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Processos n.º 188/11 e 189/11
Plenário
Relator: Conselheiro José Cunha Barbosa
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, com a legitimidade que lhe é conferida pelo artigo 281.º, n.º 2, alínea g) da Constituição da Republica Portuguesa, veio requerer:
a) - a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 19.º, n.º 9, alíneas h), i), q) e t) e n.º 11, 22.º, n.º 1, parte final da alínea b), 30.º, 40.º, 42.º e 95.º, n.º 1, da Lei n.°55-A/2010, de 31 de Dezembro (Orçamento de Estado para 2011)
b) - a apreciação e declaração da inconstitucionalidade e da ilegalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 19.º, n.º 9, alínea r), da mesma lei.
As normas objecto do pedido enunciado, apresentam o seguinte teor:
Artigo 19.º
Redução remuneratória
[…]
9 - O disposto no presente artigo é aplicável aos titulares dos cargos e demais pessoal de seguida identificado:
h) Os deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas;
i) Os membros dos governos regionais;
[…]
q) Os gestores públicos, ou equiparados, os membros dos órgãos executivos, deliberativos, consultivos, de fiscalização ou quaisquer outros órgãos estatutários dos institutos públicos de regime geral e especial, de pessoas colectivas de direito público dotadas de independência decorrente da sua integração nas áreas de regulação, supervisão ou controlo, das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o sector empresarial regional e municipal, das fundações públicas e de quaisquer outras entidades públicas;
r) Os trabalhadores que exercem funções públicas na Presidência da República, na Assembleia da República, em outros órgãos constitucionais, bem como os que exercem funções públicas, em qualquer modalidade de relação jurídica de emprego público, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º e nos n.ºs 1, 2 e 4 do artigo 3.º da Lei n.º 12 -A/2008, de 27 de Fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs 64 -A/2008, de 31 de Dezembro, e 3 -B/2010, de 28 de Abril, incluindo os trabalhadores em mobilidade especial e em licença extraordinária;
[…]
t) Os trabalhadores das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o sector empresarial regional e municipal, com as adaptações autorizadas e justificadas pela sua natureza empresarial;
[…]
11 — O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excepcionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos.
Artigo 22.º
Contratos de aquisição de serviços
1 — O disposto no artigo 19.º é aplicável aos valores pagos por contratos de aquisição de serviços, que venham a celebrar-se ou renovar-se em 2011, com idêntico objecto e a mesma contraparte, celebrados por:
b) […] entidades do sector empresarial local e regional;
Artigo 30.º
Alteração ao Decreto -Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro
Os artigos 5.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 300/2007, de 23 de Agosto, e pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, passam a ter a seguinte redacção:
«Artigo 5.º
[...]
Além do Estado, apenas dispõem de sectores empresariais próprios as regiões autónomas, os municípios e as suas associações, nos termos de legislação especial, relativamente à qual o presente decreto-lei tem natureza supletiva, com excepção da aplicação imperativa do artigo 39.º-A e das normas excepcionais aprovadas ao abrigo dos n.ºs 2 e 3 do artigo 7.º
Artigo 7.º
[…]
1 — ………………………………………………………….
2 — Podem ser fixadas por lei normas excepcionais, de carácter temporário, relativas ao regime retributivo e às valorizações remuneratórias dos titulares de órgãos sociais e dos trabalhadores, independentemente do seu vínculo contratual ou da natureza da relação jurídica de emprego, das seguintes entidades:
a) Entidades públicas empresariais;
b) Empresas públicas de capital exclusiva e maioritariamente público;
c) Entidades do sector empresarial local e regional.
3 — Podem ainda ser fixadas por lei normas excepcionais, de carácter temporário, relativas aos contratos de aquisição de serviços celebrados pelas entidades referidas no número anterior.
Artigo 40.º
Trabalhadores de órgãos e serviços das administrações regionais e autárquicas
1 - Com vista ao cumprimento dos princípios orientadores da gestão dos recursos humanos na Administração Pública está sujeita a parecer prévio, nos termos previstos nos n.ºs 6 e 7 do artigo 6.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs 64-A/2008, de 31 de Dezembro, e 3-B/2010, de 28 de Abril, com as necessárias adaptações, a mobilidade interna de trabalhadores de órgãos e serviços das administrações regionais e autárquicas para os restantes órgãos ou serviços aos quais é aplicável a Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs 64-A/2008, de 31 de Dezembro, e 3-B/2010, de 28 de Abril.
2 - O disposto no número anterior é ainda aplicável ao recrutamento exclusivamente destinado a trabalhadores com prévia relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado, a que se refere os n.ºs 4 e 5 do artigo 6.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs 64-A/2008, de 31 de Dezembro, e 3-B/2010, de 28 de Abril, quando se pretenda admitir a candidatura de trabalhadores de órgãos ou serviços das administrações regionais e autárquicas para os restantes órgãos ou serviços aos quais é aplicável a referida lei.
Artigo 42.º
Dever de informação sobre recrutamento
de trabalhadores nas administrações regionais
1 - No cumprimento do disposto no artigo 9.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, as administrações regionais remetem trimestralmente aos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública informação sobre o número e despesa com recrutamento de trabalhadores, a qualquer título.
2 - Em caso de não cumprimento do disposto no número anterior, é aplicável o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 13.º da Lei Orgânica n.º 1/2007 de 19 de Fevereiro.
3 - O disposto no presente artigo tem carácter excepcional e prevalece sobre todas as disposições legais, gerais ou especiais, contrárias.
Artigo 95.º
Necessidades de financiamento das regiões autónomas
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 10.º da Lei Orgânica n.º 2/2010, de 16 de Junho, que prevalece sobre esta norma, as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira não podem acordar contratualmente novos empréstimos, incluindo todas as formas de dívida, que impliquem um aumento do seu endividamento líquido.
2. - O Requerente, em fundamento dos pedidos formulados, apresentou as suas alegações, através de duas Resoluções, cujo teor se transcreve:
1ª Resolução
'Pela Lei número 55-A/2010, publicada no Diário da República, I Série, n.º 253, de 31 de Dezembro de 2010, foi aprovado o Orçamento do Estado para o ano de 2011 (doravante OE).
Nos termos da Constituição da República (doravante CRP), a Assembleia Legislativa da Madeira pode requerer a declaração de inconstitucionalidade fundada em violação dos seus direitos ou em violação do respectivo estatuto.
O Orçamento do Estado para o ano de 2011 estatui diversas normas violadoras dos direitos da Regiões Autónoma da Madeira bem como do seu Estatuto Político-Administrativo — aprovado pela Lei n.º 13/91, de 5 de Junho, publicada no Diário da República, I-A Série, n.º 128, de 5 de Junho, revisto pela Lei n.º 130/99, publicada no Diário da República, I-A Série, n.º 195, de 21 de Agosto, com a alteração introduzida pela Lei n.º 12/2000, publicada no Diário da República, I-A Série, n.º 142, de 21 de Junho (doravante EPA-RAM).
a) Artigo 19.º, n.º 9, alíneas h), i), q) e t) e número 11 do OE - Redução remuneratória
O artigo 19° estabelece que a partir do dia 1 de Janeiro de 2011 são reduzidas as remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas a que se refere o número 9, nos termos aí definidos.
Mais, faz aplicar a redução remuneratória aos deputados da Assembleia Legislativa da Madeira – alínea h); aos membros do governo da Região Autónoma da Madeira – alínea i); aos gestores públicos, ou equiparados, os membros dos órgãos executivos, deliberativos, consultivos, de fiscalização ou quaisquer outros órgãos estatutários dos institutos públicos de regime geral ou especial, de pessoas colectivas de direito público dotadas de independência decorrente da sua integração nas áreas de regulação, supervisão ou controlo, das empresas públicas de capital exclusivamente ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o sector empresarial regional e municipal, das fundações públicas e de quaisquer outras entidades públicas - alínea q); e aos trabalhadores das empresas públicas de capital exclusivamente ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o sector empresarial regional e municipal, com as adaptações autorizadas e justificadas pela sua natureza empresarial.
Dispondo no seu número 11 que o regime fixado no citado normativo tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excepcionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos.
Ora, nos termos do disposto no número 7 do artigo 231.º da Constituição da República Portuguesa, “o estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas é definido nos respectivos estatutos político-administrativos”
O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira consagra no seu artigo 75.º o estatuto remuneratório dos titulares dos órgãos de governo próprio da Região Autónoma da Madeira.
Estatuindo o número 20 do seu artigo 75°que “o estatuto remuneratório constante da presente lei, não poderá, designadamente em matéria de vencimentos, subsídios, subvenções, abonos e ajudas de custo, lesar direitos adquiridos”.
Ora, as alíneas h) e i) do número 9 do artigo 19.º do OE, violam o número 7 do artigo 231.º da CRP, bem como a alínea a) do número 1 do artigo 37.º e o artigo 75.º, ambos do EPA-RAM.
Com efeito, o regime remuneratório dos membros do governo regional e dos deputados da Assembleia Legislativa da Madeira é matéria de reserva do EPA-RAM, lei de valor reforçado, pelo que a iniciativa legislativa da Assembleia da República, no que concerne à redução remuneratória do vencimento dos cargos supra enunciados é violadora dessa mesma reserva.
Tal violação é ainda agravada pelo número 11 do citado artigo, ao conferir natureza imperativa àquele normativo, dispondo que o mesmo prevalece sobre quaisquer outras normas, especiais ou excepcionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos
Este normativo é de todo ilegal, pois contraria a CRP no que respeita às disposições constitucionais sobre os poderes legislativos acima mencionados, atenta contra a lei de valor reforçado, EPA-RAM, contraria todos os princípios gerais de direito, nomeadamente o princípio de que lei geral não revoga lei especial, e contraria os princípios gerais de direito do trabalho.
As restantes normas ? alíneas q) e t) do número 9 do artigo 19.º?, compreendem matérias da iniciativa legislativa da Região, pelo que violam a alínea a) do número 1 do artigo 227.° da CRP, a alínea c) do artigo 37.°, a alínea qq) do número 1 do artigo 40.°, ambos do EPA-RAM.
«Com efeito, a Região Autónoma da Madeira, ao abrigo do poder legislativo próprio, aprovou, através do Decreto Legislativo Regional número 13/2010/M, de 5 de Agosto, o regime jurídico do sector empresarial da Região Autónoma da Madeira, e através do Decreto Legislativo Regional número 12/2010/M, de 5 de Agosto, o estatuto do gestor público das empresas públicas da Região Autónoma da Madeira.
Nos termos da alínea qq) do artigo 40.º da EPA-RAM, e conforme resulta da alínea c) do número 2 do artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional número 13/2010/M, de 5 de Agosto, a fixação ou redução da remuneração de gestor público das empresas públicas da Região Autónoma da Madeira é matéria da exclusiva competência legislativa desta Região e nela assume uma particular configuração.
Assim sendo, as alíneas q) e t) do número 9 do artigo 19.º ao dispor sobre a redução de remuneração dos gestores públicos e dos trabalhadores do sector empresarial regional, determinando que aqueles normativos têm natureza imperativa, violam de forma grave os princípios constitucionais e o EPA-RAM.
Com efeito, a medida de redução em 5% das remunerações ilíquidas dos gestores públicos, foi aplicada na Região Autónoma da Madeira, com a criação de uma medida idêntica à da Lei número 12-A/2010 de 30 de Junho, contida no Decreto Legislativo Regional número 14/2010/M de 5 de Agosto, que aprovou o Orçamento Rectificativo (vide artigo 12.º daquele diploma).
Diga-se ainda que, na administração regional esta redução incidiu, independentemente do respectivo valor mensal, também sobre as senhas de presença auferidas, em determinadas situações, pelos gestores não executivos.
b) Artigo 22°, número 1, parte final da alínea b) do OE – Contratos de aquisição de serviços
Os contratos de prestação de serviços do sector empresarial regional respeitam a matéria de orientação, direcção, coordenação e fiscalização das empresas públicas, cuja competência é desta Região Autónoma da Madeira.
Assim, relativamente ao sector empresarial regional, a alínea b) do número 1 do artigo 20.º ao dispor sobre a redução remuneratória dos contratos de prestação de serviços que venham a celebrar-se ou a renovar-se, viola o número 1 do artigo 227.º da CRP, e a alínea c) do artigo 37.º e a alínea qq) do número 1 do artigo 40.º, ambos do EPA-RAM.
c) Artigo 30.º do OE – Alteração ao Decreto-Lei n.º 558/ 99, de 17 de Dezembro
O artigo 30.º, que altera os artigos 5.º e 7.º do Decreto-Lei número 558/99, compreendem matérias da iniciativa legislativa da Região Autónoma da Madeira, pelo que violam a alínea a) do número 1 do artigo 227.º da CRP, a alínea c) do artigo 37º, a alínea qq) do número 1 do artigo 40.º, ambos do EPA-RAM.
