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Processo n.º 281/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. No Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra foi proferida sentença na acção administrativa especial que o A., Lda. intentou contra o Ministério da Educação na qual foi desaplicado, com fundamento em inconstitucionalidade, o artigo 99º do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro.
A sentença apresenta, na parte aqui relevante, a seguinte fundamentação:
[...] 12. Reserva de função legislativa
Com efeito, diversa da questão da (inexistente) invasão da reserva competencial do Parlamento é a questão da (eventual) invasão da reserva de função legislativa.
Sustenta a recorrente que é inconstitucional o regime sancionatório definido pelo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo por nele se não ter respeitado a reserva da função legislativa: ao remeter para normação administrativa (mais exactamente para portaria) a tipificação dos comportamentos puníveis; a adequação das sanções aos tipos: a escolha do procedimento sancionatório a aplicar, o legislador do Estatuto – diz a recorrente – fez aquilo que a Constituição lhe proíbe: deixou de regular matérias que só poderiam ser reguladas por acto da função legislativa, reenviando portanto para uma outra autoridade (no caso, a administrativa) o exercício de uma competência que só a ele pertencia.
É certo – e a doutrina assim o tem consensualmente defendido (por todos: AFONSO QUEIRÓ, «Teoria dos Regulamentos», em Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XX VIL p. 11) – que até 1982 nada havia na Constituição que impedisse o legislador, quer parlamentar quer governamental, de «deslegalizar» certa normação por ele iniciada, reenviando a sua continuação para regulamentos administrativos que dispusessem sobre a matéria em termos novos e originários desde que a referida matéria não estivesse ela própria, por imposição constitucional, sujeita a reserva de lei.
Foi exactamente isso que fez e validamente, à luz da primeira versão da Constituição – o legislador que definiu o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo.
Com efeito, por um lado e como já se viu, não estava então reservada à lei a «matéria» por ele regulada. Por outro, o «reenvio» que se fazia no artigo 99º do Decreto-Lei n.º 553/80 implicava unia verdadeira «deslegalização», na medida em que através dele se habilitava a administração a emitir, sobre a matéria, uma verdadeira regulação praeter legem, porque primária e inovatória. Atentemos agora, com mais vagar, neste segundo aspecto.
Não é fácil – como bem se sabe estabelecer traços seguros entre aqueles regulamentos administrativos que são secundum legem e aqueles que vão para além da lei, ou que são praeter legem. No entanto, se se tomar como bom o critério doutrinário segundo o qual «o regulamento executivo não pode inovar no domínio das restrições à esfera individual, nem criar preceitos que se não liguem por um vínculo de pormenorização ou procedimentalização às normas contidas na lei regulamentada», por ser ele um regulamento «secundário ou derivado, relativamente ao regime estabelecido pelo legislador» (JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos, Administrativos, Coimbra, 1987. p. 241), limitando-se a «editar as providências necessárias para assegurar a fidelidade ou (...) a conformidade à vontade do legislador (...)» sem dar vida a nenhuma regra de fundo, a nenhum preceito jurídico «novo» e originário» (AFONSO QUEIRÓ ob. cit. p. 9), então parece certo que na categoria destes regulamentos se não insere aquele para o qual reenviou o legislador que estabeleceu o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo.
Na verdade – e ao contrário do que sustenta a entidade recorrida – a lei não definiu então, com densidade suficiente, o regime sancionatório que deveria ser aplicado às escolas inadimplentes. Limitou-se a estabelecer o elenco das sanções a cominar «em caso de violação do disposto no decreto-lei», afirmando ainda que tais sanções deveriam ser aplicadas de acordo com a natureza e a gravidade da violação Foi, pois, o regulamento administrativo que veio densificar todo este regime, que a lei, finalmente. apenas desenhou a título principal: como já vimos, a Portaria nº 207/98 definiu os ilícitos sancionáveis: estabeleceu as sanções correspondentes a cada um: fixou o procedimento a adoptar na aplicação das sanções. É bem difícil sustentar que um regulamento assim não inova no domínio das restrições à esfera individual, ou não cria normação primária, dando vida a preceitos jurídicos «novos» ou «originários». Seguro é porém que a habilitação legal para a emissão deste tipo de regulamentos não era proibida pela primeira versão da Constituição.
