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Processo n.º 336/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso de acórdão proferido pela 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em 16 de Fevereiro (fls. 445 a 448-verso), para apreciação da constitucionalidade da interpretação normativa extraída “dos artigos 30º, nº 1 e 268º, nº 1, alínea f), do CPP no sentido em que foi levantada e efectuada, isto é no sentido de não ser da competência do juiz de instrução conhecer da ilegalidade da decisão do MºPº de, invocando, exclusivamente, razões da sua organização interna, ordenar a separação de processos num caso de crimes conexos e onde já houve intervenção judicial no inquérito” (fls. 457), por alegada violação do direito fundamental ao recurso, previsto no n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
2. Notificada para tal pela Relatora, a recorrente produziu alegações, que ora se sintetizam:
«(…)
II-O Direito
1. A questão da competência do juiz de instrução para ordenar a separação de processos, em fase de inquérito, e em inquéritos onde já tenha ocorrido intervenção judicial, não é nova e foi objecto de ponderação dos tribunais superiores em vários acórdão, entre eles o citado no requerimento que deu origem à decisão objecto de recurso para o TR e ainda os Acs. do STJ de 11.1.95, na CJ, Acs. do STJ, ano III, 1, 173 e da R.L de 23.9.92, na CJ, ano XVII, 4. 201.
2. No caso vertente, sustentando-se nos artigos 268° e 269° do CPP, entendeu-se que o senhor juiz de instrução não tem competência funcional para decidir a questão colocada.
3. Pode ler-se no n°1, alínea f) do aludido artigo 268º do CPP que é da competência do juiz de instrução, em inquérito, praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução.
4. Porque razões é que a decisão de separar processos, em inquérito, é da competência do juiz de instrução, conforme sustenta a grande maioria da Doutrina e Jurisprudência?
6. Os acórdãos aduzidos, explicitam, de modo claro, as razões pelas quais tal competência se inclui nos actos que a lei reserva ao juiz de instrução, mesmo em inquérito.
7. Efectivamente, dispõe o artigo 30° nº 1 do CPP que «…. oficiosamente, ou a requerimento do M° P,. do arguido, do assistente ou do lesado, o tribunal faz cessar a conexão e ordena a separação de algum ou alguns dos processos... »
8. A interpretação de tal preceito, considerando os elementos literal, sistemático, histórico e teleológico leva a que a expressão tribunal tenha sido utilizada no seu sentido estrito, fazendo-a coincidir com o juiz, a autoridade judiciária que exerce o poder jurisdicional.
9. E isto, respectivamente por colocar entre os requerentes o M° P°; por o dispositivo em questão estar inserido na Secção III- Competência por conexão, do Capitulo II- Da competência, do Titulo 1- Do juiz e do Tribunal, do Livro I- Dos sujeitos do processo, do Código do Processo Penal, sendo certo que o Titulo II do mesmo diploma trata do Mº P° e dos órgãos de Policia Criminal, ressaltando, de novo, a contraposição Tribunal - M° P°; por o elemento histórico ir também no sentido da palavra tribunal se referir apenas ao juiz ( vidé Código de 1929, onde nunca se refere o tribunal quando trata de actos a praticar pelo Mº Pº); por elemento teleológico ser ainda mais incisivamente decisivo porquanto o acto de separação tem um conteúdo jurisdicional pois as situações taxativamente enumeradas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 30° como fundamento para a separação têm sempre como finalidade o interesse ponderoso atendível de qualquer arguido, tratando-se, pois de orientação na defesa dos direitos fundamentais do arguido que se concretiza pela imparcialidade e juricidade estrita que só pode ser assegurada pela Magistratura Judicial a quem compete «.. assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesse públicos e privados…. » sendo independente e apenas estando sujeita à lei (artigos 205° e 206° da CR19), enquanto a do M°P°, além de representar o Estado, está hierarquicamente subordinada. (artigo 221° da CRP)
10. Incluindo-se a separação de processos na esfera dos direitos fundamentais de defesa, só ao juiz compete determiná-la, pois a protecção das garantias do processo criminal está constitucionalmente a seu cargo, como explicitamente resulta do nºs 1 e 4 do artigo 32° da CRP.
11. Acresce, por fim, que só a atribuição da competência para a separação de processos ao juiz permite o controlo jurisdicional de tal decisão, via recurso, pois se se entendesse que tal competência era do M° P° não haveria qualquer controlo assistindo-se à triste situação que está a ocorrer, hic et nune, de o M° P° praticar a politica do facto consumado, recusando-se mesmo a tomar posição sobre tamanha evidente violação da lei.
