que depende a possibilidade de recorrer.
O recorrente não poderá invocar que a aplicação da norma constitui uma «decisão-surpresa», porque, como também refere, a norma foi já aplicada no processo por diversas vezes, nomeadamente desde o despacho de 15 de Abril de 2010 – que constitui caso julgado no processo no que respeita à não verificação dos pressupostos “interesse em agir” e “legitimidade” do recorrente para discutir a matéria específica que está em causa.
Não admito, assim, o recurso, por falta do pressuposto dos artigos 70º, nº 1, alínea b) e 72º, nº 2 da LTC.
2. O recorrente invoca também a inconstitucionalidade da norma do artigo 11º, nº 2, alínea b) do CPP.
O recurso não é, todavia, admissível, porquanto, como expressamente consta do despacho de que pretende recorrer, esta norma não foi aplicada, não constituindo a ratio decidendi da decisão.
O recurso de constitucionalidade desempenha, com efeito, uma função instrumental, só podendo o Tribunal Constitucional conhecer de uma questão de constitucionalidade quando a norma ou a interpretação normativa questionada exerça influência no julgamento da causa.
Não tendo a decisão recorrida aplicado a interpretação normativa cuja conformidade constitucional a recorrente submete à apreciação, o Tribunal Constitucional não poderia conhecer do recurso de constitucionalidade, por falta de preenchimento dos seus pressupostos processuais. E, de qualquer modo, como a decisão recorrida não aplicou, como critério e fundamento de julgamento, a norma do artigo 11º, nº 2, alínea b) do CPP, não poderia vir a ser reformulada de acordo com o juízo de inconstitucionalidade que o Tribunal Constitucional eventualmente proferisse (cf., entre outros, o Acórdão do TC, de 12 de Março de 2009, proc. nº 118/09).
Não admito, pois, o recuso também nesta parte.
O arguido reclamou desta decisão para o Tribunal Constitucional, com os seguintes argumentos:
“…11.º O Recorrente identificara – no requerimento de interposição do recurso – a seguinte inconstitucionalidade: o entendimento normativo, que implicitamente foi dado, no despacho recorrido, ao art. 401º nº 1-b) e nº 2 do C.P.P. – no sentido em que não tem legitimidade em recorrer, por falta de interesse em agir, quem recorre de despacho que não atendeu a arguição de nulidades processuais, com o fundamento na sua ilegitimidade e falta de interesse em agir – é inconstitucional, com fundamento em violação do direito ao recurso previsto no art. 32º nº 1 da C.R.P., bem como do direito a um processo equitativo previsto no art. 20º nº 4 da CRP.
12º O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça não admite o recurso, prima fade, porque a inconstitucionalidade não fora arguida durante o processo e porque o Recorrente não poderia invocar a aplicação de uma “decisão-surpresa”, na medida em que o Presidente do STJ já se manifestara quanto à falta de interesse de agir do ora Recorrente aquando da arguição das nulidades suscitadas.
13º Mau grado a consideração devida ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o arguido, ora Recorrente, não pode deixar de exarar protesto e até indignação por tal construção intelectual, que não tem – sempre ressalvado o devido respeito – sustentação possível.
14º É que o arguido não podia prever que tão insólito entendimento iria ser adoptado.
15º O arguido já sabia que o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça entendia que ele não tinha legitimidade e interesse em agir no que diz respeito à arguição das nulidades em causa.
16º Mas era insusceptível de poder ser previsto que o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça também tivesse o entendimento de que ele não tinha legitimidade e interesse em agir no recurso de despacho que indeferira a arguição de nulidades com esse mesmo pressuposto!!
17º É que, a ser assim, estaria constituído um círculo vicioso de que nunca nenhum sujeito processual conseguiria sair.
18º O arguido nunca viu tal entendimento normativo em lado nenhum, nem na doutrina, nem na jurisprudência publicada dos tribunais superiores.
19º Não podia contar com ele.
20º Assim sendo, o arguido não podia ter suscitado tal questão de inconstitucionalidade em momento anterior, razão pela qual, neste segmento, não pode ser dado cumprimento ao que está previsto na parte final do nº 2 do art. 75º-A da CRP.
21º Pelo exposto, não tem razão o argumento invocado pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça para não admitir o recurso, o qual deve por isso ser admitido para, em primeira linha, se discutir a questão da inconstitucionalidade acima assinalada no art. 21º.
