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Processo n.º 603/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por sentença do Tribunal Judicial de Celorico de Basto, proferida em 1 de Fevereiro de 2010, foi o arguido A. condenado, como autor material, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelo disposto no artigo 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos e três meses, com a condição de pagar ao Estado Português a quantia de €259.929,92.
Inconformado, o Arguido recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 22 de Março de 2011, julgou o recurso improcedente,
O Recorrente requereu a aclaração deste aresto, o que foi indeferido por novo acórdão proferido em 16 de Maio de 2011.
O arguido recorreu então para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
«A., arguido nos autos supra identificados, vem nos termos das disposições combinadas dos artºs 69º, 70º nº 1 als b) e nº 2 da Lei Orgânica sobre a Organização Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional no âmbito da Fiscalização Concreta da Constituição, interpor o competente RECURSO para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
O arguido/recorrente/ nas suas alegações de recurso invocou, a violação do princípio da adesão formalmente consagrado no artº 129º do C.P.Penal e concomitantemente a violação do principio da culpa estabelecido no artº 483º do Código Civil, ao considerar a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido condicionada ao pagamento de uma determinada quantia, sem que para tal tivesse sido deduzido pedido de indemnização cível.
Para tanto alegou que a responsabilidade civil emergente da prática de um crime de abuso de confiança fiscal é regulada pela lei civil, para o qual remete quer o artigo 129º do Código Penal quer o artº 3º do RGIT.
Defende-se portanto que a suspensão da execução da pena de prisão ao arguido condicionada ao pagamento de uma determinada quantia só será concebível e compatível com a dedução do competente pedido de indemnização cível, na medida em que o artº 129º do C.P.Penal remete a regulação da indemnização da perda de danos emergentes de crime para a lei civil, maxime o artº 483º do CC. Nestes termos, a responsabilidade do arguido gerente é solidária com a da sociedade em nome da qual agiu, só respondendo se, perante a insuficiência de bens do devedor tributário, a administração fiscal provar que o substituto agiu com culpa quanto àquela insuficiência.
Assim sendo a douta decisão objecto do presente recurso ao entender pela desnecessidade de formulação de pedido cível como condição de suspensão da execução da pena aplicada viola, o principio da adesão previsto no artº 129º do Código Penal e o principio da culpa previsto no artº 483º do Código Civil e, bem assim, os princípios constitucionais da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade da pena
Por estar em tempo, ter legitimidade, ter sido suscitada tal inconstitucionalidade em sede de alegações de recurso, requer se digne admiti-lo, fixando-se o respectivo efeito de subida.»
Foi proferida decisão sumária em 28 de Setembro de 2011 de não conhecimento do recurso, com a seguinte fundamentação:
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge?se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstractamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro acto de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador – não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais.
Por outro lado, tratando?se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
A suscitação processualmente adequada da questão de constitucionalidade implica, no plano formal, que o recorrente tenha cumprido o ónus de clara, precisa e expressa delimitação e especificação do objecto do recurso, envolvendo ainda uma fundamentação, em termos minimamente concludentes, com indicação das razões porque se considera ser inconstitucional a “norma” que pretende submeter à apreciação do tribunal, indicando e deixando claro qual o preceito ou preceitos cuja legitimidade constitucional se pretende questionar.
Acresce que, no caso de pretender questionar apenas certa interpretação de uma dada norma, deverá o recorrente especificar claramente qual o sentido ou dimensão normativa do preceito ou “arco normativo” que tem por violador da Constituição, enunciando cabalmente e com precisão e rigor todos os pressupostos essenciais da dimensão normativa tida por inconstitucional.