12. Ninguém que tenha lido pela 1ª vez qualquer Manual de Processo Penal terá dúvidas de que o despacho de 16 de Novembro é uma monstruosidade técnica, um erro jurídico grosseiro. No entanto, vai-se mantendo porque o M° P° foge hierarquicamente da questão subjacente e o senhor juiz a quo lava as suas mãos.
III- A INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO EFECTUADA dos artigos 30º nº 1 e 268° nº 1, alínea f), ambos do CPP.
1. A separação de processos é feita pelo Tribunal, a requerimento dos interessados, entre eles o M° Pº, (artigo 30° nº1. do CPP)
2. Se o M° Pº pudesse, como o fez no caso concreto, ordenar a separação de processos, invocando questões da sua organização interna, o interessado ficaria, como também ocorreu no caso concreto, impossibilitado não só de reagir ao imposto (por não haver recurso de tal decisão) como a ter de sujeitar-se, como também aconteceu no caso concreto, a ter de defender-se duas vezes dos mesmos factos, já que o Mº Pº decidiu, na sequência da nova investigação, articular, de novo, factos de que já tivera antes e, com sucesso, de defender-se.
3. Face ao conteúdo das várias alíneas do nº 1 do artigo 30º do CPP, que tem subjacente a garantia da defesa de direitos fundamentais só uma Magistratura independente pode garantir os mesmos e o direito ao recurso.» (fls. 466 a 468)
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou contra-alegações, das quais se extraem as seguintes conclusões:
«(…)
4. O recurso de inconstitucionalidade que vem interposto, e agora está em apreciação, é de “decisão positiva”.
Mais concretamente, nos termos da lei, é interposto “das decisões dos tribunais (…) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo” [CRP, art. 280.º, n.º 1, al. a) e LOFPTC, art. 70.º, n.º 1, al. b)].
5. Ora, é indubitável que a decisão impugnada não aplicou, para dirimir o caso, a “norma” (ou “interpretação normativa”), que a recorrente identifica como sendo objecto do recurso, ou seja, aquela extraída “dos artigos 30º, nº 1 e 268º, nº 1, alínea f), do CPP”. É o que vamos demonstrar.
6. Com efeito, em trecho algum, do douto acórdão recorrido, vem, sequer, especificamente denotada a disposição do artigo 268.º (Actos a praticar pelo juiz de instrução), n.º 1, al. f), do Código de Processo Penal, referida a “praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução”.
Por outra parte, é uma pura evidência, decorrente do teor da douta decisão recorrida, que a mesma não interpreta, nem aplica ao caso em apreço, o critério normativo constante daquela disposição ? o qual estabelece uma “reserva de juiz de instrução” para a prática de actos no âmbito do inquérito, quando a lei assim “expressamente” o determinar.
Finalmente, muito menos foi interpretada ou aplicada, no discurso fundamentador da decisão recorrida, qualquer “norma” ou “interpretação normativa” extraída “dos artigos 30º, nº 1 e 268º, nº 1, alínea f), do CPP”.
7. A contraprova do que afirmamos, está nesta passagem, da douta decisão: “Relativamente à separação de processos é a própria lei processual penal que confere ao MP o poder de a determinar (art. 264º, 5, C. P. Pen.) desde que, como entendemos, não tenha havido ainda uma intervenção judicial no inquérito (mesmo afora das situações supra descritas), posto que se fixou já uma regra de competência que não pode ser alterada, sem prejuízo da observância do princípio do juiz natural (ínsito na regra expressa no art. 31º, C. P. Pen.) (…) Não se mostra, por isso, violado qualquer preceito constitucional” (fls. 448, pg. 7).
Portanto, a razão de decidir ? o critério decisório ? que, cristalinamente, emerge do discurso fundamentador da douta decisão recorrida procede, apenas, da interpretação e aplicação da norma de competência extraída do artigo 264.º (Competência), n.º 5, do Código de Processo Penal, conjugada com o “princípio do juiz natural”, que ali se dá por “ínsito na regra expressa no artigo 31.º” (Prorrogação da competência), do mesmo diploma.
