Imprimir acórdão
Processo n.º 440/2011
2.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), da decisão sumária proferida pelo relator que decidiu não conhecer da questão de constitucionalidade apontada no seu requerimento de interposição de recurso.
2. Refutando esta decisão de não conhecimento do objecto do recurso, assim argumentou o reclamante:
“(...)
1 - O recorrente, inconformado com a sua condenação pela prática de um crime de usurpação, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que veio confirmar a sentença proferida em 1.ª instância.
2 - Porque o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação deverá ser declarado nulo por omissão de pronúncia sobre a violação do princípio constitucional da proporcionalidade, na vertente da intervenção mínima do direito penal ou ultima ratio, o ora recorrente decidiu interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
3 - O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça não foi admitido, quanto à matéria penal, por douto despacho de 15 de Dezembro de 2010 e que passamos a transcrever: “Recurso para o STJ: Por ser tempestivo e legal e considerando o valor do pedido cível, bem como o respectivo decaimento da parte, ao abrigo das disposições legais conjugadas dos art. 399°, 400º, n.º 2, 401 n.º 1 al. b), 403º, 411º e 432º nº 1 al. b) “a contrario” todos do cód. Procº penal, admite-se o recurso interposto, limitado apenas ao pedido cível.”
4 - Não se conformando com a limitação do recurso à parte cível, o recorrente reclamou do despacho supra para o Venerando Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que, por sua vez, manteve a decisão de inadmissibilidade do recurso quanto à matéria penal.
5 - Constata-se, assim, e por referência ao estabelecido no artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, que o recorrente esgotou já todos os meios ou recursos jurisdicionais que lhe possibilite reagir contra o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação em sede de recurso quanto à matéria penal.
6 - Inconformado com a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente, nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao qual foi atribuído efeito suspensivo, nos termos do n.º 4, do artigo 78.º da Lei do Tribunal Constitucional.
7 - Nos termos do disposto no artigo 75.ºA, n.ºs 1 e 2 e no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, o recorrente solicitou a este Tribunal que aprecie a inconstitucionalidade decorrente da violação por parte do Tribunal da Relação de Lisboa do princípio constitucional da proporcionalidade, na vertente da intervenção mínima do direito penal ou ultima ratio consagrado no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, ao condenar-se o arguido pelo crime de usurpação.
8 - Condenação essa que se fundamentou nos n.ºs 5 e 6 do artigo 86.º do CDADC que regulam a questão do aumento do número de exemplares relativamente ao número fixado em contrato.
9 - Numa situação deste tipo, o autor poderá “requerer a apreensão judicial dos exemplares a mais e apropriar-se deles, perdendo o editor o custo desses exemplares”; ou, nos casos de o editor já os ter vendido, total ou parcialmente, ou de o autor não ter requerido a apreensão, este terá o direito a ser indemnizado por aquele por perdas e danos. Foi este mecanismo que o legislador quis colocar ao serviço do autor nos casos em que a tiragem real supera a tiragem contratada. Por isso, nestes casos, nunca estaremos perante o crime de usurpação.
10 - Na verdade, a solução civilística constante dos n.ºs 5 e 6 do artigo 86.º do CDADC protege os bens jurídicos em jogo, pelo que se torna desnecessária a intervenção do Direito Penal para resolver a questão.
11 - Neste sentido vai o Professor OLIVEIRA ASCENSÃO quando afirma que “o n.º 2/c [do artigo 195.º] prevê o exercício por sujeito autorizado. Portanto, agora pressupõe-se que uma autorização foi dada mas que a utilização vai além da autorização, O n.º 1 previa o exercício não autorizado; agora prevê-se o exercício excessivo. Mas resultará daqui que toda a violação deste preceito contratual é um crime? Isto seria absurdo. As consequências das violações contratuais resultam do direito dos contratos. Nenhuma excepção há que fazer pelo facto de se tratar de um contrato respeitante a direito de autor.” - “Direito Penal de Autor”, separata dos “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Manuel Gomes da Silva”, Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, páginas 468 e 469.
12 - O Tribunal da Relação de Lisboa ao permitir o recurso ao Direito Penal para dirimir uma questão meramente civil no domínio dos contratos, violou o princípio constitucional da proporcionalidade, na vertente da intervenção mínima do direito penal ou ultima ratio.
13 - Claro está que o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional declare, pelas razões invocadas, a inconstitucionalidade da citada norma penal, por existir uma solução de natureza civil que dá resposta adequada à questão apresentada em juízo.
14 - É esta violação do princípio constitucional da proporcionalidade que fundamenta o presente recurso, tendo a mesma sido invocada nas alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, nas suas Conclusões 7.ª a 11.ª.