Nas conclusões das alegações de recurso interposto pelo arguido para o Tribunal da Relação de Guimarães, a propósito da condição imposta para a suspensão da execução da pena de prisão, o recorrente limitou-se a afirmar:
“5º) Assumindo o montante condicionante da suspensão da execução da pena uma natureza indemnizatória, conforme jurisprudência do Tribunal Constitucional, o mesmo só poderá ser objecto de conhecimento em sede de pedido cível de harmonia com o principio de adesão previsto no artº 71º do Código de Processo Penal;
6º) Por isso, não se mostrando deduzido o pedido de indemnização cível por quem goza de legitimidade, o julgador poderia adoptar, quanto ao montante indemnizatório, uma decisão, que se funda e explicita uma dúvida, por via do principio in dúbio pro reo e no que respeita à “questio juris” poderá adoptar uma decisão que se funda e explicita, igualmente, numa dúvida, por via do principio in dubio pro libertatis.”
E terminou requerendo:
«[…]
c) Que se considere que o montante condicionante à suspensão da execução da pena previsto no artº 14º do R.G.I.T. assume uma natureza indemnizatório, pelo que só poderá ser apurado em sede de pedido cível de harmonia com o princípio da adesão previsto no artº 71º do C.P.Penal;
d) Que se considere que não se mostrando deduzido o pedido de indemnização cível por quem para tal goze de legitimidade, o julgador deverá adoptar, quanto ao montante indemnizatório, uma decisão que se funda e explicita uma dúvida, por via do principio “in dúbio pró reo” e no que respeita à questão iuris poderá adoptar uma decisão que se funda e explicita, igualmente, numa dúvida, por via do principio “in dúbio pró libertatis”.
[…]»
Ora, se atentarmos no teor da motivação do recurso e, concretamente, destas conclusões, constata-se que aí não é suscitada, de forma expressa, clara e perceptível, qualquer questão de constitucionalidade que o recorrente pretenda ver apreciada, nomeadamente a que posteriormente enunciou no requerimento de interposição para o Tribunal Constitucional, uma vez que não se identifica de forma precisa qual a norma ou interpretação normativa reputada de inconstitucional, nem as razões pelas quais a mesma é considerada violadora da Constituição.
Tal forma de proceder é manifestamente insuficiente para que se possa considerar cumprido o ónus, que recai sobre o recorrente, de, caso pretenda vir a recorrer para o Tribunal Constitucional, suscitar previamente, perante o tribunal recorrido, de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa em termos de este a dever apreciar.
É certo que o Recorrente vem suscitar a questão em causa posteriormente no pedido de aclaração do Acórdão do Tribunal da Relação.
Porém, conforme é sabido, os incidentes pós-decisórios, mormente quando são indeferidos, já não são um momento para efectuar a suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, uma vez que, tendo este esgotado o seu poder jurisdicional, não lhe podem ser colocadas questões novas, com excepção daquelas que se reportem às normas processuais reguladoras da admissibilidade e âmbito desses incidentes (vide, com citação de jurisprudência, CARLOS LOPES DO REGO, em “Os recursos de fiscalização concreta na lei e na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, pág. 77-78, ed. de 2010, da Almedina).
Face ao exposto, é manifesto que se não pode considerar que tenha sido “suscitada, pelo recorrente, de modo processualmente adequado, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida”, uma questão de constitucionalidade normativa, conforme exige o n.º 2, do artigo 72.º, da LTC.