Com efeito, a Região Autónoma da Madeira, ao abrigo do poder legislativo próprio, aprovou, através do Decreto Legislativo Regional número 13/2010/M, de 5 de Agosto, o regime jurídico do sector empresarial da Região Autónoma da Madeira, e através do Decreto Legislativo Regional número 12/2010/M, de 5 de Agosto, o estatuto do gestor público das empresas públicas da Região Autónoma da Madeira.
Nos termos da alínea qq) do artigo 40.º da EPA-RAM, e conforme resulta da alínea c) do número 2 do artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional número 13/2010/M, de 5 de Agosto, a fixação ou redução da remuneração de gestor público das empresas públicas da Região Autónoma da Madeira, é matéria da exclusiva competência legislativa desta Região e nela assume uma particular configuração.
Assim sendo, o artigo 30.º do OE na parte que altera os artigos 5.º e 7.º do Decreto-Lei número 558/99, que estabelece o regime do Sector Empresarial do Estado, ao dispor sobre a redução de remuneração dos gestores públicos e dos trabalhadores do sector empresarial regional, determinando que aqueles normativos têm natureza imperativa, violam de forma grave os princípios constitucionais e o EPA-RAM.
d) Artigo 40.º do OE - Trabalhadores de órgãos e serviços das administrações regionais e autárquicas
O número 1 do artigo 40.º vem determinar que a mobilidade interna de trabalhadores de órgãos e serviços das administrações regionais e autárquicas para os restantes órgãos ou serviços, está sujeita a parecer prévio nos termos previstos nos n.ºs 6 e 7 do artigo 6.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, alterada pelas Leis nos 64 -A/2008, de 31 de Dezembro, e 3-B/2010, de 28 de Abril, com as necessárias adaptações.
Assim, relativamente ao sector empresarial regional, a alínea b) do número 1 do artigo 20.º ao dispor sobre a redução remuneratória dos contratos de prestação de serviços que venham a celebrar-se ou a renovar-se, viola o número 1 do artigo 227.º da CRP, e a alínea c) do artigo 37.º e a alínea qq) do número 1 do artigo 40.º, ambos do EPA-RAM.
e) Artigo 42° do OE – Dever de informação sobre recrutamento de trabalhadores nas administrações regionais
O artigo 42° do OE impõe às administrações regionais o dever de remeter trimestralmente aos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública informação sobre o número e despesa com recrutamento de trabalhadores, a qualquer título, no cumprimento do disposto no artigo 9.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho.
Esta norma inclui as administrações regionais no controlo de recrutamento de trabalhadores, obrigando a Região Autónoma da Madeira a informar o Ministro das Finanças sobre o número e a despesa relativos ao recrutamento de trabalhadores.
Ora, tal norma afigura-se-nos inconstitucional e ilegal por colidir com a autonomia político-administrativa da Região constitucionalmente consagrada, designadamente com os artigos 225.º e 231.º, número 6 da CRP e com o artigo 55º do EPA-RAM.
f) Artigo 95º, n.º 1 do OE – Necessidades de financiamento das regiões autónomas
Sem prejuízo do disposto no artigo 10.º da Lei Orgânica número 2/2010, de 16 de Junho, que prevalece sobre esta norma, as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira não podem acordar contratualmente novos empréstimos, incluindo todas as formas de dívida, que impliquem um aumento do seu endividamento liquido.
A Região Autónoma da Madeira goza de autonomia financeira consagrada no seu EPA-RAM. A autonomia financeira visa garantir aos órgãos de governo próprio da Região os meios necessários à prossecução das suas atribuições, bem como a disponibilidade dos instrumentos adequados à promoção do desenvolvimento económico e social e do bem-estar e da qualidade de vida das populações, à eliminação das desigualdades resultantes da situação de insularidade e de ultraperiferia e à realização da convergência económica com o restante território nacional e com a União Europeia.
Ora, tal norma contida no OE afigura-se-nos inconstitucional e ilegal por colidir com a autonomia financeira da Região constitucionalmente consagrada, designadamente com os artigos 225.º e 231.º, número 6 da CRP e com o artigo 105° do EPA-RAM.
Assim:
A Assembleia Legislativa da Madeira, no uso do direito consagrado nas alíneas a), b) e d), do número 1, conjugado com a alínea g) do número 2 do artigo 281.º, da Constituição da República, bem como das alíneas a) e c) do número 1 do artigo 97.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, com base nos indicados fundamentos, vem requerer a declaração da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 19.º, número 9, alíneas h) i) q) e t) e número 11 do OE — redução remuneratória; 22.º, número 1, parte final da alínea b) do OE – contratos de aquisição de serviços; 30.º do OE – alteração ao Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro; 40.º do OE – trabalhadores de órgãos e serviços das administrações regionais e autárquicas; 42º do OE — dever de informação sobre recrutamento de trabalhadores nas administrações regionais; e 95º, n.º1 do OE – necessidades de financiamento das regiões autónomas, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Orçamento do estado para 2011).'
2ª Resolução
'A Lei n.º 55-A/2010, publicada no Suplemento do Diário da República, I Série, n.º 253, de 31 de Dezembro, aprova o Orçamento do Estado para o ano de 2011, adiante designado OE.
Nos termos constitucionais e estatutários a Assembleia Legislativa da Madeira pode requerer a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer normas com fundamento em violação dos direitos da Região Autónoma, bem como a declaração da ilegalidade de quaisquer normas constantes de diploma emanado de órgãos de soberania com fundamento em violação dos direitos da Região Autónoma consagrados no Estatuto Político-Administrativo.
A alínea r) do número 9 do artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, que aprova o OE para 2011, aplica a redução remuneratória aos “trabalhadores que exercem funções públicas na Presidência da República, na Assembleia da República, em outros órgãos constitucionais, bem como os que exercem funções públicas, em qualquer modalidade de relação jurídica de emprego público, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º e nos n.ºs 1, 2 e 4 do artigo 3.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, alterada pelas Leis n.ºs 64-A/2008, de 31 de Dezembro, e 3-B/2010, de 28 de Abril, incluindo os trabalhadores em mobilidade especial e em licença extraordinária”.
Numa interpretação extensiva desta norma, ficaram indevidamente abrangidos os trabalhadores da administração pública dos órgãos e serviços regionalizados da Região Autónoma da Madeira.
Ora, face às competências constitucionais e estatutárias, a Região Autónoma da Madeira tem competência própria no regime de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas, nomeadamente de acordo com o estabelecido nos artigos 228.º, n.º 1, 225.º, 227.º, n.º 1, alínea a), da CRP; artigos 37°, alínea e), 40°, número 1, alínea qq) do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira; no Decreto Legislativo Regional n.º 1/2009/M, de 12 de Janeiro, que aplica à Região Autónoma a Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, que estabelece o regime de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas, por força do estatuído no seu n.º 2 do artigo 3°.
Decorrente da conjugação das normas constitucionais e estatutárias em matéria da administração pública regionalizada na Região Autónoma da Madeira, e respectivos trabalhadores, o citado decreto legislativo, estabelece com clareza e sem margem para dúvidas a competência da Região Autónoma em matéria de remunerações.
Pelo que a alínea r) do número 9 do artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, viola princípios e normas da CRP, bem como está ferida de ilegalidade por violar normas do Estatuto Político-Administrativo e de legislação que cabe nas competências da Região Autónoma da Madeira, nomeadamente o citado DLR n.º 1/2009/M, de 12 de Janeiro.
Assim,
A Assembleia Legislativa da Madeira, no uso do direito consagrado nas alíneas a), b) e d) do número 1, conjugado com a alínea g) do número 2 do artigo 281.º, da Constituição da República, bem como das alíneas a) e c) do número 1 do artigo 97.°do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, com base nos fundamentos acima produzidos, vem requerer a declaração da inconstitucionalidade e da ilegalidade da norma contida no artigo 19.º, n.º 9, alínea r) da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, que aprova o OE para 2011, no sentido da mesma norma não ser extensiva aos trabalhadores que exercem funções públicas nos órgãos e serviços regionalizados da Região Autónoma da Madeira”.
3. Em 15 de Março de 2011, o Presidente do Tribunal Constitucional proferiu despacho determinando a incorporação dos autos relativos ao processo n.º 189/11 no processo n.º 188/11.
4. Notificado para se pronunciar, querendo, sobre os pedidos, o Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos, informando que toda a documentação relativa aos trabalhos preparatórios da Lei n.º 55-A/2010 foi anteriormente remetida para o Tribunal Constitucional a coberto do ofício da Assembleia com a referência XI-198/PAR-11/pc de 2 de Março.
5. Elaborado pelo Presidente do Tribunal Constitucional o memorando a que alude o artigo 63.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, cabe agora, discutido que foi aquele em Plenário, decidir em conformidade com a orientação que, então, se fixou.
II. Fundamentação
6. Delimitação e enquadramento dos pedidos
6.1. O Requerente pede a declaração de inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 19.º, n.º 9, alíneas h), i), q) e t) e n.º 11, 22.º, n.º 1, parte final da alínea b), 30.º, 40.º, 42.º e 95.º, n.°1, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Orçamento de Estado para 2011) e, ainda, a apreciação e declaração da inconstitucionalidade e da ilegalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 19.º, n.º 9, alínea r), da mesma lei.
Deve notar-se que em todos os casos invoca normas estatutárias para defender a inconstitucionalidade das normas impugnadas, mesmo para além daquelas normas estatutárias que são necessárias para definir a competência legislativa regional nos termos do artigo 227.º, n.º 1, da Constituição. Não pede, no entanto, a declaração de ilegalidade das normas impugnadas, salvo no que se refere ao pedido relativo à alínea r) do n.º 9 do artigo 19.º da Lei do OE, que apresenta em separado.
Compreende-se todavia que o Requerente apenas peça, no que concerne à generalidade de normas impugnadas, a declaração de inconstitucionalidade. Na verdade, na generalidade das situações em que coloca uma questão de inconstitucionalidade e invoca normas estatutárias estas apenas repetem ou complementam as normas constitucionais. Assim, o artigo 37.º, n.º 1, alínea c), do EPARAM que o Requerente constantemente convoca apenas repete o estabelecido no artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição e o artigo 40.º, alínea qq) do EPARAM, também invocado, limita-se a prever o conteúdo de um dos pressupostos constitucionalmente previstos para o exercício da competência legislativa da Região Autónoma da Madeira. Do mesmo modo, a invocação dos artigos 55.º e 105.º do EPARAM, sem o apoio aliás de qualquer argumentação autonomamente referente a tais preceitos, é recondutível à invocação geral da autonomia política, legislativa e financeira regional convocada aqui pelo Requerente por meio dos artigos 225.º e 231.º, n.º 6, da Constituição. Ficam assim os possíveis fundamentos de ilegalidade consumidos no quadro das questões de constitucionalidade, que são as únicas que o Requerente efectivamente suscita.
Porém, carece de utilidade que, quando se refere, em requerimento separado, à alínea r) do n.º 9 do artigo 19.º da Lei do OE, se alegue simultaneamente a inconstitucionalidade e a ilegalidade da norma. De facto, a natureza dos parâmetros invocados é, no essencial, idêntica à natureza dos parâmetros invocados para fundamentar a inconstitucionalidade das outras normas impugnadas e, muito em especial, das normas contidas nas alíneas q) e t) do n.º 9 do artigo 19.º da lei do OE.
Daí que, também neste caso a questão da ilegalidade deva ficar consumida pela questão da inconstitucionalidade. Com efeito, as normas estatutárias que o Requerente invoca apenas repetem ou complementam o conteúdo de normas constitucionais, sendo que as normas legais não estatutárias a que alude não são parâmetro de ilegalidade de que o Tribunal possa tomar conhecimento.
Acresce que o Requerente pede, genericamente, a inconstitucionalidade do artigo 30.º da Lei do OE, que altera os artigos 5.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 300/2007, de 23 de Agosto, e pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (diplomas estes que estabelecem o regime jurídico do sector empresarial do Estado e das empresas públicas). Todavia, deve notar-se que o pedido é restrito, pela sua própria fundamentação, à parte em que tal norma se refere às “empresas públicas da Região autónoma da Madeira e à redução de remuneração dos gestores públicos e dos trabalhadores do sector empresarial regional'.
