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Processo n.º 475/11
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, A. veio interpor recurso do acórdão de 12 de Abril de 2011, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
O recorrente definiu, como objecto do recurso, a “apreciação da constitucionalidade da norma vertida nos artºs 408º nº 2 al. d) do CPP conjugado com o artº 80º nº 3 do CCJ, na interpretação dada pelo aresto recorrido, por violação dos artºs 20º nº 1 e 32º da CRP”
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“4. O recorrente não especifica, no requerimento de interposição de recurso, a norma, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, mas apenas os preceitos legais que lhe servirão de suporte, o que constitui incumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC.
Porém, não é equacionável, in casu, facultar ao recorrente a possibilidade de suprir tal omissão, mediante o convite ao aperfeiçoamento a que se reporta o n.º 6 do referido artigo 75.º-A, atenta a não verificação de pressupostos de admissibilidade do recurso insupríveis por essa via, que sempre determinariam a impossibilidade de conhecimento de mérito, como melhor exporemos infra.
Na verdade, o convite ao aperfeiçoamento, previsto no artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6, da LTC, só tem sentido útil quando faltam apenas meros requisitos formais do requerimento de interposição do recurso – a que se alude nos n.ºs 1 a 4 do mesmo preceito – carecendo, ao invés, de utilidade quando faltam os pressupostos de admissibilidade do recurso – enunciados especificamente no artigo 70.º e no n.º 2 do artigo 72.º da LTC – que não podem ser supridos deste modo. Nesta última hipótese, em vez de proferir um convite ao aperfeiçoamento – que determinaria a produção de processado inútil, em prejuízo dos princípios de economia e celeridade processuais – deve o relator proferir logo decisão sumária, no sentido do não conhecimento do recurso (cfr., neste sentido, acórdãos deste Tribunal Constitucional n.ºs 99/00, 397/00, 264/06, 33/09 e 116/09, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
5. Feito este esclarecimento prévio, detenhamo-nos sobre os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, atendendo à especificidade do concreto tipo de recurso em análise nos autos.
O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objecto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP); artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
6. Vejamos, então, se os aludidos requisitos – de necessária verificação cumulativa – se encontram preenchidos in casu.
Em primeiro lugar, constata-se que a decisão recorrida não utiliza, como ratio decidendi, qualquer norma extraível da conjugação das disposições legais identificadas pelo recorrente.
Assim, independentemente da concreta especificação da norma que o recorrente pretenderia erigir como objecto do recurso, é desde já possível afirmar a respectiva inadmissibilidade, por falta de coincidência entre tal norma e o concreto fundamento normativo da decisão recorrida.
Acresce que a admissibilidade do recurso se encontrava já prejudicada pela circunstância de o recorrente não ter suscitado, junto do tribunal a quo, de forma adequada, qualquer questão normativa relacionada com a conjugação das referidas disposições legais, incumprindo assim o ónus de suscitação prévia, que sobre si impendia.
Na verdade, o cumprimento do pressuposto de admissibilidade do recurso, agora em apreciação, pressupõe que a questão da constitucionalidade seja levantada, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, directa e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Exige-se, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objecto de recurso e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se aperceba e se pronuncie sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 708/06 e 630/08, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, o recorrente não problematizou qualquer questão de constitucionalidade normativa, de forma adequada, perante o tribunal a quo, antes da prolação da decisão recorrida.
Na verdade, apenas na motivação do recurso interposto em 28 de Julho de 2009, o recorrente faz breve referência a normas constitucionais, nos seguintes termos:
“E, embora não focado explicitamente, a interpretação que deu ao artº 408º nº 2 al. d) do CPP, a verdade é que o aplicou implicitamente, desconjugando-o com a aplicação do artº 80º nº 3 do CCJ, o que torna tal interpretação inconstitucional, por violação dos artºs 20º nº 1 e 32º nº 1 da CRP.”
Nas conclusões da referida peça processual, menciona ainda:
“A interpretação dada implicitamente ao artº 408º nº 2 al. d) do CPP conjugado com o artº 80º nº 3 do CCJ, torna estas normas inconstitucionais por violação dos artºs 20º nº 1 e 32º nº 1 da CRP.”
As transcritas alusões não correspondem à forma adequada de suscitação de uma questão normativa, nos termos que acabámos de analisar.
Na verdade, não é especificada a concreta norma ou interpretação normativa, cuja inconstitucionalidade se invoca, mas apenas os preceitos em que a mesma assenta, não sendo igualmente aduzida uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido.
Assim, não tendo o recorrente cumprido o aludido ónus de suscitação prévia, não colocando, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, de forma adequada e clara, uma questão de constitucionalidade normativa bem delimitada, ficou definitivamente prejudicada a possibilidade de vir, ulteriormente, interpor recurso de constitucionalidade.