Não estando preenchido este requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, deverá ser proferida decisão sumária de não conhecimento, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
O Recorrente reclamou desta decisão, apresentando os seguintes argumentos:
“A) DOS FACTOS:
1º) Por sentença de 01/02/2010 proferida nos Autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular 110/07.3 IDBRG do Tribunal Judicial da Comarca de Celorico de Basto o arguido, ora recorrente, foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelo disposto no artigo 105º, nºs 1, 2, 4 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias, artigo 105º, nºs 1, 2, 4 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, na pena de dois anos e três meses de prisão, a qual foi suspensa por igual período de tempo, com a condição de pagar ao Estado Português a quantia de € 259.929,92;
2º) No processo em questão não foi deduzido o pedido de indemnização civil;
3º) A douta sentença condenatória não se pronuncia e, por isso, omite e não define, a natureza jurídica do montante condicionante da suspensão da pena, ou seja, não define se tal montante assume uma natureza indemnizatória ou pelo contrário assume meio de pagamento de imposto devido;
4º) Dessa decisão foi interposto recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães e em sede de motivação, no que tange a esta questão em particular, formularam-se as seguintes conclusões:
a) A douta decisão ora objecto do presente recurso apenas refere o montante condicionante à suspensão da execução da pena omitindo a natureza de tal montante, ou seja, se a mesma assume uma natureza indemnizatória ou antes assume um meio de pagamento do imposto devido, porque tal requisito é genético e essencial à decisão e ao seu controlo por via de recurso, a mesma padece do vício a que alude o artº 379º alª c) do C.P.Penal e por isso é nula, nulidade esta que desde já se invoca com todas as consequências legais;
b) Assumindo o montante condicionante da suspensão da execução da pena uma natureza indemnizatória, conforme jurisprudência do Tribunal Constitucional, o mesmo só poderá ser objecto de conhecimento em sede de pedido cível de harmonia com o principio da adesão previsto no artº 71º do Código de Processo Penal;
c) Por isso, não se mostrando deduzido o pedido de indemnização cível por quem goza de legitimidade, o julgador poderia optar, quanto ao montante indemnizatório, uma decisão que se funda e explicita uma dúvida, por via do principio in dúbio pró reo e no que respeita à “questão júris” poderá adoptar uma decisão que se funda e explicita, igualmente, numa dúvida por via do principio “in dúbio pró libertatis”.
5º) Por decisão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães de 22 de Março de 2011, decidiu-se:
(...)
No caso vertente, afirma o arguido que o tribunal deveria revelar a natureza do montante que foi fixado como representado a condição da suspensão da execução da pena de prisão estabelecida.
Diremos, desde já, que a tarefa que o arguido atribui ao julgador não é questão de que se devesse ocupar, não é tema que o devesse preocupar. A questão colocada pelo arguido, é no caso, meramente teórica, não possuindo no caso qualquer interesse prático. O tribunal ao decretar a suspensão da execução da pena fez apelo ao disposto no art. 50 do Penal e especificamente materializou o que prevê o nº 1 do art. 51 do mesmo Código. E acima de tudo, aplicou norma especial, o disposto no art. 14 do RGIT que no seu nº 1 refere: “A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de 5 anos subsequentes à Condenação, da prestação tributária e acréscimos legais”
(…)
6º) O recorrente ao abrigo do disposto no artº 425º, nº 4 e 380º, nº 1, b) do Código de Processo Penal, solicitou a aclaração do acórdão, nos termos seguintes:
a) O Recorrente, grosso modo, centrou o seu recurso em saber se o montante de 259,829,92 € condicionante da suspensão da pena, assume meio de pagamento do imposto devido;
b) Porém tal questão não se descortina na douta decisão a qual se reveste de crucial importância pois que da clareza, transparência da argumentação e da natureza dos factos se pode aquilatar das possibilidades de interposição de Recurso do douto acórdão em causa para o Tribunal Constitucional.
c) Entendendo-se que a quantia condicionante à suspensão da pena se traduz em meio de pagamento de imposto devido sem que esteja provada a reversão das dívidas fiscais, estar-se-á a violar vários princípios constitucionais, em especial os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade, da garantia e efectivação dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa na medida em que a assim ser converte-se uma responsabilidade subsidiária e secundária em solidária e principal;
d) Por outro lado, perfilhando-se o entendimento que a quantia condicionante à suspensão assume uma natureza indemnizatória a condenação dos gerentes ou administradores sem que tenha sido deduzido o pedido de indemnização cível, viola quer o principio da legalidade quer o princípio da culpa na medida em que o Código Penal dispõe, no artº 129º que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulado pela lei civil, nomeadamente pelos artigos 483º a 498º do Código Civil. Ora consagrando tais preceitos a responsabilidade solidária, incumbirá à administração fiscal provar que o substituto agiu com culpa quanto à insuficiência de bens do devedor tributário.