O Requerente invoca, ainda, a inconstitucionalidade de uma norma da Lei do OE mas não apresenta qualquer norma ou princípio constitucional para fundamentar tal inconstitucionalidade, o que ocorre quando impugna o artigo 40.º da lei do OE e apenas se funda no artigo 80.º do EPARAM. Por isso, a questão que aí coloca, como o próprio reconhece na motivação, é apenas de ilegalidade, pelo que o pedido deve apenas ser considerado em conformidade com a mesma, razão pela qual o Tribunal não irá, pois, conhecer da questão suscitada enquanto questão de inconstitucionalidade, mas tão só dela conhecerá enquanto questão de ilegalidade por eventual violação de norma estatutária.
6.2. Importa notar, desde já, que todas as medidas inseridas no Orçamento de Estado para 2011, agora impugnadas, têm um objectivo comum que é o de, no contexto macroeconómico de crise financeira, operarem uma redução global do excesso da dívida pública e dos efeitos negativos que lhe estão associados (como, recentemente, se deixou já afirmado no acórdão n.º 396/2011, de 21.09.2011, deste Tribunal, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 199, de 17.10.2011). Essa finalidade global é visada quer directamente através da imposição de limites ao endividamento regional (artigo 95.º, n.º 1, da Lei do OE), quer indirectamente através de uma contenção das despesas com pessoal e também com a aquisição de serviços ligados aos diversos sectores da Administração Pública (artigos 19.°, n.º 9, alíneas h), i), q) e t) e n.º 11, 22.º, n.º 1, parte final da alínea b), 30.º, 40.º e 42°).
Pode, na verdade, ler-se no Relatório do Orçamento de Estado para 2011:
'Embora se possa argumentar que a evolução do mercado de dívida soberana, em especial nos países do sul da Europa, se possa explicar, em parte, por movimentos de contágio, deve igualmente reconhecer-se que ela traduz, em termos fundamentais, as vulnerabilidades estruturais apresentadas por alguns países das quais se salienta não apenas a sustentabilidade de médio/longo prazo das finanças públicas, como também o crescimento potencial, a competitividade, e os desequilíbrios macroeconómicos externos. Portugal não representa, neste contexto, uma excepção. Com efeito, nas últimas décadas, a economia portuguesa tem apresentado um hiato entre poupança e investimento, traduzido em sucessivos défices da balança corrente e, consequentemente, num acumular de dívida externa (p. 39).
[…] a recessão económica vivida em 2009, bem como as medidas anti-crise adoptadas nesse mesmo ano, tiveram um efeito negativo sobre o saldo das contas públicas em Portugal que importa corrigir. Assim, e como acima referido, foi decidido […] acelerar o processo de consolidação e rever as metas para o défice e para a dívida pública perante um contexto adverso de funcionamento dos mercados, com consequências no custo de financiamento e riscos acrescidos para Portugal' (p. 40).
[…]
Portugal enfrenta renovados desafios em termos de rápida, mas sustentadamente, consolidar as suas finanças públicas. Nesse sentido o reequilíbrio das contas públicas – através da redução do défice e da dívida pública – é uma prioridade imediata […], fundamental para repor o ambiente de confiança dos investidores e, assim, assegurar condições de financiamento da economia portuguesa (p. 43).
As medidas adoptadas são, numa palavra, medidas de austeridade, que visam vigorar para todo o território nacional, incluindo as regiões autónomas, pelo facto dos problemas económico-financeiros que as justificam dizerem respeito a toda a economia nacional. Na verdade, a contenção orçamental e o controlo da dívida pública que elas almejam têm reflexos não apenas ao nível do Estado e da Administração Pública mas de toda a economia nacional. É o que claramente resulta do Relatório do Orçamento de Estado para 2011 (p. 39):
'De facto, a situação no mercado de dívida soberana, reflectindo-se na subida dos prémios de risco das taxas de juro da dívida pública de alguns Estados membros da UE […], tem implicações no aumento do custo de financiamento não apenas desses mesmos Estados, mas também das instituições financeiras e, consequentemente, das famílias e empresas.
De acordo com o Requerente, porém, estas medidas de austeridade tomadas imperativamente a nível nacional pela Lei do OE violam a autonomia regional e os parâmetros constitucionais e estatutários que a consubstanciam. Vejamos, então, se de facto assim será.
7. Reduções remuneratórias previstas no artigo 19.º da Lei do OE
O Requerente impugna as alíneas h), i), q), r) e t) do n.º 9 do artigo 19.º que determinam que as reduções remuneratórias previstas no n.º 1 do mesmo artigo 19.º (e que afectam numa percentagem que varia entre 3,5 e 10% as remunerações totais ilíquidas mensais de valor superior a € 1500) se apliquem, respectivamente, às pessoas que exerçam funções nos órgãos de governo próprios das regiões autónomas (alíneas h) e i)) ou que trabalhem ou exerçam funções na administração pública regional, incluindo o sector empresarial regional (alíneas q), r) e t)).
Todas estas alíneas são postas em causa na sua constitucionalidade não apenas em si mesmas mas especialmente pelo facto de o n.º 11 do artigo 19.º da Lei do OE lhes conferir carácter imperativo, prevalecendo sobre quaisquer outras normas de sentido contrário.
Os fundamentos apresentados pelo Requerente são todavia de dois tipos diversos.
Por um lado, impugna as reduções remuneratórias previstas nas alíneas i) e h) do n.º 9 do artigo 19.º da Lei do OE, a partir do n.º 7 do artigo 231.º da Constituição de acordo com o qual 'o estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas é definido nos respectivos estatutos político-administrativos'.
Por outro lado, impugna as reduções remuneratórias previstas nas alíneas q), r) e t) do mesmo n.º 9 do artigo 19.º da Lei do OE, por violação da autonomia legislativa regional e mais especificamente por violação da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição ? nos termos da qual as regiões autónomas têm o poder de 'legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania' ? em conjugação com a alínea qq) do artigo 40.º do EPARAM ? de acordo com o qual para efeitos de definição dos poderes legislativos da Região constitui matéria de interesse específico a 'organização da administração regional e dos serviços nela incluídos […]'.
Vejamos, primeiro a questão da reserva de estatuto e, depois, a questão da autonomia legislativa regional.
7.1. O Requerente começa por impugnar as alíneas h) e i) do n.º 9 do artigo 19.º, com os efeitos previstos no nº 11 deste artigo. Da conjugação destes preceitos decorre que as reduções remuneratórias previstas no n.º 1 do mesmo artigo 19.º ? e que afectam numa percentagem que varia entre 3,5 e 10%, as remunerações totais ilíquidas mensais de valor superior a € 1500 ? se apliquem, de forma imperativa, respectivamente, aos 'deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas' e aos 'membros dos governos regionais'.
Invoca como parâmetro a reserva de estatuto (artigo 231.º, n.º 7 da Constituição).
Colocada assim a questão, pode afirmar-se que um problema perfeitamente análogo já foi objecto de resolução por este Tribunal, no recente acórdão n.º 251/11, não se vislumbrando nem tendo, agora, sido apresentados quaisquer novos argumentos que levem a alterar a jurisprudência então firmada.
Na verdade, o problema surge em contornos normativamente idênticos ao que sucedeu no Processo n.º 862/2010 em que se questionava a admissibilidade das reduções remuneratórias de 5% impostas, pelas alíneas g) e h) do nº 2 do artigo 11.º da Lei nº 12-A/2010, de 30 de Junho, aos 'deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas' e aos 'membros dos governos regionais', precisamente à luz da reserva de estatuto estabelecida no artigo 231.º, n.º 7, da Constituição. O processo deu origem ao acima mencionado Acórdão n.º 251/11, nele se tendo decidido pela não inconstitucionalidade das mencionadas reduções remuneratórias, fazendo uma distinção entre 'regime remuneratório' e 'fixação do montante da remuneração'.
São estes os termos do acórdão:
'…quanto à questão de saber em que é que consiste o estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões e a sua “definição”, disse-se, nomeadamente nos Acórdãos nºs 92/92, 637/95, 382/2007, 10/2008 e 525/2008, que a expressão incluiria seguramente o estatuto dos deputados regionais, na fixação do regime dos seus deveres, responsabilidades, incompatibilidades e impedimentos e, reciprocamente, na previsão dos seus direitos, regalias e imunidades.
Por seu turno, e quanto à questão de saber se o estatuto remuneratório [dos titulares de órgãos de governo próprio das regiões] ainda se incluiria no âmbito da categoria ampla atrás definida, disse-se especialmente no Acórdão nº 637/95:
“[A] Constituição exige que o estatuto d[os] titulares dos órgãos de governo próprio regional se ache definido no estatuto político-administrativo. Há, pois, uma reserva de lei estatutária na matéria. A definição desse estatuto tem de abranger os deveres, as responsabilidades e incompatibilidades desses titulares, bem como os respectivos direitos, regalias e imunidades. O estatuto remuneratório ou regime de remuneração abrange um conjunto de direitos e regalias. Por isso, a definição desse regime remuneratório há-de ser aprovada pela Assembleia da República, por iniciativa do órgão legislativo regional (…)”.
Contudo, na mesma decisão estabeleceu-se ainda a diferença entre definição de regime remuneratório e determinação do quantum da remuneração, esclarecendo-se que só a primeira (que consistiria apenas na fixação de um critério de remuneração, ou na fixação dos seus limites mínimos e máximos) faria parte da “matéria” reservada à lei estatutária.
A argumentação do Tribunal, para proceder a esta distinção, fundou-se sobretudo na versão dada pela Lei Constitucional nº 1/82 à então alínea g) do artigo 167.º da Constituição, que dizia ser da competência absoluta da Assembleia da República legislar sobre “estatuto dos titulares dos órgãos de soberania e do poder local, do Conselho de Estado e do Provedor de Justiça, incluindo o regime das respectivas remunerações” (itálico nosso).
Na verdade, e comentando esta disposição, escrevia na altura a doutrina:
“O âmbito da matéria da alínea g) surge claramente delimitado por referência aos artigos 113.º e 120.º [hoje, artigos 110.º e 117.º]. Trata-se de definir o regime de responsabilidade dos titulares dos cargos aí mencionados (nomeadamente da responsabilidade criminal), bem como os deveres, responsabilidades e incompatibilidades e, reciprocamente, os direitos, regalias e imunidades, incluindo o regime remuneratório (mas não necessariamente a fixação do seu montante). Curioso é notar a omissão da menção dos titulares dos órgãos das regiões autónomas; todavia, o estatuto deles há-de constar do respectivo estatuto regional [artigo 233.º nº 5 (hoje, artigo 231.º, nº 7)], cuja aprovação também pertence em exclusivo à AR”. (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, 2º volume, p. 193, nota X ao artigo 167.º)
A partir desta distinção entre regime remuneratório e fixação do montante da remuneração, feita a propósito da interpretação da, à altura, alínea g) do artigo 167.º da Constituição (entendimento esse respaldado pelos trabalhos preparatórios da revisão constitucional, onde também se deixara claro que reservado à competência da Assembleia da República ficaria apenas o regime ou o critério da remuneração dos titulares dos órgãos, mas não o montante da mesma: Diário da Assembleia da República, II Série, nº 39, de 15 de Janeiro de 1982, p. 852-65), resolveu o Tribunal, no já referido Acórdão nº 637/95, que reservada às leis estatutárias estaria “a indicação de um critério suficientemente preciso do modo de determinação do quantum remuneratório a que têm direito os deputados regionais” ou “a variação entre o minimus e o maximus, para se usar utilizar uma expressão sugestiva”, mas não a fixação da remuneração, em si mesma considerada'.
Desenvolvendo estes fundamentos, viria o Tribunal a explicitar que o estatuto remuneratório dos titulares de cargos políticos dos órgãos de governo próprio da região é fixado, no EPARAM, por equiparação com o estatuto remuneratório de determinados titulares de cargos políticos nacionais, pelo que a alteração do montante concreto do vencimento mensal ilíquido acaba por ser uma decorrência da aplicação dos critérios do próprio EPARAM. Diz-se no acórdão:
'as alíneas g) e h) do nº 2 do artigo 11.º da Lei nº 12-A/2010, ao incluírem na lista dos titulares de cargos políticos sujeitos à redução excepcional de vencimento ilíquido mensal prevista nesta disposição os titulares dos cargos políticos regionais, não vieram exprimir uma opção legislativa autónoma face ao que está definido no artigo 75.º do EPARAM. Para utilizar a linguagem da Requerente, não vieram dispor utilmente sobre o estatuto remuneratório daqueles mesmos titulares. Limitaram-se antes a decidir em harmonia com o critério básico sobre o qual assenta o referido estatuto, critério básico esse que, aliás, sempre impediria o legislador nacional (vinculado pelo valor reforçado das leis estatutárias) de quebrar, nomeadamente através do disposto no nº 3 do artigo 11.º, a ligação referencial entre o vencimento dos titulares de cargos políticos regionais e o vencimento dos ministros e dos secretários e subsecretários de Estado'.