22º Mas o presente recurso deve também abranger a parte do despacho recorrido – apesar de nele se dizer que, nesse segmento, não é fundamento decisório – que adopta o entendimento normativo dado ao art. 11º do C.P.P., devidamente conjugado com o art. 399º do C.P.P., no sentido em que não há recurso do despacho proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo da competência prevista no art. 11º nº 2-b) do C.P.P., por violação ao direito ao recurso previsto pelo art. 32º nº 1 da CRP.
23º Essa inconstitucionalidade já fora arguida no próprio requerimento de interposição do recurso, no segmento acima transcrito no nº 5 deste requerimento, quando se previu essa possibilidade.
24º Neste segmento, o Presidente do STJ invoca que a decisão recorrida não aplicou, como fundamento do julgamento, tal interpretação, a qual foi desenvolvida apenas a título digamos que informativo.
25º É verdade, do ponto de vista factual, o que diz o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça quanto à circunstância de o entendimento normativo cm apreço não ter sido por ele apresentado corno fundamento decisório.
26º Contudo, tal argumentação é um puro eufemismo, já que esse entendimento normativo é também relevante para o caso em apreço, ainda que a título subsidiário, razão pela qual, se deferida a arguição de inconstitucionalidade quanto ao primeiro segmento, não deve o Tribunal Constitucional deixar de igualmente apreciar este segundo segmento,
27º sob pena de se permitir, de forma perversa, a “eternização” do processo, num vaivém interminável, que escapa a qualquer ideia de racionalidade e economia processual.
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
Fundamentação
O Recorrente, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, pediu a fiscalização da constitucionalidade dos seguintes critérios normativos:
- do artigo 401.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação de que não tem legitimidade em recorrer, por falta de interesse em agir, quem recorre de despacho que não atendeu a arguição de nulidades processuais, com o fundamento na sua ilegitimidade e falta de interesse em agir;
- do artigo 11.º, conjugado com o artigo 399,º, ambos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não há recurso do despacho proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo da competência prevista no artigo 11.º, n.º 2, alínea b), do mesmo diploma.
O Tribunal recorrido não admitiu o recurso por ter entendido que, relativamente à primeira questão, o Recorrente não havia cumprido o requisito da sua suscitação prévia, e quanto à segunda questão, invocou que a mesma não integrava a ratio decidendi do despacho recorrido.
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge?se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando?se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente. Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Relativamente à primeira questão de constitucionalidade colocada pelo Recorrente no seu requerimento de interposição de recurso, verifica-se que, efectivamente, a mesma não foi invocada antecipadamente perante o Tribunal recorrido, de modo a vinculá-lo ao seu conhecimento, tendo sido suscitada pela primeira vez perante o próprio Tribunal Constitucional.
Contudo, apesar do arguido ter disposto de oportunidade para cumprir esse dever de suscitação, não lhe era exigível que o fizesse.
Na verdade, o entendimento que não tem legitimidade em recorrer, por falta de interesse em agir, quem recorre de despacho que não atendeu a arguição de nulidades processuais, com o fundamento na sua ilegitimidade e falta de interesse em agir, não é previsível. Estender a ilegitimidade para suscitar determinada questão, por falta de interesse em agir, ao acto de interpor recurso da própria decisão que julgou o Recorrente parte ilegítima, contrariando, assim, a regra específica em matéria de recursos de que tem legitimidade para recorrer a pessoa a quem a decisão recorrida foi desfavorável, não é uma interpretação comum na prática judiciária. Estamos, pois, perante a aplicação de um critério normativo inovador, do qual não se conhecem precedentes generalizados.
Por isso, o facto da decisão anterior ter indeferido a arguição de nulidades da instrução, com fundamento em que o requerente não tinha legitimidade para tal arguição, em nada permitia adivinhar que o recurso que viesse a ser interposto de tal decisão não seria admitido com igual fundamento de falta de legitimidade, uma vez que os critérios para aferir o interesse em agir para suscitar determinadas questões num processo e a legitimidade para recorrer para outra instância das decisões proferidas nesse mesmo processo são distintos.
Não sendo previsível a aplicação deste critério normativo, não era exigível ao Recorrente a sua suscitação antecipada perante o Tribunal recorrido, pelo que, neste caso, é dispensável a exigência do cumprimento de tal requisito.