e) Ou seja, o douto acórdão não fornece uma posição clara sobre estas questões as quais são essenciais para determinar o objecto do Recurso para o Tribunal Constitucional.
f) É aqui, nestes pontos que reside a obscuridade a que a lei adjectiva alude e que este requerimento visa resolver,
g) O douto acórdão, remete, tão só de forma genérica, para a posição do douto parecer do Ministério Público, sem contudo tomar uma posição concreta sobre tais questões.
h) Ao fim e ao cabo, pretende-se que o julgador, saindo das generalidades concretize e objective se perfilha o entendimento que a quantia condicionante da suspensão da pena traduz um meio de pagamento muito pelo contrário configura uma natureza indemnizatória e, ainda, se a posição assumida não padece de inconstitucionalidade material.
g) Sob pena do douto acórdão padecer de nulidade por falta de fundamentação – art. 379º, nº 1 alº a) do Código de Processo Penal
7º) Por Acórdão em Conferência de 16 de Maio de 2011, foi decidido:
(...)
Ante o exposto, o montante em causa reveste natureza que, efectivamente, não se aconchega nos quadros avançados pelo arguido. A sua natureza é um tertium genius
(...)
8º) A decisão aclarada não responde ao que lhe fora pedido: Se a qualificada natureza jurídica da prestação – tertium genius – padece ou não de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios constitucionais da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade da pena.
B) DO DIREITO:
9º) No âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade dispõem os artºs 280º, nº 1 alº b) da C.R.P. e 70º, nº 1 alº b) da Lei do Processo do Tribunal Constitucional que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos Tribunais que apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
10º) Mau grado não se mostrar consagrado no nosso sistema jurídico/constitucional o recurso de amparo ou queixa constitucional a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem permitido, ainda que de forma lateral ou mitigada, alcançar alguns dos efeitos do recurso de amparo, designadamente quando admite a sindicabilidade das normas com uma determinada interpretação acolhida na decisão recorrida. Na verdade, como o Tribunal Constitucional vem decidindo, através de uma abundante e reiterada jurisprudência, a questão de constitucionalidade tanto pode respeitar a uma norma (ou a uma parte dela) como também à interpretação ou sentido como foi tomada no caso concreto e aplicada (ou desaplicada) na decisão recorrida, ou mesmo a uma norma construída” pelo juiz recorrido a partir da interpretação ou integração de várias normas textuais. Nesses casos pode ver-se uma espécie de quase recurso de amparo” visto que aí o Tribunal Constitucional controla não a constitucionalidade da norma enquanto produto do legislador, mas sim na interpretação! aplicação que o Tribunal recorrido dela fez (Cfr., por exemplo, entre vários, os acórdãos nºs 106/92; 151/94; 507/94; 612/94; 243/95; 342/95; 829/96; 205/99 e 383/2000, em especial os três últimos)
ASSIM SENDO:
Contrariamente ao que vem exposto na douta decisão sumária ora objecto de reclamação, o arguido suscitou de forma adequada, porque de harmonia com o que dispõe o artº 72º, nº 2 da LTC, a inconstitucionalidade normativa.
A questão de fundo do presente recurso de constitucionalidade prende-se prima-facie com uma definição clara e objectiva da natureza jurídica do montante condicionante à suspensão da pena de prisão.
Ou seja, na aferição do objecto do presente recurso de inconstitucionalidade-violação do principio da adesão formalmente consagrado no artº 129º do C.P.Penal e concomitantemente a violação do principio da culpa estabelecido no artº 483º do Código Civil ao considerar a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido condicionada ao pagamento de uma determinada quantia, sem que para tal tivesse sido deduzido pedido de indemnização cível - ontologicamente impõe-se o conhecimento de uma questão substantiva, qual seja o entendimento que perfilha o decisor no que concerne à natureza jurídica do montante condicionante da suspensão da execução, melhor dizendo: Se o decisor perfilha o entendimento que o montante condicionante à suspensão da execução da pena assume uma natureza indemnizatória ou antes assume um meio de pagamento do imposto devido.