Face às considerações expendidas, comprovada que se encontra a inutilidade de um convite ao aperfeiçoamento, conclui-se, desde já, pela não admissibilidade do recurso.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. Fundamentando a sua discordância relativamente à decisão reclamada, refere o reclamante que o despacho datado de 15 de Julho de 2009, embora não o refira, aplica a norma contida no artigo 408.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal, embora o faça sem a conjugar com o disposto no n.º 3 do artigo 80.º do Código das Custas Judiciais, sendo que é essa interpretação implícita – que identifica como “ratio decidendi do indeferimento” – que o reclamante alega ter violado normas constitucionais.
Relativamente ao invocado incumprimento do ónus de suscitação prévia duma qualquer questão normativa relacionada com a conjugação das disposições legais, em que o reclamante funda o objecto do recurso, refere o mesmo que tal ónus foi cumprido, o que resulta do “ponto 10. e conclusão 6ª da sua motivação de recurso”.
Acrescenta que o tribunal a quo compreendeu a questão de constitucionalidade colocada, debruçando-se sobre a mesma, pelo que não se justifica que se invoque, na decisão reclamada, a ausência da respectiva especificação.
Por último, alega ainda o reclamante que os artigos 408.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal e 80.º, n.º 3, do Código das Custas Judiciais apenas têm uma norma cada um, pelo que não compreende a exigência do Tribunal Constitucional, no sentido de impor ao recorrente que reproduza o respectivo teor.
4. O Magistrado do Ministério Público respondeu à reclamação, defendendo o indeferimento da mesma.
Alega, em súmula, que a argumentação do reclamante não infirma a conclusão da decisão reclamada, quanto à ausência de coincidência entre a ratio decidendi da decisão recorrida e qualquer norma extraível da conjugação das disposições legais seleccionadas para delimitar o objecto do recurso.
Mais refere que o reclamante não intuiu a diferença entre a mera indicação dos preceitos e a explicitação da questão de constitucionalidade normativa subjacente, só assim se compreendendo que venha alegar a desnecessidade de tal explicitação, no recurso de constitucionalidade e igualmente, de forma prévia, perante o tribunal a quo.
Conclui, nestes termos, pelo indeferimento da reclamação deduzida.
II – Fundamentos
5. Como resulta do teor da reclamação apresentada e do seu confronto com os fundamentos exarados na decisão sumária reclamada, o reclamante não aduziu argumentos que infirmassem a correcção do juízo efectuado.
Na verdade, o conceito de norma e de disposição legal não são coincidentes, pelo que a admissibilidade do recurso de constitucionalidade pressupõe que o recorrente explicite, de forma clara e inequívoca, a norma ou interpretação normativa, cuja sindicância de constitucionalidade pretende, bem como os preceitos legais em que tal critério normativo assenta.
A omissão de tal explicitação, no requerimento de interposição de recurso, pode ser suprida, mediante o convite ao aperfeiçoamento a que se reporta o n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC. Porém, tal convite não deverá ter lugar quando careça de utilidade, situação que se verifica sempre que, a par da omissão de requisitos formais do requerimento de interposição do recurso, coexista a falha de verdadeiros pressupostos de admissibilidade do recurso.
No presente caso, tal situação de inutilidade do convite verifica-se, porquanto a admissibilidade do recurso encontra-se inelutavelmente comprometida pela insuprível falha de alguns dos seus pressupostos.
De facto, tal como se refere na decisão reclamada, não existe coincidência entre a ratio decidendi da decisão recorrida e qualquer norma extraível da conjugação das disposições legais identificadas pelo recorrente.
Não se descortina a que se reporta o reclamante, quando invoca a aplicação implícita do artigo 408.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo Penal, no despacho de 15 de Julho de 2009 e – supõe-se, sob pena de tal alegação ser inócua – na decisão recorrida, que apreciou o recurso de tal despacho.
Aliás, a decisão recorrida refere expressamente que “ não faz qualquer sentido a alusão ao artigo 408º, nº 2, al. d) do Código de Processo Penal, porquanto tal preceito apenas se refere ao efeito do recurso e não à questão que aqui se suscita”.
Por outro lado, o recorrente não suscitou, junto do tribunal a quo, de forma adequada, qualquer questão normativa relacionada com a conjugação das referidas disposições legais.
Como resulta da fundamentação da decisão reclamada, apenas na motivação do recurso, interposto em 28 de Julho de 2009, o recorrente faz breve referência a normas constitucionais – conforme transcrição do “ponto 10 e conclusão 6ª” referidos na reclamação – sem que tal referência corresponda à forma adequada de suscitação de uma questão normativa, já que não é especificada a concreta norma ou interpretação normativa, cuja inconstitucionalidade se invoca, mas apenas os preceitos em que a mesma assenta, não sendo igualmente aduzida uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido.
Saliente-se, aliás, que mesmo tais parcas referências a normas constitucionais não são sequer retomadas na reclamação para a conferência, peça processual, onde o recorrente deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade que pretendesse ver apreciada em ulterior recurso de constitucionalidade.
Nestes termos, apenas resta reafirmar toda a fundamentação constante da decisão reclamada e, em consequência, concluir pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III – Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação apresentada e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada proferida no dia 5 de Julho de 2011.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 31 de Outubro de 2011.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.