Imprimir acórdão
Processo n.º 621/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. pediu a aclaração (fls. 11 140 e segs.) e arguiu nulidades (fls. 11 147 e segs.) do Acórdão n.º 331/11, proferido a fls. 10 892 e segs.
Em síntese, com o pedido de aclaração pretende que o Tribunal esclareça “se, na Decisão ali tomada de não apreciar de mérito o Recurso identificado no ponto 8 de fls. 29 daquele Douto Acórdão como relativo ‘a questão da composição do tribunal colectivo que procedeu ao julgamento da recorrente em 1ª instância’, teve esse Colendo Tribunal Constitucional em consideração estar em causa e tratar-se, no Processo, de arguição de inconstitucionalidade suscitada
a) por violação do juiz natural na composição do tribunal de competência específica criminal que, em manifesta violação daquele princípio, pôde julgar a ora Requerente e assim a pôde condenar a uma pena efectiva de dez anos de prisão;
b) por violação do juiz natural operada nos termos, pela forma e circunstâncias que foram elencadas naquele Recurso e que ilustram, em concreto, a matéria de facto que subjaz à interpretação sucessiva dos conceitos de dimensão normativa cuja apreciação de inconstitucionalidade se requereu fosse feita por esse Colendo Tribunal Constitucional;
c) por violação do juiz natural operada nos termos daquela matéria de facto demonstrativa de que, por despacho exarado no próprio dia em que o julgamento foi iniciado, foram adstritos ao Tribunal, como Vogais, dois Juízes que, assim, vieram a compôr o Tribunal apenas e tão só para a realização daquele julgamento, tendo, assim, a ora Requerente sido julgada por um tribunal que só existiu para a julgar, tendo dois dos Juízes que compuseram o Colectivo sido especificamente escolhidos para esse efeito apenas em razão da sua disponibilidade, enquanto Juízes que exerciam funções na Pequena Instância Cível Liquidatária, por nomeação excepcional, ad hoc e discricionária, sem observância das regras de designação em razão das qualidades e da competência por lei exigidas e que são a garantia da sua independência e da sua imparcialidade
d) por violação do juiz natural apreciada pela primeira e apenas única vez pelo Supremo Tribunal de Justiça, e a que não foi dada possibilidade de apreciação em segundo grau de jurisdição através de recurso, o que, em matéria penal - como é o caso -, desde logo fere a constitucionalidade, face ao art.º 32º, n° 1 da Constituição da República Portuguesa.
e) por violação do juiz natural por aplicação e desaplicação de normas que o legislador revogou já através de nova lei (Lei n° 52/2008) que, claramente e de forma sintomática obvia àquela violação, indo ao encontro do pedido formulado nos presentes Autos pela ora Requerente, definindo, com a necessária exactidão, o único mecanismo consentâneo com o princípio universal e constitucional do juiz natural;
f) por violação do juiz natural que, tendo por consequência a sanção da nulidade insanável, levaria a ora Requerente a ser julgada de novo, como pretende;
Como tudo a ora Requerente teve oportunidade de expor, nos mesmos termos, nas peças processuais que, sobre a questão objecto do Recurso em causa, foi apresentando, processualmente, nos Autos.”
E com a arguição de nulidades do acórdão pretende, segundo o que aí conclui:
“(…)
“1ª
O Douto Acórdão desse Tribunal Constitucional, de 7 de Julho de 2011 é nulo e como tal deve ser considerado, porquanto a sua análise e subsequente decisão recaiu sobre a primeira motivação de Recurso apresentada pela ora Requerente, COMO MERA CAUTELA e que consta de fls. 9727 e seguintes quando o Processo continuou no Tribunal ordinário – Supremo Tribunal de Justiça – para apreciação de Recurso pelo Tribunal Pleno das Secções Criminais deste Supremo Tribunal e, quando a questão da irrecorribilidade foi decidida definitivamente em sentido desfavorável, a ora Requerente apresentou nova motivação de Recurso para o Tribunal Constitucional, a qual consta de fls. 10 103 e seguintes.