8. Logo, porque no caso não houve aplicação da norma identificada como objecto deste “recurso de inconstitucionalidade”, e como é jurisprudência constante deste Tribunal Constitucional, a preterição de tal pressuposto processual determinará a impossibilidade do conhecimento deste meio impugnatório (LOFPTC, art. 78.º-A, n.º 1).
9. Mas a dissonância entre o decidido e o impugnado não se cinge ao plano das normas. Pois igualmente se patenteia no plano da questão de fundo.
10. Com efeito, a recorrente fixa, como thema decidendum do seu recurso, o seguinte: não ser da competência do juiz de instrução conhecer da ilegalidade da decisão [de separação de inquéritos] do MºP. Portanto, a questão de competência para rever (que não para resolver).
Já a douta decisão recorrida discorreu sobre este ponto: “(…) saber se a competência para ordenar a separação de inquéritos é do Ministério Público ou do Juiz de Instrução” (fls. 441 e 446 a 448v.º). Logo, a questão da competência para resolver (que não para rever).
11. Tornando, pois, praticamente “inútil” a decisão da “questão de constitucionalidade” para a decisão de fundo no processo penal, como igualmente é jurisprudência assente deste Tribunal Constitucional.» (fls. 471 a 475)
4. Perante a invocação de fundamentos que obstariam ao conhecimento do objecto do presente recurso, a Relatora proferiu despacho, em 04 de Outubro de 2011 (fls. 476), ao abrigo dos artigos 703º, n.º 2, e 704º, n.º 2, ambos do CPC, aplicáveis “ex vi” artigo 69º da LTC, para que a recorrente se pudesse pronunciar sobre aquela questão, a qual, contudo, deixou esgotar o prazo sem que viesse aos autos pronunciar-se.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Em sede de contra-alegações, veio o Ministério Público pugnar pela impossibilidade de conhecimento do objecto do presente recurso. Importa, portanto, começar por apreciar tal questão prévia à apreciação do mérito da questão de constitucionalidade fixada pelo recorrente.
Com efeito, nos processos de fiscalização sucessiva concreta da constitucionalidade previstos no artigo 280.º, n.º 1, al. b), da CRP e artigo 70.º, n.º 1, al. b), da LTC, este Tribunal encontra-se limitado à apreciação de questões de inconstitucionalidade de normas que tenham sido alvo de aplicação efectiva pelos tribunais recorrido, enquanto “ratio decidendi”, conforme resulta do artigo 79º-C da LTC. Assim sendo, importa aferir qual a norma ou interpretação normativa que foi adoptada pelo tribunal recorrido como tal. Para tanto, afigura-se útil chamar a atenção para os seguintes excertos da decisão recorrida:
“Relativamente à separação de processos é a própria lei processual penal que confere ao MP o poder de a determinar (art. 264º, 5, C. P. Pen.) desde que, como entendemos, não tenha havido ainda uma intervenção judicial no inquérito (mesmo afora das situações supra descritas), posto que se fixou já uma regra de competência que não pode ser alterada, sem prejuízo da observância do princípio do juiz natural (ínsito na regra expressa no art. 31º, C. P. Pen.) (…) Não se mostra, por isso, violado qualquer preceito constitucional” (fls. 448).
Assim, daqui decorre que a verdadeira razão determinante da decisão recorrida assentou numa interpretação normativa extraída dos artigos 31º e 264º, n.º 5, do CPP, e não dos artigos 30º, n.º 1 e 268º, n.º 1, alínea f), igualmente do CPP. Aliás, se devidamente analisada a decisão recorrida, verifica-se que esta nem sequer menciona este último preceito legal que, na perspectiva da recorrente, seria determinante para a resolução da questão jurídica ora controvertida.
Além disso, como bem nota o Ministério Público, verifica-se um desfasamento entre o objecto do presente recurso – v.g., determinar se o juiz de instrução tem competência para conhecer da ilegalidade de decisão de separação de processos criminais, pelo acusador público – e a interpretação normativa adoptada pela decisão recorrida. É que, em boa verdade, aquela apenas se pronunciou sobre a questão de saber se é competente para decidir sobre a separação de processos – portanto, numa perspectiva de poder para a decisão primária – e não decidiu sobre a sua competência para verificar, em momento posterior àquela decisão – agora, numa perspectiva de poder de revisão “ex post”.
Como tal, em estrita obediência ao artigo 79º-C da LTC, cabe apenas a este Tribunal concluir pela impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso, ficando, assim, prejudicada uma eventual decisão de mérito.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC´s, nos termos do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 30 de Novembro de 2011.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.