Assim, conclui incisivamente o acórdão que:
'Deste modo, e em suma, não lesam as normas impugnadas a reserva de estatuto, consagrada no artigo 231.º, nº 7, da Constituição da República Portuguesa.'
Como se disse, não foi apresentada qualquer razão que leve a alterar a jurisprudência contida no acórdão n.º 251/11, acabado de citar. Deste modo, deve concluir-se que não existe no caso qualquer violação da reserva de estatuto estabelecida no artigo 231.º, n.º 7, da Constituição.
Acresce ainda que a imperatividade do artigo 19º, ao não permitir a fixação do montante concreto da remuneração dos titulares dos órgãos de governo próprio da Região em termos diversos dos nele estabelecidos, não põe em causa a autonomia legislativa regional nos termos e com a amplitude que a Constituição traça. De facto, e desde logo, não existe nenhuma alínea específica no artigo 40º do EPARAM que faça referência concreta e objectiva a esta matéria, pelo que ela não poderá haver-se por “enunciada no respectivo estatuto político-administrativo”, para efeitos do artigo 227º, nº. 1, alínea a) da CRP. Caso se invocasse para tal efeito a cláusula geral da alínea vv) seria então necessário demonstrar que a matéria respeita exclusivamente à Região ou nela assume uma configuração específica e ainda que é, nos termos do acima referido preceito constitucional, de “âmbito regional”, algo que, pelas razões de seguida aduzidas, é de afastar.
7.2. O Requerente impugna, ainda, as alíneas q), r) e t) do n.º 9 do artigo 19.º, da Lei do OE, com a imperatividade que decorre do n.º 11 do mesmo artigo legal, por violação da autonomia legislativa regional (artigo 227.º, n.º 1, al. a), da Constituição e 40.º, al. qq) do EPARAM). E a mesma questão da violação da autonomia legislativa regional se pode suscitar, como vimos, a respeito da alíneas h) e i) do mesmo n.º 9 do artigo 19.º (com base na citada norma constitucional do artigo 227.º em conjugação com a cláusula geral da alínea vv) do artigo 40.º do EPARAM que se refere a 'matérias que respeitem exclusivamente à Região ou nela assumam uma configuração específica'), uma vez que também relativamente às pessoas mencionadas em tais alíneas vale imperativamente a fixação concreta da remuneração nos termos dos n.ºs 1 e 11 do artigo 19.º da Lei do OE.
A referida imperatividade impede as Regiões Autónomas de legislarem sobre esta matéria em sentido que seja contrário à legislação nacional constante do OE. Ora o Requerente considera que se tratará de uma matéria de 'âmbito regional' para efeitos do artigo 227.º, n.º 1, al. a) da Constituição.
A este respeito deve começar por se dizer que, no caso em apreciação, é no mínimo duvidoso que a matéria em causa esteja no quadro de competências especificamente atribuídas à Região Autónoma. Com efeito, a alínea qq) do artigo 40.º do EPARAM, que o Requerente invoca, refere-se apenas à 'organização da administração regional e dos serviços nela inseridos'. Ora o que está aí em causa é a estrutura organizativa da administração regional em diferentes entidades e serviços. Não são, como sucede nas normas agora impugnadas, as remunerações das pessoas que trabalhem ou exerçam funções na administração pública regional, incluindo o sector empresarial regional (alíneas q), r) e t) do nº 9 do referido artigo 19º). Na melhor das hipóteses, seria aqui invocável a já referida cláusula geral da alínea vv) do artigo 40.º do EPARAM.
Seja como for, nunca alguma dessas menções estatutárias seria de molde a impedir a Assembleia da República de legislar sobre a matéria e, mais ainda, de o fazer com a força imperativa que conferiu aos preceitos que aprovou, tudo isto nos termos da sua competência legislativa genérica que 'é conatural à própria natureza e sentido histórico da assembleia representativa' (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., vol. II, Coimbra 2010, p. 290).
É verdade que a ideia de que 'de acordo com os princípios democrático-representativos convencionais, a ela [à Assembleia da República] devia caber em princípio toda a competência legislativa e nenhum domínio lhe estaria vedado' sofre um desvio pelo facto de as Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas gozarem concorrencialmente de poderes legislativos no seu domínio próprio de actuação, nos termos dos artigos 227.º, n.º 1, e 228.º da Constituição (ver, novamente, Gomes Canotilho e Vital Moreira, loc. cit.).
Deve, no entanto, deixar-se claro que os órgãos de soberania podem legislar para todo o território nacional, incluindo as regiões autónomas. E deve, além disso, dizer-se que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem excluído que o conceito de 'âmbito regional' tenha uma componente meramente 'territorial', devendo atender-se aos fundamentos, aos fins e aos limites que a Constituição assinala à autonomia regional, no seu artigo 225.º. É em especial o que se retira do Acórdão n.º 258/07:
“ … Este “âmbito regional”, tendo necessariamente uma componente territorial, inerente à natureza de “pessoas colectivas territoriais” que o corpo do n.º 1 do artigo 227.º da CRP associa às regiões autónomas (cf. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo V – Actividade Constitucional do Estado, 3.ª edição, cit., p. 401), não se esgota, porém, nessa componente. Há, na verdade, que atender aos fundamentos, aos fins e aos limites que a Constituição assinala à autonomia regional, no seu artigo 225.º: os fundamentos dessa autonomia assentam nas características geográficas, económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da Madeira e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares; os fins consistem na participação democrática dos cidadãos, no desenvolvimento económico-social, na promoção e defesa dos interesses regionais, mas também no reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses; os limites derivam da não afectação da integridade da soberania do Estado e do respeito do quadro constitucional.
Assim, a circunstância de a legislação regional se destinar a ser aplicada no território da Região não basta, só por si, para dar por verificado o apontado requisito. O modelo constitucional de repartição da competência legislativa continua a não assentar numa “divisão territorial do poder legislativo, com transferência de matérias do centro para a periferia” (MARIA Benedita Urbano, “Poder legislativo regional …”, cit., p. 77). Nesse “âmbito regional” não podem deixar de relevar considerações sobre a matéria sobre que versa essa normação, atenta a justificação material do regime autonómico constante do artigo 225.º.
O território da Região é também (ou em primeira linha) território do Estado, nele vigorando simultaneamente a ordem jurídica estadual e a ordem jurídica regional, só se podendo considerar como integrando o âmbito desta (o “âmbito regional”) a regulação de situações que não afectem, atentas as pessoas (designadamente, pessoas colectivas públicas) envolvidas e os interesses e valores em jogo, a ordem jurídica nacional. …”
No caso, estamos perante uma medida legislativa que almeja dar uma resposta institucionalmente abrangente a um problema de emergência orçamental e financeira de amplitude nacional e que no entender do legislador parlamentar ? enquanto órgão democrático representativo do Estado unitário ? só é susceptível de ser combatido com base em medidas de âmbito nacional. Posição esta perfeitamente compreensível, porquanto o comportamento dos mercados financeiros, no que respeita à concessão de crédito e à fixação das taxas de juros, depende da confiança que estes depositam na capacidade dos Estados e das entidades públicas com ele financeiramente relacionadas pagarem pontualmente as suas dívidas no momento do seu vencimento. Ora tal confiança assenta, desde logo, na credibilidade financeira que os Estados demonstram não apenas indirectamente por via da competitividade das suas economias, mas também, directamente, por via da redução do seu défice público.
É neste quadro que aparecem justificadas as reduções remuneratórias previstas no OE para 2011. Diz-se, de facto, no Relatório do Orçamento de Estado para 2011 (p. 45):
'Uma medida como a da redução remuneratória só é adoptada quando estão em causa condições excepcionais e extremamente adversas para a manutenção e sustentabilidade do Estado Social. […]
Com efeito, importa […] considerar a indispensável sustentabilidade das contas públicas e o inerente interesse público da mesma, que […] é um interesse constitucionalmente protegido, sobretudo, e de forma decisiva, numa conjuntura em que o reequilíbrio das contas públicas se afigura essencial para a confiança dos mercados financeiros internacionais no esforço de consolidação orçamental que está a ser desenvolvido pelo Governo, com as consequentes repercussões sobre os juros, o custo da dívida pública e a capacidade de financiamento da economia nacional”.
Trata-se, nestas medidas de redução remuneratória, de uma forma, prevista em conjunto articulado com diversas outras (explicitadas no Relatório do Orçamento de Estado para 2011, esp., p. 41), de reduzir a despesa pública, e consequentemente o défice orçamental, operando simultaneamente uma contenção do aumento da dívida pública.
Utilizando as palavras do Acórdão n.º 567/04, podemos dizer que as medidas de redução remuneratória se contam no quadro de um conjunto mais vasto de medidas de redução da despesa e do défice públicos que visam fazer face à existência de “sérios riscos com projecção na economia e nas finanças do todo nacional, como ser[á] o caso de aumento das taxas de juro do mercado ou de elevada repercussão nos compromissos internacionais assumidos pelo Estado no sentido de diminuir os défices orçamentais e o peso da dívida pública face ao PIB”.
Acontece que a sustentabilidade das contas públicas, com a correspondente redução do défice e o controlo da dívida, é algo que, no entender justificável do legislador parlamentar, só poderá ser eficazmente garantido se for feito, não apenas ao nível do Estado, mas também, articuladamente, ao nível das entidades públicas que estão, de uma forma ou de outra, financeiramente relacionadas com esse mesmo Estado. É algo que só pode ser eficazmente levado a cabo num quadro de 'unidade nacional' e de 'solidariedade entre todos os portugueses' e através de medidas universalmente assumidas enquanto actos de 'soberania do Estado' legitimados pela sua própria subsistência financeira bem como da de toda a economia nacional (cfr. artigo 225.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição).
Deste modo, será de considerar constitucionalmente legítimo que o poder legislativo soberano do Estado assuma que as medidas exigidas por uma urgente consolidação das contas públicas não devam ser tomadas isolada e descontextualizadamente apenas em partes do território nacional ou valendo apenas para parte dos cidadãos.
Poderia porventura dizer-se que uma tal posição restauraria, pelo menos em parte, a ideia de 'leis gerais da república' que foi propositadamente eliminada do texto constitucional em 2004. Mas a verdade é que, não obstante o desaparecimento das leis gerais da república como categoria geral, não é sustentável ? à luz dos fundamentos, finalidades e limites da autonomia regional enunciados nomeadamente no artigo 225.º da actual Constituição ? a ideia de que nunca, e em circunstância alguma, possa haver medidas legislativas que muito embora não estejam textualmente no domínio da reserva de competência da Assembleia da República sejam, por motivos de relevante interesse nacional, tomadas imperativamente para todo o território nacional.
É nesta linha que o Tribunal tem admitido a existência de matérias que por sua natureza devem ficar reservadas aos órgãos de soberania, isto é, que constituem uma reserva de competência legislativa do Estado ou, se se preferir, da República. Como ainda actualmente afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, Coimbra 2010, p. 661:
'Matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania são, afinal, a reserva de competência legislativa do Estado, compreensivelmente furtada à intervenção regional. Integram-na desde logo, explicitamente, as que constituem a competência própria da AR, recortada nos arts. 161.º, 164.º e 165.º […] .
Mas esta reserva da República não pode limitar-se a estas matérias devendo abranger por inerência outras matérias que não podem, pela sua natureza eminentemente nacional, ser reguladas senão por órgãos legislativos do Estado'.
Diga-se, ainda, que mesmo quem tenha entendimento menos consonante, com o citado, não deixa, todavia, de reconhecer a possibilidade de 'limites implícitos à competência legislativa regional' e a possibilidade de uma 'violação autónoma dos princípios da soberania e da unidade política do Estado' (Rui Medeiros, Anotação ao artigo 228.º, in Constituição Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo III, Coimbra, 2007, p. 359, na linha de Maria Lúcia Amaral, 'Questões Regionais', in Estudos de Direito Regional, Lisboa 1997, p. 290-291).
Todavia, não se pretende com isto afirmar que as Assembleias Legislativas Regionais estejam impedidas de tomar medidas de contenção da despesa orçamental a nível regional. Pretende-se, apenas, dar por assente que não se pode excluir, dadas as circunstâncias financeiras e macroeconómicas anteriormente descritas, que a Assembleia da República, enquanto órgão de soberania democraticamente representativo do Estado no seu todo, tome imperativamente medidas, de âmbito nacional, com vista à contenção global da despesa orçamental dos diversos subsectores. Poderá certamente fazê-lo por força da sua competência legislativa genérica (artigo 161.º, alínea c), da Constituição). E poderá ainda fazer prevalecer imperativamente as suas medidas em todo o território nacional, em particular quando se possa considerar que tais medidas consubstanciam parte relevante de um desígnio nacional global, nomeadamente quando se possa dizer que as medidas tomadas pelo legislador parlamentar visam, em conjunto articulado com outras, provocar efeitos de escala nacional e de repercussão internacional prevenindo assim os prejuízos (ou o aumento dos prejuízos) associados ao défice e à dívida pública excessivos. Nesse sentido, o legislador poderá estabelecer medidas orçamentais a vigorar imperativa e soberanamente para todo o território nacional, em vista da sua mais lograda eficácia, segundo princípios de 'solidariedade' e de 'unidade' (artigo 225.º, n.ºs 2 e 3, e artigo 6.º, ambos da Constituição).