Assim sendo, o Douto Tribunal Constitucional deveria ter feito incidir a análise e decisão sobre a segunda motivação, a qual não se pode ter, pois, como apreciada, com todas as consequências inerentes.
2ª
O Douto Acórdão desse Tribunal Constitucional, de 7 de Julho de 2011, proferido nos Autos à margem supra identificados, é nulo e como tal deve ser considerado, na parte respeitante ao Recurso identificado no ponto 8 de fls.29 daquele Douto Acórdão, como…”o recurso que versa sobre o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que recaiu sobre a questão da composição do tribunal colectivo que procedeu ao julgamento da recorrente em 1ª instância (2º recurso)”, por se ter verificado a NULIDADE prevista na alínea d) do nº 1 do art.º 668º do CPC, por omissão de pronúncia, por aquele Acórdão não ter tomado conhecimento daquele Recurso, que lhe foi submetido para decisão e que havia sido processualmente admitido, consequentemente não se tendo pronunciado de mérito sobre o objecto daquele Recurso, e a que estava obrigado, ou seja, a inconstitucionalidade da não aplicação da norma do art.º 71º da LOFT, inconstitucionalidade suscitada processualmente de forma adequada, em suscitação que manteve a mesma identidade essencial, assim tendo violado o dever de, sobre a mesma, se pronunciar;
Termos em que devem ser apreciadas as NULIDADES pelo presente Requerimento aqui arguidas por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do nº 1 do art.º 668º do CPC, com todas as consequências legais previstas, assim devendo o Acórdão do Tribunal Constitucional, de 7 de Julho de 2011, proferido nos Autos à margem supra referenciados, ser considerado nulo.”
2. O Ministério Público e os assistentes sustentam a improcedência de todos os pedidos.
3. Quanto ao pedido de esclarecimento
O pedido de aclaração de decisões judiciais tem lugar quando a decisão padeça de alguma obscuridade ou ambiguidade (artigo 669.º, n.º, 1, alínea a), do CPC, ex vi do artigo 69.º da LTC). Não é meio, ainda que com uma retórica interrogativa, para expor divergências com o decidido.
Ora, a recorrente discorre sobre o princípio do juiz natural e pergunta ao Tribunal se tomou em consideração que no presente recurso é a violação deste princípio que se discute, mas não aponta concretamente a qualquer passagem da fundamentação ou da parte decisória do acórdão falta de clareza ou equivocidade de sentido. Nas considerações que oferece – alheando-se da fundamentação da decisão de que pretende aclaração e da concepção de recurso de fiscalização de constitucionalidade que lhe subjaz e que caracteriza o nosso sistema jurídico, em que o Tribunal não aprecia a constitucionalidade das concretas decisões judiciais ou administrativas, mas das normas de que tenha sido feita aplicação pela decisão judicial recorrida -, não é expressa qualquer dúvida sobre o texto do acórdão ou sobre as razões pelas quais se considerou não estarem reunidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Consequentemente, porque o pedido não versa sobre qualquer ponto em que o acórdão possa considerar-se menos claro ou de duvidoso sentido, improcede o pedido de esclarecimento.
4. Quanto à arguição de nulidades
A recorrente arguiu a nulidade do acórdão n.º 331/11, proferido nestes autos (fls. 10892 e segs.), por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil (CPC).
4.1. Em primeiro lugar, a recorrente argumenta que, relativamente ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 2010, o acórdão de que reclama considerou indevidamente a motivação veiculada pelo requerimento que consta dos autos a fls. 9727 (registo de entrada de 2 de Junho de 2010), quando deveria ter apreciada a motivação constante do requerimento incorporado nos autos a fls. 10 103 (registo de entrada de 21 de Setembro de 2010).
É certo que relativamente a esse acórdão a recorrente apresentou o que aparenta serem dois requerimentos de interposição (e não duas motivações). Mas só isso, embora processualmente anómalo, é exacto. O mais é argumentação manifestamente improcedente.
O recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, ainda que a decisão impugnada seja proferida em processo penal, segue os termos do recurso de apelação em processo civil (artigo 69.º da LTC). Interpõe-se mediante requerimento em que se identifique a decisão recorrida, a alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC ao abrigo do qual se pretende aceder ao Tribunal Constitucional e a norma cuja inconstitucionalidade se quer ver apreciada. Estes são os requisitos que o recorrente sempre tem de satisfazer, seja qual for a alínea do n.º1 do artigo 70.º ao abrigo da qual pretenda aceder ao Tribunal Constitucional. A eles acrescem as demais indicações exigidas pelo artigo 75.º-A da LTC, que variam em função do tipo de recurso interposto. Nisso se esgota o acto de interposição de recurso, cabendo ao juiz ou relator no tribunal a quo proferir despacho de admissão ou não admissão. Não há lugar à “motivação” do recurso de constitucionalidade no requerimento de interposição, ainda que o processo de que emerge seja de natureza penal. Essa motivação constará das alegações, a apresentar a seu tempo, já no Tribunal Constitucional (artigo 79.º da LTC).
No caso, a recorrente notificada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 2010, que apreciou autonomamente a questão da composição do tribunal colectivo, interpôs dele recurso com o requerimento incorporado a fls. 9727, dizendo fazê-lo à cautela e para a hipótese de não vir a ser admitido o recurso que concomitantemente do mesmo acórdão interpôs para o Pleno das Secções Criminais do mesmo Supremo Tribunal. O recurso para o Pleno não foi admitido. E foi admitido o recurso para o Tribunal Constitucional, “que a recorrente interpôs da mesma decisão e ao mesmo tempo … para o caso de não ser admitido o recurso anterior” (despacho de fls. 9957). Uma reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que a recorrente deduziu contra o indeferimento do recurso para o Pleno foi julgada inadmissível. E igual insucesso vieram a ter, pelos Acórdãos n.ºs 8/11 e n.º 70/11, a reclamação e o recurso que a recorrente trouxe até ao Tribunal Constitucional no âmbito desta sua pretensão de interpor recurso para o Pleno das Secções Criminais.
Após a decisão do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça sobre a reclamação, a recorrente apresentou um novo requerimento (fls. 10103) em que veio requerer “de novo, a apreciação que por mera cautela havia requerido e já foi admitida, como referido supra em II, daquela questão de inconstitucionalidade pela via do Recurso para o Tribunal Constitucional da interpretação dos conceitos normativos em que se fundou o Acórdão da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Maio de 2010 ....”. Quanto ao mais, designadamente a identificação do objecto material e processual do recurso, o requerimento repete, em substância, o requerimento anterior.
Esse requerimento, dando à recorrente o benefício de não ver em toda esta sua anómala actuação um propósito entorpecente mas o de adoptar cautelas de patrocínio que cubram a mais remota possibilidade de o recurso de constitucionalidade soçobrar por razões processuais, não pode ter outro sentido processualmente relevante que não seja o de reiterar ou manter o recurso de constitucionalidade já admitido. E foi deste modo que essa intervenção da recorrente foi interpretada no Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido proferido despacho em que se consignou: “[r]elativamente ao 2.º requerimento, o recurso já foi admitido anteriormente (recurso entrado no Supremo Tribunal de Justiça em 1 de Junho de 2010) e já foi enviado para o Tribunal Constitucional, conjuntamente com outros do mesmo processo. Assim, remeta ao Tribunal Constitucional o aludido requerimento para ser junto aos autos de recurso que já foram para lá enviados” (fls. 10101).
Perante tal clareza, dificilmente se compreende a argumentação da recorrente de que o “2º recurso” precludira e que havia um “4.º recurso” que não foi apreciado. O recurso para o Pleno das Secções Criminais não fora admitido, pelo que a “cautela” que levara a requerente a interpor logo o recurso de constitucionalidade se justificava, nenhuma razão havendo para considerá-lo caducado. Pode até dizer-se mais: não fora ter a recorrente interposto logo o recurso de constitucionalidade, seria muito duvidoso que pudesse fazê-lo depois das vias anómalas porque enveredou. Aliás, se interferência pudesse desenhar-se entre os diversos meios processuais utilizados seria de sentido inverso ao pretendido pela recorrente (artigo 75.º, n.º 1, da LTC).