15 — E com o devido respeito, que é muito, não podemos acolher a conclusão do Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator de que “o recurso não tem por objecto o controlo da constitucionalidade de qualquer norma, mas apenas da decisão recorrida”, já que não podemos separar a decisão do Tribunal a quo, da norma jurídica que a fundamentou.
(...)”.
3. O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional respondeu à reclamação, pugnando pelo seu indeferimento, nos termos seguintes:
“1º
Pela Decisão Sumária n.º 445/2011, não se tomou conhecimento do objecto do recurso porque o recurso de constitucionalidade interposto, repousava num objecto idóneo por pretender sindicar-se a violação do princípio constitucional da proporcionalidade perpetrada pela decisão recorrida ao condenar o arguido pelo crime de usurpação.
2º
A reclamação agora apresentada é em larga medida a reprodução da peça que o recorrente apresentou quando foi notificado ao abrigo do artigo 75-A, n.º 5, da LTC.
3.º
A única novidade é o recorrente dizer, no ponto 13.º, “que pretende que o Tribunal declare, pelas razões invocadas, a inconstitucionalidade da citada norma penal”.
4.º
Ainda que não o dizendo expressamente, essa norma penal só poderia ser o artigo 195.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
5.º
Ora, se era a inconstitucionalidade dessa norma que pretendia ver apreciada, então devia tê-lo dito de forma clara e inequívoca nas duas oportunidades que teve para o fazer: a primeira quando interpôs recurso para o Tribunal Constitucional; a segunda quando respondeu à notificação feita nos termos do artigo 75.º, n.º 5, da LTC.
6.º
Não o tendo feito nos momentos processuais próprios, foi proferida, e bem, a douta Decisão Sumária”.
4. A decisão reclamada tem o seguinte teor:
“1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que negou provimento ao recurso interposto da decisão proferida no 5.º Juízo Criminal de Lisboa que condenara o recorrente pela prática de um crime de usurpação, previsto e punido pelos artigos 195.º, n.º 1 e 2, alínea c), e 197.º do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos (CDADC), na pena de um mês de prisão, substituída por 30 dias de multa, e 150 dias de multa, num total de 180 dias, à taxa diária de €10,00.
O recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual redacção (LTC), tendo o recorrente precisado, após convite do relator, que:
“(...)
Nos termos do disposto no artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 2 e no artigo 70.º, n° 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, desde já o recorrente esclarece que, com o presente recurso, se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade a seguir descrita e ao abrigo da qual o presente recurso é interposto.
Os Venerandos Desembargadores não se pronunciaram sobre a alegação do recorrente no seu recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa da violação do princípio constitucional da proporcionalidade, na vertente da intervenção mínima do direito penal ou ultima ratio consagrado no artigo 18.° da Constituição da República Portuguesa, ao condenar-se o arguido pelo crime de usurpação.
Os nºs 5 e 6 do artigo 86.º do CDADC regulam a questão do aumento do número de exemplares relativamente ao número fixado em contrato. Numa situação deste tipo, o autor poderá “requerer a apreensão judicial dos exemplares a mais e apropriar-se deles, perdendo o editor o custo desses exemplares”, ou, nos casos de o editor já os ter vendido, total ou parcialmente, ou de o autor não ter requerido a apreensão, este terá o direito a ser indemnizado por aquele por perdas e danos. Foi este mecanismo que o legislador quis colocar ao serviço do autor nos casos em que a tiragem real supera a tiragem contratada. Por isso, nestes casos, nunca estaremos perante o crime de usurpação.
Na verdade, a solução civilística constante dos n.ºs 5 e 6 do artigo 86.º do CDADC protege os bens jurídicos em jogo, pelo que se torna desnecessária a intervenção do Direito Penal para resolver a questão.
Neste sentido vai o Professor OLIVEIRA ASCENSÃO quando afirma que “o n.º 2/c [do artigo 195.º] prevê o exercício por sujeito autorizado. Portanto, agora pressupõe-se que uma autorização foi dada mas que a utilização vai além da autorização. O n° 1 previa o exercício não autorizado; agora prevê-se o exercício excessivo. Mas resultará daqui que toda a violação deste preceito contratual é um crime? Isto seria absurdo. As consequências das violações contratuais resultam do direito dos contratos. Nenhuma excepção há que fazer pelo facto de se tratar de um contrato respeitante a direito de autor.” – “Direito Penal de Autor”, separata dos “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Manuel Gomes da Silva”, Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, páginas 468 e 469.
O Tribunal da Relação de Lisboa ao permitir o recurso ao Direito Penal para dirimir uma questão meramente civil no domínio dos contratos, violou o princípio constitucional da proporcionalidade, na vertente da intervenção mínima do direito penal ou ultima ratio.