Veio no entanto a proibi-la a revisão constitucional de 1982 o que não pode deixar de ser tido em conta no caso agora sob juízo É que, nele, se não manteve apenas a habilitação legal para a emissão de regulamentos praeter legem; mais do que isso, tal habilitação só veio a ser cumprida pela Portaria nº207/98, anos após a entrada em vigor da Lei de Revisão Constitucional n.º 1/82.
E não restam dúvidas que a Lei de Revisão pretendeu, justamente, vedar ao legislador este ‘tipo’ de reenvios normativos.
Antes do mais, ficou claro, a partir de 1982, que o direito à criação de escolas privadas era para a CRP uma liberdade fundamental constitucionalmente tutelada. O direito sancionatório previsto pelo artigo 99º do Decreto-Lei nº 553/80 – esse mesmo que remete para regulamento administrativo a definição inovatória, dos ilícitos cometidos;
a graduação das sanções que se lhes deveria aplicar; o procedimento a adoptar na sua aplicação – passou assim a ser direito sancionatório incidente sobre o exercício de uma liberdade fundamental, com todas as consequências que daí advêm quanto à extensão e à densidade da reserva de lei na regulação de matérias que lhe digam respeito. Com efeito, e como muito bens se sabe – e como sempre o tem dito o Tribunal: vejam-se, entre outros, o Acórdão n.º 307/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º volume, p. 499 e ss.), e ainda os Acórdãos nºs 174/93 e 185/96 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) em matérias que impliquem restrições ou condicionamentos essenciais ao exercício de liberdades fundamentais só são constitucionalmente admissíveis os regulamentos de execução.
Mas, além disso, a revisão constitucional de 1982 veio a proibir em geral as habilitações legais para a emissão, em matéria inicialmente regulada por lei, de regulamentos administrativos praeter legem, ou seja, de regulamentos que venham a “Interpretar integrar, modificar, suspender ou revogar” quaisquer preceitos da própria lei “habilitante” (artigo 112.º nº 5, da versão actual da CRP). Este princípio constitucional, introduzido em 1982, não pode deixar de ser considerado como um princípio de índole material ou substancial. O que nele se contém é algo mais do que uma regra ou conjunto de regras relativas a formas ou a competência. Com efeito, do princípio contido no nº 5 do artigo 112º da CRP decorre uma proibição (de reenvios normativos para regulamentos praeter legem) que, para além de incidir directamente sobre o âmbito da conformação do legislador ordinário, limitando-o, reflecte a intenção do regime aprovado em 1982: a de conferir uma outra, e mais intensa, tutela constitucional à reserva da função legislativa – enquanto delimitação daqueles domínios de vida que só podem ser regulados por actos legislativos com exclusão de quaisquer outras fontes normativas –, «reserva» essa que, em última análise, decorre do princípio mais vasto do Estado de direito (que. recorde-se, só veio a ser consagrado pelo texto da Constituição a partir de 1982).
Por todos estes motivos, tem dito o Tribunal, em jurisprudência constante, que a proibição de habilitações legais para a emissão de regulamentos praeter legem afecta directamente, não os regulamentos que tenham sido emitidos ao abrigo de «habilitações legais» indevidas, mas as próprias normas legais que os habilitaram, ainda que estas tenham sido aprovadas antes da revisão de 1982. Entende-se, com «feito, que, nesses casos, tais normas se tornam supervenientemente inconstitucionais, precisamente por ser de ordem material – e não orgânica ou formal – o novo regime constitucional que veio dar outra, e mais intensa, tutela ao principio da reserva de função legislativa (assim, e entre outros, Acórdão n.º 203/86, em DR II série, nº 195, 268 1986, pp. 7978 e ss: Acórdão nº 458/89, em DR, II série, n.º 25, 30/1/1990, pp. 1019 e ss; Acórdão n.º 1/92 em DR I série, n.º 43, 20/2/1992, pp. 1026 e ss; Acórdão n.º 869/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt)
É esta a doutrina que se deve aplicar às normas contidas no artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 553/80, que fixaram, sem a densidade que, ratione materiae, seria constitucionalmente exigida, o regime sancionatório aplicável às escolas privadas.