Não é, portanto, a matéria em si mesma que 'não pode, pela sua natureza eminentemente nacional, ser regulada senão por órgãos legislativos do Estado', mas são antes circunstâncias macroeconómicas de âmbito nacional e internacional que determinam, sob pena de total ineficácia, que as medidas concretamente tomadas pelo Estado possam adquirir imperatividade a nível de todo o território nacional, tendo, até, em vista, como se afirmou já, «… o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses» e, bem assim, «…a integridade da soberania do Estado …» (cfr. artigo 225.º, n.os 2 e 3 da Constituição).
Acrescente-se, por fim, na decorrência do que se disse, que dadas as fortes razões de interesse público nacional invocadas, não se pode constitucionalmente excluir a prevalência legal das normas agora impugnadas sobre outras normas nacionais e regionais invocadas pelo Requerente (como as constantes da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, do Decreto Legislativo Regional n.º 13/2010/M, de 5 de Agosto, ou do Decreto Legislativo Regional n.º 1/2009/M, de 12 de Janeiro). Essas normas são derrogadas na medida em que contrariem o regime imperativamente estabelecido pelas normas do OE relativas a reduções remuneratórias.
Nestes termos, e em conclusão, não se pode considerar que as reduções remuneratórias imperativamente estabelecidas a nível nacional no artigo 19.º da Lei do OE, e nomeadamente nas alíneas h), i), q), r) e t) do n.º 9 desse mesmo artigo 19.º, constituam ofensa da autonomia legislativa regional, consagrada no artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, em conjugação com as alíneas qq) e vv) do artigo 40.º do EPARAM.
8. Outros preceitos da Lei do OE respeitantes à fixação de remunerações ou contrapartidas contratuais
Para além do artigo 19.º da Lei do OE para 2011, o Requerente impugna também outras disposições dessa mesma lei (referimo-nos, em especial, ao artigo 22.º, n.º 1, al. b) e ao artigo 30.º) que fixam ou permitem na prática fixar, a nível nacional, medidas de contenção das despesas com pessoal ou dos valores pagos por contratos de aquisição de serviços.
Assim, o artigo 22.º, n.º 1, alínea b), da Lei do OE, determina que o disposto no artigo 19.º dessa mesma lei “é aplicável aos valores pagos por contratos de aquisição de serviços, que venham a celebrar-se ou renovar-se em 2011, com idêntico objecto e a mesma contraparte, celebrados por […] entidades do sector empresarial [...] regional”.
Por seu turno, o artigo 30.º da Lei do OE altera os artigos 5.º e 7.º, n.ºs 2 e 3, da Lei do Sector Empresarial do Estado e das Empresas Públicas (Decreto-lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro) e deve ser lido em conjunto com o artigo 31.º da Lei do OE que aditou o artigo 39.º-A à mencionada Lei do Sector Empresarial do Estado e das Empresas Públicas. Esta lei começa por afirmar expressamente, no artigo 5.º, a sua supletividade em relação à legislação especial regional. Mas a redacção agora introduzida nesse mesmo artigo 5.º e aqui impugnada afirma a imperatividade de dois dos seus preceitos: o artigo 39.º-A e o artigo 7.º, nos 2 e 3.
A primeira destas disposições ? o artigo 39.º-A ? equipara, para efeitos de prestações retributivas acessórias (subsídio de refeição, abono de ajudas de custo e transporte por deslocações), os titulares de órgãos de administração ou de gestão bem como os trabalhadores das entidades públicas empresariais, empresas públicas de capital exclusiva e maioritariamente público e entidades do sector empresarial regional aos trabalhadores em funções públicas. E manda aplicar o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas ao trabalho suplementar e ao trabalho nocturno daquelas mesmas pessoas ligadas ao sector empresarial regional.
O artigo 7.º, n.º 2 e 3, por sua vez, permite que possam ser “fixadas por lei normas excepcionais, de carácter temporário, relativas ao regime retributivo e às valorizações remuneratórias dos titulares de órgãos sociais e dos trabalhadores [...] das entidades do sector empresarial regional” e permite, ainda, que possam ser “fixadas por lei normas excepcionais, de carácter temporário, relativas aos contratos de aquisição de serviços” celebrados por essas mesmas entidades. Diga-se, desde já, que as próprias alíneas q) e t) do n.º 9 do artigo 19.º da lei do OE e o artigo 22.º, nº. 1, alínea b), da mesma lei são exemplos do exercício desta competência.
O Requerente entende que os mencionados preceitos violam a autonomia legislativa regional consagrada no artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, conjugado com o artigo 40.º, alínea qq) do EPARAM.
Deve começar por se dizer que, pelas suas alegações, o Requerente também quererá invocar a conjugação daquele preceito constitucional com a alínea c) do artigo 40.º do EPARAM, segundo o qual «… constituem matérias de interesse específico, designadamente: … c) [a] orientação, direcção, coordenação e fiscalização dos serviços e institutos públicos e das empresas nacionalizadas ou públicas que exerçam a sua actividade exclusiva ou predominantemente na região […]'.
Mas a verdade é que ainda que porventura se entendesse que as matérias de que tratam os artigos 22.º, n.º 1, alínea b), e 30.º da Lei do OE estivessem compreendidas na alínea qq) ou na alínea c) do artigo 40.º do EPARAM, nem por isso a Assembleia da República ficaria impedida de sobre elas legislar a nível nacional.
No artigo 22.º, n.º 1, al. b), e no artigo 30.º da Lei do OE estão em causa medidas (à semelhança do que sucede no artigo 19.º da mesma lei) que reduzem ou permitem reduzir a despesa pública e, consequentemente, o défice orçamental. Também aqui estamos perante medidas legislativas que visam 'dar uma resposta institucionalmente abrangente a um problema de emergência orçamental e financeira de amplitude nacional e que no entender do legislador parlamentar ? enquanto órgão democrático representativo do Estado unitário ? só é susceptível de ser combatido com base em medidas de âmbito nacional'.
Valem aqui plenamente os fundamentos invocados e desenvolvidos a respeito das reduções remuneratórias previstas no artigo 19.º da Lei do OE. Como atrás se disse, 'a sustentabilidade das contas públicas com a correspondente redução do défice e o controlo da dívida é algo que, no entender justificável do legislador parlamentar, só poderá ser eficazmente garantido se for feito, não apenas ao nível do Estado, mas também, articuladamente, ao nível das entidades públicas que estão, de uma forma ou de outra, financeiramente relacionadas com esse mesmo Estado. É algo que só pode ser eficazmente levado a cabo num quadro de 'unidade nacional' e de 'solidariedade entre todos os portugueses' e através de medidas universalmente assumidas enquanto actos de 'soberania do Estado' legitimados pela sua própria subsistência financeira bem como de toda a economia nacional (cfr. artigo 225.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição)'.
Deste modo, não se pode excluir que a Assembleia da República, nas circunstâncias e com as razões aduzidas, legisle, imperativa e soberanamente, sobre as matérias de que tratam o artigo 22.º, n.º 1, alínea b) da Lei do OE e o artigo 39.º-A da Lei do Sector Empresarial do Estado e das Empresas Públicas ou que preveja a possibilidade de vir a tomar medidas temporárias de contenção que permitam controlar a despesa das empresas públicas como se admite nos n.ºs 2 e 3 do artigo 7.º da já mencionada Lei do Sector Empresarial do Estado e das Empresas Públicas.
E assim sendo, não há qualquer inconstitucionalidade que se possa apontar ao artigo 22.º, n.º 1, alínea b), ou ao artigo 30.º, ambos da Lei do OE para 2011.
9. Parecer prévio para efeitos de mobilidade dos trabalhadores da Administração Pública
O Requerente alega, também, que ocorre a inconstitucionalidade do artigo 40.º da Lei do OE por violar a garantia de mobilidade prevista no artigo 80.º do EPARAM. Porém, como se deixou já supra afirmado (no ponto 6.1. da fundamentação), a existir algum vício em conformidade com o parâmetro invocado, tal vício será de ilegalidade (que não de inconstitucionalidade). Todavia, diga-se, tal ilegalidade inexiste.
Na verdade, no seu artigo 40.º, a Lei do OE sujeita a mobilidade dos trabalhadores da administração regional para a administração directa ou indirecta do Estado a parecer prévio dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração pública.
Não pode, todavia, dizer-se que seja violada a garantia da mobilidade prevista no artigo 80.º do EPARAM, cuja redacção é a seguinte:
'Aos funcionários dos quadros de administração regional e da administração central é garantida a mobilidade profissional e territorial entre os respectivos quadros, sem prejuízo dos direitos adquiridos em matéria de antiguidade e carreira'.
Na verdade, o 'parecer prévio' exigido pelo artigo 40.º da Lei do OE não impede a mobilidade de funcionários entre a administração regional e a administração directa ou indirecta do Estado, apenas a restringe ou condiciona 'com vista ao cumprimento dos princípios orientadores da gestão dos recursos humanos na Administração Pública'.
A este respeito, importa ter presente que o Tribunal Constitucional já se pronunciou, no acórdão n.º 525/08, pela ilegalidade, por violação do artigo 80.º do EPARAM, de uma norma orçamental que impedia a mobilidade de trabalhadores entre a Administração Pública regional e a Administração directa e indirecta do Estado. Tratava-se do n.º 1 do artigo 13.º da Lei do OE para 2008 que tinha a seguinte redacção:
'É suspensa, até 31 de Dezembro de 2008, a possibilidade de destacamento, de requisição e de transferência de funcionários da administração regional e autárquica para a administração directa e indirecta do Estado'.
Não se pode, todavia, esquecer a diferença essencial que existia entre essa norma e a norma agora impugnada. Uma tal diferença essencial ficou expressa no acórdão referido, situando-se no cerne da sua ratio decidendi. Foi então dito (no ponto 6 da fundamentação):
'na verdade, o artigo 13.º do Orçamento de Estado para 2008 não se limitou a acrescentar condicionamentos à mobilidade dos funcionários públicos, através de uma suspensão de algumas das formas de mobilidade […] Tal norma veio efectivamente impedir, durante o seu período de vigência, o destacamento, a requisição e a transferência de funcionários da administração regional e autárquica para a administração directa e indirecta do Estado, contrariando, nesta parte, o regime de mobilidade consagrado no artigo 80.º EPARAM e excluindo a possibilidade de o Governo poder apreciar os pedidos formulados no âmbito dos seus poderes de órgão superior da administração pública' (sublinhado nosso).
Quer dizer, no acórdão n.º 525/08, a norma do orçamento de Estado então impugnada foi censurada à luz do artigo 80.º do EPARAM precisamente por excluir liminarmente qualquer mobilidade entre as administrações regionais e a administração directa ou indirecta do Estado, não se limitando a 'acrescentar condicionamentos' e, além disso, 'excluindo a possibilidade de o Governo poder apreciar os pedidos formulados no âmbito dos seus poderes de órgão superior da administração pública'.
A garantia de mobilidade não é algo que tenha de existir sem quaisquer condicionamentos. Todos os direitos têm limites ao seu exercício. A garantia da mobilidade prevista no artigo 80.º do EPARAM, não é obviamente excepção.
No regime previsto pelo artigo 40.º da Lei do OE prevê-se um parecer prévio que limita, mas não impede, a possibilidade de mobilidade entre as administrações regionais e a administração do Estado. Uma tal limitação é julgada necessária por motivos legítimos de racionalização de recursos humanos e de custos financeiros, que não se podem censurar ao legislador. E dada a abertura da solução legal à possibilidade em concreto da autorização de mobilidade não se pode considerar que a medida seja em abstracto excessiva.
Deste modo, o estabelecimento legal de um 'parecer prévio' como condicionamento à garantia geral da mobilidade no seio da Administração Pública não integra violação dessa mesma garantia de mobilidade.
Não se verifica, pois, qualquer ilegalidade por violação do artigo 80.º do EPARAM.