Não há, portanto, dois recursos do acórdão de 12 de Maio de 2010. Há um só recurso interposto com o requerimento de fls. 9727 e mantido ou confirmado pelo requerimento de fls. 10 103. Foi sobre ele que foram produzidas alegações, em conformidade com o despacho de fls. 10 283, e foram essas alegações que foram apreciadas pelo Tribunal Constitucional, embora para concluir que não se verificavam os pressupostos para o respectivo conhecimento de mérito. No juízo formulado, a “duplicação” do requerimento de interposição é irrelevante, permanecendo a decisão invariável quer se atenda ao primeiro requerimento, quer ao segundo requerimento, quer aos dois requerimentos (e não “motivação do recurso”, recorde-se), porque o que levou a não conhecer do objecto do recurso se situa a montante do requerimento de interposição. Respeita aos termos da suscitação da questão de inconstitucionalidade e à sua relação com a decisão recorrida. Efectivamente, o requerimento de interposição constitui o lugar processualmente adequado para a (primeira) definição do objecto do recurso, não para a suscitação da questão em termos de poder considerar-se cumprido o ónus imposto pelo n.º 2 do artigo 72.º e verificado o pressuposto exigido pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70.ºda LTC, em replicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição. E isso vale para todas as intervenções posteriores à prolação da decisão recorrida. Nenhuma delas é idónea para suprir o que então é irremediável: a falta de coincidência entre a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada e aquela que serviu de ratio decidendi ao acórdão recorrido.
Improcede, pois, tudo quanto a recorrente alega a este propósito, não tendo o acórdão de fls. 10 892 e segs. (Acórdão n.º 331/11) incorrido em nulidade.
4.2. Em segundo lugar, sustenta a recorrente que constitui nulidade por omissão de pronúncia não ter o Tribunal tomado conhecimento do mérito do recurso, ou seja, “a inconstitucionalidade da não aplicação da norma do artigo 71.º da LOFT, inconstitucionalidade suscitada processualmente de forma adequada, em suscitação que manteve a mesma identidade essencial, assim tendo violado o dever de sobre a mesma se pronunciar”.
Também nesta argumentação há um equívoco patente.
Tendo o acórdão decidido que não pode conhecer-se do objecto do recurso porque não se verificam os respectivos pressupostos específicos, designadamente porque a norma relativamente à qual poderia considerar-se ter havido adequada suscitação da questão de inconstitucionalidade não constitui ratio decidendi e aquela que o tribunal a quo considerou aplicável não foi objecto de oportuna suscitação de constitucionalidade, fica definido que não pode apreciar a constitucionalidade de qualquer delas. Com isso o Tribunal responde integralmente ao recurso, nos limites do seu poder de cognição, ficando a hipótese de conhecer de mérito prejudicada, pela solução dada à questão relativa aos pressupostos processuais (artigo 660.º do CPC). Poderá, discordar-se da decisão, seja porque se tem a norma como aplicada, seja porque se considera a questão suscitada de modo processualmente adequado. Mas isso respeita ao acerto do julgamento, não à nulidade por omissão de pronúncia.
É oportuno recordar que o Tribunal só pode julgar inconstitucional a norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação por inconstitucionalidade (cfr. artigo 79.º-C da LTC). Não lhe cabe apreciar, ainda que se esgrima com argumentos de ordem constitucional, se uma decisão administrativa ou em matéria administrativa violou a lei por ter optado por regime jurídico distinto daquele que deveria ter orientado o órgão decisor ou se o tribunal da causa errou no julgamento acerca da constitucionalidade ou legalidade dessa actuação.
5. Decisão
Pelo exposto decide-se indeferir o pedido de esclarecimento e a arguição de nulidades e condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 12 de Outubro de 2011.- Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.
--------------------------------------------------------------------------------
[1] Rectificado pelo Acórdão nº 383/2011