É esta violação do princípio constitucional da proporcionalidade que fundamenta o presente recurso, tendo a mesma sido invocada nas alegações do recurso interposto pare o Tribunal da Relação de Lisboa, nas suas Conclusões 7.ª a 11.ª.
(...)”.
O recurso foi admitido pelo Tribunal a quo. Todavia, em face do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, tal decisão não vincula o Tribunal Constitucional; e porque a presente situação se enquadra na hipótese delineada no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, passa a decidir-se nos termos seguintes.
2. O presente recurso foi, como se disse, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, que admite, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, os recursos interpostos de decisão que apliquem norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.
Sendo o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação directa de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correcção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto.
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” a violação (directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efectuado in concreto pelo tribunal a quo.
Não incidindo a intervenção do Tribunal Constitucional sobre a correcção jurídica do concreto julgamento, o objecto do recurso de constitucionalidade é circunscrito à apreciação, ratione constitutionis, de normas jurídicas, exorbitando da esfera de competência cognitiva assinalada a esta jurisdição o controlo imediato das decisões proferidas pelos outros tribunais, ainda que os recorrentes lhes assaquem a violação de preceitos constitucionais.
No presente caso concreto, constata-se precisamente uma dessas situações em que o recurso de constitucionalidade repousa num objecto inidóneo por pretender sindicar-se a violação do princípio constitucional da proporcionalidade, perpetrado pela decisão recorrida, ao condenar o arguido pelo crime de usurpação.
De facto, in casu, o recurso não tem por objecto o controlo da constitucionalidade de qualquer norma, mas apenas da decisão recorrida que, ao condenar o recorrente e na perspectiva deste, violou o referido princípio constitucional por não ter reconhecido que “a solução civilística constante dos n.ºs 5 e 6 do artigo 86.° do CDADC protege os bens jurídicos em jogo, pelo que se torna desnecessária a intervenção do Direito Penal para resolver a questão”.
Afigura-se, assim, que o presente recurso acaba por ter subjacente um errado entendimento quanto à natureza do recurso de constitucionalidade. Este é, sem dúvida, um recurso que tem como objecto imediato a decisão judicial recorrida, mas apenas para a apreciação da questão de constitucionalidade da norma que tenha constituído seu fundamento normativo (objecto mediato do recurso), ao passo que o recorrente parece entendê-lo como um recurso de reexame da bondade jurídica da decisão recorrida dentro da hierarquia dos tribunais de instância, o qual, como se explicitou, não tem lugar na nossa jurisdição constitucional.
Do mesmo passo, não cabe também a este Tribunal julgar qualquer omissão de pronúncia da decisão recorrida, a qual apenas pode ser arguida junto do Tribunal a quo.
3. Termos em que, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objecto do recurso.
(...)”.
Cumpre agora julgar.
II. Fundamentação
5. A presente reclamação não logra abalar os fundamentos expendidos na decisão sumária e que determinaram o não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal.
Desde logo, importa começar por referir que o recorrente não erigiu em objecto do recurso de constitucionalidade qualquer questão de constitucionalidade normativa, como pode concluir-se do requerimento de interposição do recurso e da resposta ao convite de aperfeiçoamento feita pelo relator.
Em ambas as peças, o recorrente apenas controverte a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, que, no seu entendimento, “ao permitir o recurso ao Direito Penal para dirimir uma questão meramente civil no domínio dos contratos, violou o princípio constitucional da proporcionalidade, na vertente da intervenção mínima do direito penal ou ultima ratio”.
Nessa medida e integrando a delimitação do objecto do recurso a esfera de responsabilidade processual das partes, o Tribunal apenas poderia ter julgado como julgou na decisão sumária reclamada.
Não se obnubila que o ora reclamante, a propósito dessa argumentação, sustenta que a decisão do tribunal a quo não pode ser separada da norma jurídica que a fundamentou.
Contudo, para além de quaisquer considerações metodológicas sobre a concreta realização do direito por mediação de critérios legais, a verdade é que o reclamante não controverteu, a montante do recurso de constitucionalidade, nem controverte, nesse recurso, o critério normativo que constituiu ratio decidendi do juízo recorrido, o qual, por constituir elemento essencial para definir a competência do Tribunal Constitucional na apreciação da questão decidenda, não pode deixar de ser individualizado nos pertinentes momentos processuais.
Ora, in casu, o reclamante só refere que pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 195.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal, após a prolação da decisão sumária, não sendo possível inferir esse dado das anteriores peças processuais, nas quais se imputou, nos termos referidos, a inconstitucionalidade à própria decisão judicativa.
III. Decisão
6. Termos em que, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário.
Lisboa, 31 de Outubro de 2011.- J. Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.