Prejudicada fica, assim, a questão de saber se as normas da Portaria n.º 207/98 lesam, em si mesmas, algum parâmetro constitucional. A análise do problema torna-se inútil, face ao juízo, que acabou de ser fito, quanto à invalidade das normas legais que habilitaram a sua emissão.
Ora, a questão analisada pelo Tribunal Constitucional é em tudo idêntica ao caso dos autos, também se trata da aplicação de uma pena de multa a uma sociedade proprietária de um estabelecimento de ensino particular e cooperativo no âmbito do sector pelo que, sem necessidade de mais considerações, se tem de concluir que não poderia ser aplicado à nossa situação concreta o disposto no artigo 99º do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro e Portaria n.º 207/98, de 28 de Março. Na verdade foi instaurado ao Autor um procedimento disciplinar e aplicada uma pena que tiveram por suporte normas que se têm considerar inválidas, por “contidas no artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro, que fixaram sem a densidade que ratione materiae, seria constitucionalmente exigida, o regime sancionatório aplicável às escolas privadas”.
O Autor vem ainda imputar ao acto impugnado outros vícios. No entanto, os vícios invocados estão em conexão com as normas que têm de ser consideradas inconstitucionais, pelo que o seu conhecimento se tornaria inútil.
Assim sendo, tem de se concluir que não será aplicar ao caso dos autos o disposto no artigo 99º do Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro, por violação da CRP, pelo que deverá o acto impugnado ser anulado, procedendo a presente acção.
4. Decisão
Pelo exposto julga-se procedente a presente acção e anula-se o acto impugnado.[...]
2. Notificado, o Ministério Público interpôs recurso obrigatório ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea a) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), invocando que a sentença recusara a aplicação da norma do artigo 99º do Decreto-Lei nº 553/80 de 21 de Novembro com fundamento em inconstitucionalidade, resultante de invasão de reserva de função legislativa, com violação do artigo 112º, n.º 5, da Constituição.
O recurso foi recebido. O recorrente alegou e concluiu:
1. A norma do n.º. 1 do artigo 99º do Decreto-Lei nº 553/80, de 21 de Novembro – diploma que constitui o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo e rege, nos termos da Lei nº 9/79, de 19 de Março, o exercício da actividade dos estabelecimentos de ensino particular, com excepção das escolas de nível superior e das modalidades de ensino por ele expressamente excluídas – limita-se a elencar, de acordo com a natureza e gravidade da violação, quais as sanções disciplinares aplicáveis, pelo Ministério da Educação e Ciência, às entidades proprietárias de escolas particulares que violem o disposto no Decreto-Lei – entre elas figurando a multa (alínea b)) – remetendo o nº 4 para portaria, a densificação do regime sancionatório.
2. Dizendo respeito, a matéria em causa – após a revisão constitucional de 1982 –, a uma liberdade fundamental, constitucionalmente tutelada (artigo 43º da Constituição), a norma, ao não densificar suficientemente o regime (remetendo, nº 4, tal densificação para portaria), é inconstitucional, por violação do artigo 112º, nº 5, da Constituição.
Não houve contra-alegação. Corridos os vistos, importa decidir.
3. Em causa está o artigo 99º do Decreto-Lei nº 553/80, de 21 de Novembro. Tal como afirma o preâmbulo da Portaria 207/98, de 28 de Março, o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro, «estabelece normas relativas ao exercício da actividade dos estabelecimentos de ensino particular e cooperativo não superior, definindo, nomeadamente, as sanções a aplicar às entidades proprietárias dos estabelecimentos de ensino e aos directores pedagógicos que violem o disposto naquele diploma». De acordo com o n.º 4 do citado artigo 99º, a cominação das sanções previstas no diploma deve ser objecto de «regulamentação específica, a definir por portaria». Em consequência, a referida Portaria define um conjunto de sanções a aplicar a diversos comportamentos, que tipifica. De acordo com tal previsão, «A pena de multa de valor entre 2 e 20 salários mínimos nacionais é aplicada às pessoas singulares ou colectivas titulares de estabelecimentos de ensino particular e cooperativo que violem disposições legais, nomeadamente quando: ...».