10. Dever de informação respeitante ao recrutamento de novos trabalhadores
O artigo 42.º da Lei do OE estabelece um dever de informação trimestral, por parte da Administração regional, aos Ministros responsáveis pelas Finanças e pela Administração Pública, respeitante ao recrutamento de novos trabalhadores quer no que se refere ao seu número, quer no que se refere à despesa aí envolvida. Este dever é estabelecido sob pena de retenção de uma percentagem dos duodécimos das transferências orçamentais do Estado, nos termos do artigo 13.º da Lei das Finanças Regionais.
O Requerente entende que tal colide com a autonomia regional consignada no artigo 225.º da Constituição, interferindo na 'organização e funcionamento do Governo Regional' que é da exclusiva competência deste (artigo 231.º, n.º 6, da Constituição) e pondo em causa o estatuto que esse mesmo Governo regional tem enquanto 'órgão executivo de condução da política regional' e 'órgão superior da administração pública regional' (artigo 55.º do EPARAM).
Diga-se, desde logo, que a disposição impugnada se compreende no quadro do controlo global do recrutamento de novos trabalhadores por parte da Administração Pública no seu todo.
Ela insere-se, de facto, no contexto da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, que aprova um conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental que visam reforçar e acelerar a redução de défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC).
O artigo 9.º de tal lei estabelece um mecanismo de 'controlo de recrutamento de trabalhadores' nos termos que se seguem:
1 — Os órgãos e os serviços abrangidos pelo âmbito de aplicação objectivo definido no artigo 3.º da Lei n.º 12 -A/2008, de 27 de Fevereiro, não podem proceder à abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações jurídicas de emprego público por tempo indeterminado, determinado ou determinável, para carreira geral ou especial e carreiras que ainda não tenham sido objecto de extinção, de revisão ou de decisão de subsistência, destinados a candidatos que não possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado previamente constituída, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 — Em situações excepcionais, devidamente fundamentadas, os membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública podem, ao abrigo e nos termos do disposto nos n.ºs 6 e 7 do artigo 6.º da Lei n.º 12 -A/2008, de 27 de Fevereiro, autorizar a abertura de procedimentos concursais a que se refere o número anterior, fixando, caso a caso, o número máximo de trabalhadores a recrutar.
Depois o artigo 10.º, n.º 1, da mesma lei determina que tal mecanismo de controlo de recrutamento de trabalhadores é igualmente válido, com as necessárias adaptações, para as administrações regionais. Diz-se: 'A aplicação do disposto no artigo anterior aos órgãos e serviços das administrações regionais […] efectua-se com as necessárias adaptações, designadamente no que respeita às competências em matéria administrativa dos correspondentes órgãos de governo próprios'.
Estas disposições legais não são impugnadas, efectivamente, apenas se impugna o dever de informação respeitante ao recrutamento de novos trabalhadores, que consta do artigo 42.º da Lei do OE e que impende sobre as administrações regionais, com a alegação de que tal dever contenderia com a autonomia de 'organização e funcionamento do Governo Regional'.
Porém, como se haverá de conceder, não será um simples dever de informação de dados relativos ao recrutamento de trabalhadores que contenderá com a 'organização e funcionamento do Governo Regional', porquanto com ele apenas se visará dar conhecimento de dados referentes à execução de medidas legislativas de âmbito nacional, no caso, respeitantes ao recrutamento de trabalhadores.
Na verdade, o dever de informação é justificado, no contexto das restrições ao recrutamento de pessoal legislativamente impostas aos diversos sectores da Administração Pública, pelo Relatório do Orçamento de Estado para 2011. São estas as palavras do Relatório (p. 53):
'No escopo da sua autonomia constitucional, nomeadamente, no que respeita às competências dos seus órgãos de governo próprio, as regiões autónomas observam a regra do congelamento de admissões do seu pessoal já consagrada na lei de medidas [de] austeridade no contexto do programa de estabilidade e crescimento aprovada em Junho. Por conseguinte, não podem, em regra, proceder à abertura de procedimentos concursais com vista à constituição de relações jurídicas de emprego público por tempo indeterminado, determinado ou determinável, para carreira geral ou especial e carreiras que ainda não tenham sido objecto de extinção, de revisão ou de decisão de subsistência, destinados a candidatos que não possuam uma relação jurídica de emprego público por tempo indeterminado previamente constituída.
Com vista ao acompanhamento da evolução do cumprimento da medida, é instituído um dever das administrações regionais remeterem trimestralmente aos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública, informação sobre o número e despesa com admissões de pessoal, a qualquer título'.
A norma impugnada apenas determina um dever de informação instrumental com vista ao conhecimento da real situação respeitante ao número de trabalhadores das entidades públicas regionais e à despesa aí envolvida. Deste modo, o dever de informação estabelecido no OE insere-se no quadro da devida colaboração institucional que deve existir para melhor controlo da despesa pública, segundo a lógica da solidariedade que liga as Regiões Autónomas à República (artigo 225.º, n.º 2, da Constituição).
E, assim sendo, não se pode considerar que o simples dever de informação, estabelecido no artigo 42.º da Lei do OE, ponha em causa a autonomia regional ou a organização e funcionamento internos do governo regional, não sendo pois inconstitucional.
11. Limite ao aumento do endividamento líquido da Região Autónoma
O Requerente impugna, finalmente, o artigo 95.º, n.º 1, da Lei do OE, que determina, como regra geral, que 'as Regiões Autónomas […] não podem acordar contratualmente novos empréstimos, incluindo todas as formas de dívida, que impliquem um aumento do seu endividamento líquido'.
Invoca o Requerente que o dispositivo constante do n.º 1 do artigo 95.º da Lei do OE põe em causa a autonomia financeira da região resultante designadamente dos artigos 225.º e 231.º, n.º 6, da Constituição e, ainda, do artigo 105.º do EPARAM.
Dir-se-á, todavia, que a autonomia financeira da Região Autónoma não resulta de modo nenhum do artigo 231.º, n.º 6, da Constituição, já que esta norma se refere, propriamente, à competência exclusiva do Governo Regional para regular a sua própria organização e o seu funcionamento. Ela resulta, antes, da conjugação das alíneas h), i), j) e p) do artigo 227.º, n.º 1, da Constituição, com o postulado geral da autonomia político-administrativa das Regiões Autónomas consagrado no artigo 225.º da mesma Constituição.
Deve ainda notar-se, com Paz Ferreira, que 'embora a autonomia financeira regional esteja consagrada em termos amplos no texto constitucional, conforme tem sido acentuado pela doutrina, não se encontra qualquer disposição que expressamente preveja a possibilidade de as regiões recorrerem a empréstimos públicos'. No entanto, continua o Autor: 'Não parece […] que daqui resulte qualquer consequência especial, na medida em que julgo dever entender-se que, na ampla possibilidade de escolha orçamental das regiões consagrada constitucionalmente, se compreende a faculdade de contraírem empréstimos' (Estudos de Direito Financeiro Regional, Vol. II., Ponta Delgada, 1995, p. 90). Tal doutrina, diga-se, não só se mantém actual, como até sai reforçada, face à posterior publicação da ‘Lei de Finanças das Regiões Autónomas’ (cfr. Lei n.º 13/98, de 24/02, revogada pela Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19/02, esta, por sua vez, alterada pela Lei Orgânica n.º 1/2010, de29/03). Aliás, interpretando o âmbito da autonomia financeira regional estabelecido na Constituição, os Estatutos Político-Administrativos da Região determinam no seu artigo 113.º, n.º 1: 'A Região Autónoma da Madeira pode recorrer a empréstimos em moeda com curso legal em Portugal ou em moeda estrangeira, a curto e a longo prazo, nos termos da lei'. Esses empréstimos podem, aliás, nos termos estatutários, ser internos ou externos (cfr. art. 36.º, n.º 1, al. d), do EPARAM).
O facto de a possibilidade de contrair empréstimos estar incluída no âmbito da autonomia financeira das regiões não significa que não possa haver limites 'legalmente' traçados a tal faculdade. É nesse sentido que o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira diz que a autonomia financeira da região se exerce 'nos termos da Constituição, do presente Estatuto e da lei' (art. 105.º, n.º 1), reiterando-se mais adiante que a região autónoma pode 'recorrer a empréstimos (…) nos termos da lei'. E é também nesse sentido que o mesmo Estatuto afirma que 'a autonomia financeira da Região deve prosseguir a realização do equilíbrio sustentável das finanças públicas (…)' (artigo 105.º, n.º 3).
O EPARAM, ao permitir o estabelecimento legal de limites à contracção de empréstimos, apenas reforça aquilo que naturalmente resulta da necessidade constitucional de articulação entre as Regiões Autónomas e o Estado ao nível das respectivas relações financeiras. De facto, não é possível desligar o endividamento das regiões autónomas da sustentabilidade financeira do próprio Estado como um todo. Compreende-se, pois, que a lei e nomeadamente a Lei de Enquadramento Orçamental (Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto) preveja, no seu actual artigo 87.º (resultante da alteração operada pela Lei n.º 48/2004, de 24 de Agosto), a possibilidade do Orçamento de Estado prever 'limites específicos de endividamento anual […] das Regiões Autónomas'.
É este o teor da mencionada disposição:
Artigo 87º
Equilíbrio orçamental e limites de endividamento
1 - Em cumprimento das obrigações de estabilidade orçamental decorrentes do Programa de Estabilidade e Crescimento, a lei do Orçamento estabelece limites específicos de endividamento anual da administração central do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, compatíveis com o saldo orçamental calculado para o conjunto do sector público administrativo.
O mesmo sucede na Lei das Finanças Regionais (Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de Fevereiro, republicada pela Lei Orgânica n.º 1/2010, de 29 de Março, e alterada pela Lei Orgânica n.º 2/2010, de 16 de Junho, que suspendeu o artigo 35.º e repôs em vigor a numeração e a redacção originária da Lei Orgânica n.º 1/2007, nomeadamente seu artigo 30.º). Esta lei prevê igualmente que o Orçamento de Estado trace limites ao endividamento das Regiões Autónomas, estabelecendo também critérios para tais limites e, ainda, como sanção para o não cumprimento desses mesmos limites, uma 'redução nas transferências do Estado' equivalente ao valor da dívida contraída em excesso. É este o teor de tais disposições:
Artigo 30.º
Limites ao endividamento
1-Tendo em vista assegurar a coordenação efectiva entre as finanças do Estado e das Regiões Autónomas e o cumprimento do princípio da estabilidade orçamental, são definidos anualmente na Lei do Orçamento do Estado limites máximos de endividamento regional, compatíveis com os conceitos utilizados em contabilidade nacional, os quais incluem os avales executados.
2-Os limites máximos de endividamento regional são fixados tendo em consideração as propostas apresentadas pelos Governos Regionais ao Governo da República e o parecer do Conselho de Acompanhamento das Políticas Financeiras, e obedecem às metas estabelecidas pelo Governo da República quanto ao saldo global do sector público administrativo, tendo em vista assegurar o cumprimento do princípio da estabilidade orçamental.
3-Na fixação dos limites mencionados nos números anteriores atende-se a que, em resultado do endividamento adicional ou de aumento do crédito à Região, o serviço de dívida total, incluindo as amortizações anuais e os juros, não exceda, em caso algum, 25% das receitas correntes do ano anterior, com excepção das transferências e comparticipações do Estado para cada Região.
4-Para efeitos do número anterior, não se considera serviço da dívida o montante das amortizações extraordinárias.
5- […]
Artigo 36.º
Sanção por violação dos limites ao endividamento
1- A violação dos limites de endividamento por uma Região Autónoma origina uma redução nas transferências do Estado que lhe é devida no ano subsequente de valor igual ao excesso de endividamento face ao limite máximo determinado nos termos do artigo anterior.
2- A redução prevista no número anterior processa-se proporcionalmente nas prestações a transferir trimestralmente.
No plano jurisprudencial, a questão da constitucionalidade do estabelecimento legal de limites ao endividamento das regiões autónomas encontra-se tratada, em termos relativamente desenvolvidos, no Acórdão n.º 567/04 deste Tribunal, onde estava em causa o artigo 84.º da Lei de Enquadramento Orçamental (correspondente ao já mencionado actual artigo 87.º da mesma lei).
O Tribunal veio a decidir a questão da constitucionalidade desta norma nos termos que se seguem:
'Deve desde logo recordar-se, como já se fez no Acórdão nº 532/00 deste Tribunal (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 48º volume, págs. 59 e segs.), que “a possibilidade de recurso ao crédito (ou à obtenção de receitas de empréstimos) pelas regiões autónomas nunca chegou a ser prevista expressa e especificamente na Constituição – continuando ainda hoje, e a esse nível, a não poder extrair-se mais do que da combinação das alíneas h) e p) do nº 1 do artigo 227º”.