Entendendo-se que a quantia condicionante à suspensão da pena se traduz em meio do pagamento do imposto devido, a condição deve ressalvar a reversão de responsabilidades, conforme se decidiu no Ac. da Relação de Guimarães de 2.11.05 proc. 2296/05.
Portanto, nas situações em que não esteja ainda não apurada a responsabilidade obrigacional do sujeito e a sua culpa, não é razoável impor-lhe como condição um pagamento, mesmo que parcial e equilibrado, que só potencialmente lhe poderá vir a dizer respeito. Ao contrário, convertendo uma responsabilidade subsidiária e secundária em solidária e principal, estar-se-ão, a violar vários princípios constitucionais, em especial os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade, da garantia e efectivação dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa.
Entendendo-se, por outro lado, que a garantia condicionante à suspensão assume uma natureza indemnizatória, tal como entendeu o TC no Acórdão nº 587/06 de 31.10.06 proc. 524/06, tal montante condicionante teria que ser objecto de pedido de indemnização cível, na medida em que o que está em causa é a responsabilidade civil do administrador ou gerente emergente da prática de um crime por que foi condenado. E esta determina-se e resolve-se segundo as regras do Código Civil (CC), para que remete o artº 3º do RGIT.
Acontece:
Mau grado tal questão ter sido suscitada no Recurso interposto para o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, o certo é que apenas foi tomada uma decisão frontal acerca do assunto em questão, em sede de Acórdão lavrado em Conferência e, após, pedido de aclaração.
Apesar de ter sido decidido quanto à substância e natureza jurídica da prestação, definindo-a como um tertium genius com natureza jurídica própria, o certo é que não se obteve resposta à questão que em devido tempo, igual e cumulativamente, lhe foi colocado e que consistia em saber se essa mesma qualificação, padecia ou não de inconstitucionalidade material.
Assim:
O objecto do presente recurso prende-se tão só com o meio argumentativo sobre a questão de fundo invocada e cujo núcleo essencial é a inconstitucionalidade material da decisão face à interpretação emprestada pelas instâncias aos artºs 129º do Código Penal e 483º do Código Civil, por violação dos princípios constitucionais da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade da pena.
Nestes termos, requer a V. Exªs que deferindo a presente reclamação se dignem admitir o recurso interposto para esse Venerando Tribunal Constitucional, ordenando, o respectivo prosseguimento e a consequente notificação para a apresentação das respectivas alegações”.
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
Fundamentação
A decisão reclamada recusou o conhecimento do mérito do recurso com fundamento em que o Recorrente não suscitou adequadamente perante o tribunal recorrido a questão de constitucionalidade que agora pretende ver apreciada, uma vez que o deveria ter feito nas alegações de recurso que dirigiu àquele tribunal e não posteriormente no pedido de aclaração que efectuou.
O Reclamante parece agora querer vir dizer que não suscitou nesse momento a questão de constitucionalidade porque não sabia qual a natureza jurídica que o tribunal recorrido iria atribuir ao montante condicionante da suspensão da execução, o que só veio a fazer no despacho que recaiu sobre o pedido de aclaração deduzido nesse sentido.
Contudo, como se verifica da leitura da questão de constitucionalidade colocada ao Tribunal Constitucional pelo Recorrente, essa qualificação jurídica não integra o enunciado da interpretação normativa cuja constitucionalidade se pretende ver fiscalizada, pelo que a mesma não era essencial para o Recorrente ter os dados suficientes para suscitar perante o tribunal recorrido a mesma questão de constitucionalidade que agora vem colocar.
Assim, não tendo o Recorrente suscitado adequadamente perante o tribunal recorrido, a questão de constitucionalidade que agora pretende ver apreciada, não é possível o seu conhecimento, pelo que deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A. da decisão sumária proferida nestes autos em 28 de Setembro de 2011.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios enunciados no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 31 de Outubro de 2011.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.