Ora, dando como assente que à recorrente fora aplicada, pelo Ministério da Educação, uma «pena de multa» de acordo com tais preceitos, a sentença recorrida entendeu ser de aplicar a jurisprudência que o Tribunal Constitucional perfilha sobre esta matéria, designadamente quanto à proibição de deslegalização decorrente da revisão constitucional de 1982, visando proibir as habilitações legais para a emissão, em matéria inicialmente regulada por lei, de regulamentos administrativos destinados a interpretar integrar, modificar, suspender ou revogar quaisquer preceitos da própria lei “habilitante” (artigo 112º n.º 5, da actual versão da Constituição). Tal proibição representaria, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, algo mais do que uma regra ou conjunto de regras relativas a formas ou a competência, tratando-se antes de um princípio que, para além de incidir directamente sobre o âmbito da conformação do legislador ordinário, visa estabelecer uma mais intensa tutela constitucional à reserva da função legislativa, afectando não apenas os regulamentos que tenham sido emitidos ao abrigo de «habilitações legais» indevidas, mas as próprias normas legais que os habilitaram, ainda que estas tenham sido aprovadas antes da revisão de 1982.
4. E é absolutamente certa a ponderação do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, aqui recorrido.
Conforme se diz no Acórdão n.º 1/92 (DR I-A de 20 de Fevereiro de 1992), antes de a Constituição prever o (primitivo) artigo 115º, n.º 5, a doutrina administrativa já entendia não ser permitido aos regulamentos procederem à interpretação autentica das normas legislativas. Vigorava, assim, no ordenamento jurídico português, o principio da inadmissibilidade de a Administração interpretar autenticamente disposições legais – princípio este que não era mais do que um corolário do princípio da legalidade da actividade administrativa, condensado na versão originária no n.º 2 do artigo 266º da Constituição de 1976. A revisão constitucional de 1982 elevou a nível constitucional a proibição dirigida ao legislador de habilitar a Administração a emanar regulamentos que interpretem autenticamente uma disposição legal, no sentido de regulamentos dotados de eficácia externa, com força de lei (e, por isso mesmo, vinculativos para os tribunais), podendo fixar para aquela um sentido inovador, sendo, consequentemente inconstitucionais as disposições da lei que autorizam a Administração a fazer aquele tipo de regulamentos.
Ficou, assim, paralisada, por via do n.º 5 do actual artigo 112º da Constituição, a eficácia dos regulamentos que se substituam em alguma medida à lei, por ser constitucionalmente imposto que rigorosamente não dêem vida a nenhuma 'regra de fundo, a nenhum preceito jurídico novo' ou originário; e, por outro lado, serão supervenientemente inconstitucionais as disposições legais que tal autorizem, por violação da citada norma constitucional.
Retomando esta jurisprudência, o Acórdão n.º 398/2008 (DR, II Série de 24 de Setembro de 2008), seguido de perto na decisão ora recorrida, veio afirmar, uma vez mais, que a revisão constitucional de 1982 proibiu as habilitações legais para a emissão, em matéria inicialmente regulada por lei, de regulamentos administrativos que venham a 'interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar' quaisquer preceitos da própria lei 'habilitante', afectando as próprias normas legais que os habilitam, ainda que estas tenham sido aprovadas antes da revisão de 1982, tornando-se tais normas, nesses casos, supervenientemente inconstitucionais, precisamente por ser de ordem material o novo regime constitucional que veio dar outra, e mais intensa, tutela ao princípio da reserva de função legislativa. Em consequência, o acórdão julgou inconstitucionais as normas do artigo 99.º do Decreto Lei n.º 553/80, que fixaram, sem a densidade que, ratione materiae, seria constitucionalmente exigida, o regime sancionatório aplicável às escolas privadas.
É este julgamento que o Tribunal continua a perfilhar. É, assim, de confirmar inteiramente o juízo do tribunal recorrido.
5. Em consequência, o Tribunal decide negar provimento ao recurso. Sem custas.
Lisboa, 15 de Novembro de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Rui Manuel Moura Ramos.