Ora, o Tribunal já se pronunciou sobre a questão da limitação do endividamento das regiões, nomeadamente nos Acórdãos nºs 624/97 e 532/00, já citados, sendo útil recordar a orientação então adoptada.
Na primeira daquelas decisões estavam em causa normas do Decreto-Lei nº 336/90, de 30 de Outubro, cujo conteúdo era precisamente o de estabelecer como competência da Assembleia da República a fixação anual, na lei do Orçamento, dos 'limites máximos de endividamento regional directo e indirecto'. Era suscitada a ilegalidade por violação da norma do EPARAA que previa a competência da Assembleia Legislativa para aprovação do Orçamento (com um conteúdo, no essencial, idêntico ao hoje disposto no artigo 232º, nº 1, da CRP).
Decidiu então este Tribunal pela não ilegalidade das normas em causa, escrevendo-se nessa decisão:
“O estabelecimento nas normas impugnadas pelo grupo de deputados à Assembleia Legislativa Regional dos Açores de um sistema de limites ao endividamento das regiões autónomas é uma consequência do carácter unitário do Estado (ainda que dispondo de duas regiões autónomas, dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprio, e de autarquias locais, que usufruem de órgãos representativos, de autonomia administrativa e de património e finanças próprios), proclamado no artigo 6º da Lei Fundamental.
(…)[a norma que determina] a fixação anual dos limites máximos de endividamento regional em disposição constante da lei do Orçamento do Estado, não impõe ao orçamento regional uma dependência em relação ao Orçamento do Estado passível de se revelar como nuclearmente redutora da autonomia financeira da Região Autónoma dos Açores (…)”
Na segunda das decisões referidas, tratou-se da questão, suscitada pelo Presidente do Governo Regional da Madeira, da inconstitucionalidade das normas do (já citado) artigo 26º da Lei de Finanças das Regiões Autónomas e do artigo 93º da Lei do Orçamento do Estado para 2000, que fixava o limite de endividamento da região. O Tribunal pronunciou-se pela não inconstitucionalidade destas normas (tendo por referência o texto constitucional saído da revisão de 1997), destacando-se da fundamentação da decisão então tomada:
“(...) a previsão desses limites [de endividamento das regiões] – e, em particular do que é o seu elemento central: a fixação anual, pelo Orçamento do Estado, do plafond de endividamento das regiões – representa uma 'constrição' da autonomia financeira (mormente da autonomia orçamental), e também da autonomia patrimonial, constitucionalmente garantidas às regiões: mas é uma constrição que, por um lado, encontra fundamento em exigências ou razões (como a da unidade do Estado) igualmente com relevo constitucional, e, por outro lado, não vai ao ponto de 'subverter' e destruir tal autonomia. Ou, como se disse ainda no Acórdão nº 624/97 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 38º volume, pág. 95): não é «nuclearmente redutora» da mesma autonomia”.
No mesmo acórdão, acolheu-se a argumentação do Primeiro-Ministro na sua resposta no processo em que foi tirado o Acórdão nº 624/97, sobre a necessidade de um controlo de nível nacional (pela Assembleia da República) dos níveis de endividamento das regiões, já que “o Estado Português, com a assinatura do Tratado da União Europeia, assumiu novos compromissos internacionais, no que respeita aos défices orçamentais e ao peso da dívida pública no Produto Interno Bruto, sendo os valores de referência avaliados em termos consolidados para o conjunto do território nacional. (...) remeter a fixação anual dos limites máximos de endividamento regional para o Orçamento do Estado tem, nestes termos, plena lógica, não só porque as orientações macro-económicas do Estado são fixadas no Orçamento do Estado, mas também porque é esta mesma lei que assegura o fluxo de uma parte das receitas correntes das regiões, através das transferências anuais para aqueles territórios”.
Acrescente-se que, mesmo quem entenda não existir, em todos os casos, uma possibilidade constitucionalmente admissível de limites ao endividamento das regiões autónomas – enquanto constrição da sua autonomia financeira e patrimonial, com fundamento na unidade do Estado – admitirá que este pode fixar um limite máximo ao endividamento regional em situações nas quais o limite em concreto estabelecido para determinado ano possa, uma vez ultrapassado, constituir sérios riscos com projecção na economia e nas finanças do todo nacional, como seria o caso de aumento das taxas de juro do mercado ou de elevada repercussão nos compromissos internacionais assumidos pelo Estado no sentido de diminuir os défices orçamentais e o peso da dívida pública face ao PIB (neste sentido, veja-se a declaração de voto do Conselheiro Bravo Serra, no Acórdão nº 532/00)'.
Por isso, o Tribunal concluiu:
'Nestes termos, não pode concluir-se pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 84º da Lei de Estabilidade Orçamental. Como se referiu, tal disposição não pode ter-se por violadora do poder de decisão orçamental das regiões autónomas, previsto nas alíneas j), p) e r) do nº 1 do artigo 227º da Lei Fundamental'.
Poderá suscitar-se, no entanto, relativamente ao artigo 95.º, n.º 1, da Lei do OE uma questão adicional, na medida em que tal disposição tende para uma solução de endividamento zero ou nulo. Acresce que o limite estabelecido ao endividamento é também um limite ao défice orçamental, uma vez que, sem a possibilidade de recorrer ao crédito (a não ser nas situações muito pontuais indicadas), a Região Autónoma fica, na prática, obrigada a aprovar um Orçamento com um défice nulo (ou com superávite).
Daí que possa questionar-se se a radicalidade de tal solução não contende com o conteúdo mínimo da autonomia financeira regional que, em termos gerais, certamente abrange a possibilidade de contrair empréstimos.
A situação, todavia, não é nova, pois a medida de proibição do aumento do endividamento líquido das regiões autónomas já vinha prevista em orçamentos anteriores. Vejam-se nomeadamente, para referir apenas os últimos anos, o Orçamento de Estado para 2010 (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), o Orçamento de Estado para 2009 (Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro), ou o Orçamento de Estado para 2008 (Lei nº 67-A/2007, de 31 de Dezembro) que já previam, respectivamente nos seus artigos 83.º, 151.º e 117.º, solução idêntica de acréscimo de endividamento nulo (este último preceito ? o artigo 117.º da Lei do OE para 2008 ? foi aliás impugnado, perante este Tribunal, no processo conducente ao Acórdão n.º 346/2008, mas apenas com fundamento em preterição do direito de audição da Região Autónoma).
Deve começar por se dizer que, no artigo 95.º, n.º 1, da Lei do OE, não se está directamente a proibir a contracção de empréstimos, mas sim, fundamentalmente, o aumento global da dívida acumulada.
E acrescente-se que o valor da dívida acumulada é já de si elevado, ultrapassando substancialmente o valor total de receitas próprias da Região (crescendo anualmente aliás o valor da dívida, não obstante a proibição de aumento do endividamento líquido sucessivamente imposta nos últimos anos pelos diferentes Orçamentos de Estado). Como se diz, nas conclusões 18 a 22, do Parecer n.º 1/2011 do Tribunal de Contas sobre a Conta da Região Autónoma da Madeira de 2009 (pág. 7):
'18. No final de 2009, a dívida pública directa da RAM totalizava cerca de 863,9 milhões de euros, tendo registado um aumento de 129 milhões de euros face ao ano anterior (cerca de 17,6%), representando 132% do valor de receitas próprias da Região arrecadadas (654,6 milhões de euros) no mesmo exercício (cfr. pontos II.I.3.3, III.V.2.1, III.V.2.1.2 e III.V.2.2).
19. Em 31 de Dezembro de 2009, a dívida administrativa da Região atingia quase 683,4 milhões de euros, evidenciando um acréscimo de 37,6% (cerca de 186,7 milhões de euros) relativamente a 2008, que ficou a dever-se não só ao aumento dos EANP mas também à existência de valores em dívida contemplados em acordos celebrados entre a RAM e diversos fornecedores com vista à regularização de encargos no valor de 184,5 milhões de euros, os quais não foram oportunamente trazidos ao conhecimento do Tribunal de Contas (cfr. ponto III.V.4).
20. O valor global da dívida a fornecedores (EANP) da Administração Regional Directa e Indirecta foi de aproximadamente 210,3 milhões de euros, tendo registado um aumento de 127 milhões de euros (152,6%) em relação ao ano anterior (cfr. pontos II.II.4 e III.V.4).
21. O pagamento de juros e outros encargos correntes, relativos a todas as formas de dívida, fixou-se em cerca de 42,4 milhões de euros, evidenciando um decréscimo de 13,2%, face ao ano anterior, destacando-se os juros relativos à dívida administrativa, que atingiram 22,5 milhões de euros, embora apresentem uma diminuição de 37,4% (cfr. pontos III.V.2.4 e III.V.6).
22. Segundo os dados estatísticos de Agosto de 2010, o contributo da RAM em 2009 para o cumprimento dos objectivos definidos no Pacto de Estabilidade e Crescimento em matéria de défice público foi negativo na medida em que o saldo apurado evidenciava uma necessidade líquida de financiamento no montante de 264,3 milhões de euros (cfr. ponto III.V.7).
Além disso, não poderá olvidar-se que há excepções ao limite estrito estabelecido no n.º 1 do artigo 95.º da Lei do OE, nomeadamente duas, tal como sejam: o endividamento previsto no artigo 10.º da Lei Orgânica n.º 2/2010, de 16 de Junho, que fixa os meios que asseguram o financiamento das iniciativas de apoio e reconstrução na Região Autónoma da Madeira na sequência da intempérie de Fevereiro de 2010 e, nos termos do artigo 95.º, n.º 2, do OE, 'os empréstimos e as amortizações destinados ao financiamento de projectos com comparticipação de fundos comunitários e à regularização de dívidas vencidas das regiões autónomas'.
Note-se, ainda, que o artigo 95.º, n.º 1, da Lei do OE aparece em consonância com outras disposições do mesmo Orçamento que também prevêem, como regra geral, a impossibilidade de contracção de empréstimos que impliquem o aumento do endividamento líquido das autarquias locais, e em especial, dos municípios (artigo 53.º da Lei do OE).
É verdade que, no que respeita ao Estado, o Governo fica autorizado a aumentar o endividamento líquido global directo, até ao montante máximo de € 11 573 000 000, 'para fazer face às necessidades de financiamento decorrentes da execução do Orçamento do Estado, incluindo os serviços e fundos dotados de autonomia administrativa e financeira' (artigo 84.º da Lei do OE), a que acresce o montante de € 9 146 200 000, 'para fazer face às necessidades de financiamento, tendo em vista o reforço da estabilidade financeira e da disponibilização de liquidez nos mercados financeiros' (artigo 92.º da Lei do OE).
Mas o montante previsto no artigo 92.º da Lei do OE tem correspondência na excepção prevista na parte final do artigo 95.º, n.º 2, em relação às Regiões Autónomas e quanto ao montante previsto no artigo 84.º da mesma lei diga-se que não é possível equiparar totalmente o Estado como um todo a cada uma das Regiões Autónomas, sob o ponto de vista do regime financeiro e de endividamento. Na verdade, as atribuições políticas, administrativas e económico-sociais do Estado são muito mais amplas do que as das Regiões Autónomas e, cumpridas no seu todo, também as beneficiam.
Além disso, é de ter em conta que as Regiões Autónomas auferem transferências do Orçamento de Estado, que estão no presente ano previstas no artigo 93.º da Lei do OE, sendo aliás a redução de tais transferências orçamentais a única sanção prevista para o não cumprimento dos limites ao endividamento (artigo 31.º da Lei das Finanças Regionais). Ao estabelecer limites globais ao endividamento das Regiões Autónomas, o Estado não invalida empréstimos concretamente contraídos pelas mesmas Regiões, mas apenas reduz as transferências orçamentais em montante equivalente ao excesso de endividamento total líquido.
Este facto parece legitimar que o Estado possa condicionar tais transferências ao cumprimento dum limite de endividamento que beneficia o todo das finanças nacionais.
Como se disse no Acórdão n.º 532/00, onde se apreciava a constitucionalidade do artigo 93º da Lei nº 3-B/2000, de 4 de Abril (Orçamento de Estado para o ano de 2000) que determinava um limite máximo (à época de 5 milhões de contos) para o endividamento regional:
'em primeiro lugar, a nível dos princípios, a autonomia financeira regional nunca poderia, no quadro de um Estado unitário, como o português, ser sinónimo de independência financeira. Em segundo lugar, sob o ponto de vista de realidade dos factos, a autonomia financeira das regiões autónomas encontra «uma limitação significativa na circunstância de não ser previsível que, a curto prazo, as regiões venham a dispor de receitas suficientes para assegurar a cobertura das despesas, o que as leva a terem de elaborar os seus orçamentos com uma certa ligação com o Orçamento Geral do Estado em função das transferências que este lhes irá proporcionar» (cfr. E. Paz Ferreira, As Finanças Regionais, Lisboa, INCM, 1985, p. 267).