Não se verificando qualquer outro obstáculo ao conhecimento do mérito desta questão de constitucionalidade, deve ser deferida a reclamação, nesta parte, admitindo-se o recurso interposto.
No que respeita à segunda questão de constitucionalidade, o critério normativo sindicado foi efectivamente enunciado pela decisão recorrida, mas essa enunciação foi expressamente catalogada pela própria decisão recorrida como um esclarecimento. Explicando melhor, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, após ter sustentado que o Recorrente não tinha legitimidade para recorrer do anterior despacho si proferido em que não conheceu da arguição de nulidades, defendeu que, além dessa falta de legitimidade, aquele despacho não era recorrível por inexistência de instância para onde recorrer, tendo, contudo, referido que esta segunda razão só era enunciada a título de esclarecimento, uma vez que a primeira razão era suficiente para a não admissão do recurso.
Para que um recurso de constitucionalidade, em fiscalização sucessiva concreta, tenha utilidade, podendo o resultado do seu julgamento repercutir-se no desfecho do processo onde foi interposto, é necessário que a norma cuja constitucionalidade é discutida seja fundamento da decisão recorrida. Se ela não se insere no raciocínio silogístico que conclui pela solução jurídica decretada, constituindo um simples obter dictum ou um argumento ad ostentationem, sem influência efectiva na decisão tomada pelo julgador, é perfeitamente inútil a fiscalização da sua constitucionalidade.
Nos casos em que a decisão recorrida haja assentado numa dupla fundamentação, se o recorrente se limita a pôr em causa a constitucionalidade da norma em que se apoia apenas um dos fundamentos, o conhecimento desta questão de constitucionalidade também se revela inútil, uma vez que o outro fundamento resta incólume e é suficiente para suportar a decisão recorrida, pelo que a eventual declaração de inconstitucionalidade da norma impugnada não teria qualquer efeito no sentido da decisão recorrida.
No presente caso, as duas razões adiantadas pela decisão recorrida para não ser possível conhecer o recurso infra-constitucional interposto são autonomamente suficientes para a suportar.
O Recorrente invocou a inconstitucionalidade dos critérios normativos em que se apoiam essas duas razões.
Já verificámos que deve ser conhecido o recurso de constitucionalidade quanto à interpretação que justifica a não admissão do recurso, por falta de interesse em agir.
Resta abordar a admissibilidade do recurso quanto à segunda questão colocada.
A sua rejeição baseou-se na alegação de que a norma impugnada não foi ratio decidendi do despacho recorrido. Esta posição estribou-se na qualificação que o próprio despacho recorrido fez do fundamento suportado pelo critério normativo cuja inconstitucionalidade é agora invocada.
É, no mínimo, discutível que a negação de estatuto fundamentador a um determinado argumento utilizado em suporte de uma decisão possa decorrer duma auto-qualificação efectuada pelo seu subscritor, quando, pela sua natureza, era objectivamente de lhe atribuir esse estatuto de ratio decidendi. Sucede, porém, que no caso concreto a qualificação efectuada tem como pressuposto a dispensabilidade de um reforço argumentativo adicional, expressamente afirmada na decisão recorrida, face à prévia enunciação de um primeiro fundamento tido por suficiente.
Ora, tendo-se já entendido ser possível questionar a constitucionalidade do primeiro fundamento, deixa de subsistir aquela dispensabilidade, pelo que desaparecem as razões que impediriam o tribunal de conhecer, por alegadamente não constituir ratio decidendi, o segundo fundamento, uma vez que o mesmo passa a poder vir a encontrar-se na posição de único suporte da decisão recorrida.
Não pode, assim, negar-se a possibilidade de sindicar constitucionalmente este segundo critério normativo em que a decisão recorrida igualmente se apoia.
Não se vislumbrando outras razões para que não seja conhecido o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por A. deve ser deferida a reclamação apresentada, admitindo-se esse recurso, o qual deve ter efeito meramente devolutivo da decisão recorrida, com subida imediata nos próprios autos, nos termos do artigo 78.º, n.º 5, da LTC.
Decisão
Pelo exposto, defere-se a reclamação deduzida por A. e, em consequência, admite-se o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, o qual sobe imediatamente nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.
Notifique.
Com cópia do presente acórdão, requisite o processo principal ao tribunal recorrido, nos termos do n.º 6, do artigo 688.º, do Código de Processo Civil.
Sem custas
Lisboa, 31 de Outubro de 2011.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.