Assim sendo, a discriminação obrigatória, nos relatórios anexos ao Orçamento do Estado, das transferências orçamentais para as regiões autónomas não deixa de implicar, em face da impossibilidade de as regiões cobrirem as suas despesas com receitas próprias, um quadro lógico de dependência operativa dos orçamentos das regiões autónomas em relação à prévia aprovação do Orçamento do Estado, que prevê afinal as mesmas transferências. Surge, assim, inevitavelmente uma dependência, de natureza lógico-funcional, entre o Orçamento do Estado e os orçamentos das regiões autónomas, a qual se articula com o «princípio da solidariedade», inerente à correcção das desigualdades derivadas da insularidade, previsto nos artigos 227º, nº 2 e 231º, nº 1, da Constituição (hoje, artigos 225º, nº 2 e 229, nº 1)' (AcTC, 38, p.95-96).
São neste contexto particularmente relevantes, 'por se repercutirem na generalidade dos cidadãos do território português e não apenas nos habitantes das regiões' (ibidem, p.94), os efeitos do excesso de endividamento de uma região com autonomia político-administrativa. Vale aqui, mutatis mutandis, o que o Primeiro-Ministro, na sua resposta no processo em que foi tirado o acórdão nº 624/97, disse acerca do excesso de recurso ao crédito público: 'entre outras consequências, o mesmo acaba por determinar, não apenas um aumento da quantidade de moeda em circulação no território nacional, mas também se acaba por repercutir nos valores das taxas de juro no mercado. Acresce também que o Estado Português, com a assinatura do Tratado da União Europeia, assumiu novos compromissos internacionais, no que respeita aos défices orçamentais e ao peso da dívida pública no Produto Interno Bruto, sendo os valores de referência avaliados em termos consolidados para o conjunto do território nacional' (AcTC, 38, p.94).
Por estas razões, pode também aqui dizer-se com o Primeiro-Ministro, na referida resposta, que a solução legislativa de 'remeter a fixação anual dos limites máximos de endividamento regional para o Orçamento do Estado tem, nestes termos, plena lógica, não só porque as orientações macroeconómicas do Estado são fixadas no Orçamento do Estado, mas também porque é esta mesma lei que assegura o fluxo de uma parte das receitas correntes das Regiões, através das transferências anuais para aqueles territórios' (ibidem).
Mesmo admitindo que a autonomia financeira da Região inclui a possibilidade de contrair empréstimos, não se pode excluir que, em situações de especial necessidade e de acentuado endividamento público regional acumulado (como nas actuais circunstâncias sucede), se limite estritamente a possibilidade de aumento desse endividamento, como sucede no OE para 2011.
O fundamento é o referido, em termos gerais, pelos Acórdãos n.ºs 624/97 e 532/00: 'o Estado Português, com a assinatura do Tratado da União Europeia, assumiu novos compromissos internacionais, no que respeita aos défices orçamentais e ao peso da dívida pública no Produto Interno Bruto, sendo os valores de referência avaliados em termos consolidados para o conjunto do território nacional'.
Por seu turno, o critério para a específica determinação de um limite estrito ao aumento do endividamento líquido encontra-se no já citado acórdão n.º 561/04: é a concreta existência de 'sérios riscos com projecção na economia e nas finanças do todo nacional, como seria o caso de aumento das taxas de juro do mercado ou de elevada repercussão nos compromissos internacionais assumidos pelo Estado no sentido de diminuir os défices orçamentais e o peso da dívida pública face ao PIB'.
De acordo com este critério, tendo em conta a actual situação de emergência económico-financeira do país como um todo, não se pode considerar concretamente desproporcionado o limite estrito ao acréscimo de endividamento das regiões autónomas que estabelece o artigo 95.º, n.º 1, desse mesmo OE.
´Daí que se não possa excluir a constitucionalidade da solução adoptada, como seja, a de proibir, em termos gerais, o aumento do endividamento líquido das Regiões já existente, concluindo-se, por isso, que o artigo 95.º, n.º 1, da Lei do OE, não padece de qualquer inconstitucionalidade.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não conhecer do pedido de declaração da ilegalidade, com força obrigatória geral, do artigo 19.º, n.º 9, alínea r), da Lei n° 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Orçamento de Estado para 2011).
b) Não declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artigos 19.º, n.º 9, alíneas h), i), q), r) e t), e n.º 11, 22.º, n.º 1, alínea b), 30.º, 42.º e 95°, n.º 1, da mesma lei;
c) Não declarar a ilegalidade do artigo 40.º da mesma lei.
Lisboa, 13 de Dezembro de 2011.- J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão – Maria Lúcia Amaral – João Cura Mariano (vencido na parte em que não se declara a inconstitucionalidade do artigo 19.º, n.º 11, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, no segmento em que determina a prevalência sobre a legislação regional em contrário das normas que estabelecem as reduções remuneratórias constantes das alíneas q), r) e t), do artigo 19.º, n.º 9, e do artigo 22.º, n.º 1, b) do mesmo diploma, pelas razões constantes da declaração que junto) – Maria João Antunes (vencida, relativamente às normas constantes do artigo 19.º, n.º 9, alíneas h) e i) da Lei n.º 55.º-A/2010, nos termos da declaração aposta ao Acórdão n.º 251/2011). – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, quanto às normas constantes do artigo 19.º, n.º 9, alíneas h) e i) da Lei n.º 55-A/2010, pelas razões expressas em declaração apensa ao Acórdão n.º 251/2011). – Carlos Pamplona de Oliveira – vencido conforme declaração em anexo. – Rui Manuel Moura Ramos – Tem voto de conformidade o Exmo. Juiz Conselheiro José Borges Soeiro que não assina por, entretanto, ter deixado de fazer parte do Tribunal. – J. Cunha Barbosa.
Processo n.º 188/11 e 189/11
DECLARAÇÃO DE VOTO
Discordei da decisão de não declarar a inconstitucionalidade do artigo 19.º, n.º 11, do Orçamento de Estado para 2011, aprovado pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, no segmento em que o mesmo atribui natureza imperativa às reduções remuneratórias impostas aos gestores públicos, ou equiparados, aos trabalhadores e aos membros dos órgãos e das entidades que integram o sector empresarial regional (n.º 9, alínea q) e t); aos trabalhadores das administrações regionais (n.º 9, r); e aos valores pagos por contratos de aquisição de serviços que venham a celebrar-se ou a renovar-se em 2011, outorgados por entidades do sector empresarial regional (artigo 22.º).
Na verdade, tratando-se de matérias de âmbito regional, que não estão reservadas aos órgãos de soberania e que se encontram compreendidas na esfera de competência legislativa dos órgãos regionais definida no Estatuto Político-Administrativo da Região (artigo 40.º, c), qq) e vv), não pode uma lei da Assembleia da República, após emitir normação nessa área, determinar que as respectivas regras são imperativas, prevalecendo sobre quaisquer outras normas de origem regional.
Estamos perante uma zona de competência concorrencial em que a legislação nacional tem uma aplicação meramente subsidiária, conforme resulta do disposto no artigo 228.º, n.º 2, da Constituição, pelo que ela própria nunca poderá determinar que o seu conteúdo prevalece sobre a legislação regional que já exista ou venha a ser aprovada no futuro.
E o simples facto do legislador nacional entender, com justificação ou sem ela, que determinadas finalidades da sua política económica só poderão ser plenamente atingidas se determinadas medidas forem adoptadas em todo o território nacional, não lhe permite retirar às Regiões Autónomas, mesmo a título transitório, a autonomia legislativa que a Constituição lhes confere nos artigos 227.º e 228.º.
Conforme se afirmou no recente Acórdão n.º 304/2010, deste Tribunal, após a última revisão constitucional a reserva de determinado tema ao legislador nacional só poderá resultar da sua inclusão no elenco das matérias tipificadas nos artigos 164.º e 165.º, da Constituição, por virtude dessa reserva resultar de outras disposições específicas do texto constitucional, por o seu conteúdo extravasar o âmbito regional ou por ele não integrar a lista dos assuntos que os Estatutos político-administrativos da região consideram estar incluídos na sua competência legislativa.
Não se verificando, no presente caso, nenhuma destas situações, não podia o legislador nacional determinar que as medidas por si aprovadas de redução das retribuições pagas aos gestores públicos, ou equiparados, aos trabalhadores e aos membros dos órgãos e das entidades que integram o sector empresarial regional, aos trabalhadores das administrações regionais, e dos valores pagos por contratos de aquisição de serviços que venham a celebrar-se ou a renovar-se em 2011, outorgados por entidades do sector empresarial regional, prevaleciam sobre quaisquer normas emitidas nestas matérias pelo legislador regional, pelo que me pronunciei pela inconstitucionalidade desse segmento do artigo 19.º, n.º 11, do Orçamento de Estado para 2011, aprovado pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro.- João Cura Mariano.
Proc.s n.ºs 188 e 189/2011 – Plenário
Relator: Cons. J Cunha Barbosa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Estou em total desacordo com a presente decisão e os seus fundamentos, pelos seguintes motivos:
A Constituição não atribui uma competência genérica ao requerente – o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira – para solicitar ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade, ou de ilegalidade, com força obrigatória geral, de normas. Com efeito, o artigo 281º n.º 2 alínea g) CRP apenas lhe permite requerer 'quando o pedido de declaração de inconstitucionalidade se fundar em violação dos direitos das regiões autónomas ou o de declaração de ilegalidade se fundar em violação do respectivo estatuto'. Seria, a meu ver, necessário começar por confrontar o pedido agora em análise com esta norma constitucional para definir com rigor o âmbito das questões de que cumpriria tratar. É que, no que toca à inconstitucionalidade, o vício só é relevante no caso de as normas impugnadas se traduzirem na violação dos direitos constitucionalmente atribuídos às regiões autónomas; e, no que concerne à ilegalidade, o Tribunal apenas pode averiguar a conformidade das normas impugnadas com um único parâmetro: a violação do respectivo Estatuto.
Acontece que o Acórdão não coteja o pedido com esta imposição constitucional.
O Acórdão fundamenta-se, no que toca à questão das reduções remuneratórias previstas no artigo 19.º da Lei do OE quanto aos 'deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas' e aos 'membros dos governos regionais', no decidido no Acórdão n.º 251/11, o que naturalmente conclama a declaração de voto que aduzi a esse aresto. Na verdade, a reserva constitucional de estatuto proíbe, em absoluto, que outro 'tipo' de actos normativos regule a matéria incluída nessa reserva (cfr. artigos 112º n.º 3, 168º n.º 6 alínea f), 226º da Constituição). A norma em causa, ao pretender declaradamente interferir no montante das remunerações auferidas pelos titulares de órgãos de governo próprio das regiões autónomas, visou disciplinar o estatuto remuneratório desses agentes, definindo desse modo o estatuto dos titulares de órgãos de governo próprio das regiões autónomas, em manifesta violação do disposto no aludido n.º 7 do artigo 231º da Constituição, que afirma expressamente: O estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas é definido nos respectivos estatutos político-administrativos.
Ao tolerar as normas impugnadas, o Tribunal adopta, ainda, um outro critério que merece ser observado com preocupação, já que reduz o alcance preceptivo das próprias normas constitucionais. Sustenta-se, com efeito, que 'será de considerar constitucionalmente legítimo que o poder legislativo soberano do Estado assuma que as medidas exigidas por uma urgente consolidação das contas públicas não devam ser tomadas isolada e descontextualizadamente apenas em partes do território nacional ou valendo apenas para parte dos cidadãos'. Conclui, por isso, o Acórdão: 'Acrescente-se, por fim, na decorrência do que se disse, que dadas as fortes razões de interesse público nacional invocadas, não se pode constitucionalmente excluir a prevalência legal das normas agora impugnadas sobre outras normas nacionais e regionais invocadas pelo Requerente...'
Ora, estas 'justificações', correspondem, em boa verdade, ao entendimento de que a força vinculativa das regras constitucionais se afrouxaria sempre que as circunstâncias levem a considerar, por via de deduções de natureza política, que o 'poder legislativo soberano do Estado' deve ultrapassar a competência que lhe está constitucionalmente fixada. Mais não será preciso dizer para ficar bem evidente que desta forma se nega a natureza essencial do constitucionalismo, ao recusar o carácter de 'direito supremo' às normas constitucionais, e ao permitir o desequilíbrio, por mera conveniência política, das regras limitativas de competência resultantes da separação de poderes consagrada na Constituição.- Carlos Pamplona de Oliveira.