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Processo n.º 739/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. A. requereu a entrega judicial das suas duas filhas B. e C., no âmbito de providência cautelar cível de entrega judicial de menor, que instaurou, em Julho de 2007, contra D.. O Tribunal Judicial de Almeirim indeferiu o pedido, inibindo a ora reclamante do exercício do poder paternal referente às suas duas filhas menores, confiando-as aos cuidados da recorrida. Inconformada, apresentou recurso para o Tribunal de Relação de Évora que, concedendo provimento parcial ao recurso, decidiu “indeferir o pedido de entrega judicial das menores”. Ainda inconformada, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. O recurso não foi admitido com fundamento no n.º 2 do artigo 1411.º do Código de Processo Civil. Apresentou então reclamação para a conferência do referido Tribunal, a qual foi também indeferida.
2. Recorreu depois para este Tribunal invocando, no essencial, o seguinte:
“[...] 1. Ao não admitir o recurso de revista interposto pela recorrente, o douto acórdão recorrido interpretou e aplicou o artigo 1411.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, no sentido de que a inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça abrange igualmente um recurso de revista interposto pela progenitora, contra uma decisão que indeferiu a entrega judicial de um seu filho menor e confiou-o à guarda de uma terceira pessoa mesmo sem ter reconhecido a idoneidade da recorrente ou, ainda, qualquer situação de perigo quanto à segurança, saúde, formação moral ou educacional do filho menor…
2. O que [...] caracteriza a inconstitucionalidade material do referido artigo 1411.º, n.º 2, do CPC, desde logo, porque revela-se violadora do direito a um processo justo e equitativo, previsto pelo artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem [...]
3. Igualmente viola o disposto pelo artigo 20.°, n.° 4, da CRP [...]
4. Viola, ainda, o disposto pelo artigo 36.°, n.° 6, da CRP [...]
6. Restando violado, ainda, salvo sempre o devido respeito, o princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.° da CRP, assim como o princípio da legalidade a este inerente, igualmente consagrado no artigo 3.°, do mesmo Texto Constitucional [...].
3. Foi então proferida decisão sumária onde se afirmou:
“Estão reunidos os pressupostos para a emissão de decisão sumária ex vi artigo 78.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, por se tratar de questão simples na medida em que existe já jurisprudência anterior que versa esta matéria, sendo a mesma de manter. Com efeito, sobre a questão de constitucionalidade que se perfila nos autos, foram proferidos, entre outros, os Acórdãos n.º 930/96 e 971/96, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, tendo sido decidido não julgar inconstitucional a norma em questão. O Tribunal tem, portanto, entendido, de forma reiterada, que o núcleo fundamental do direito ao recurso, tal como é tutelado na nossa Constituição, abrange o direito ao recurso – isto é, a um grau de recurso – sempre que se trate de decisões judiciais proferidas em processo penal ou de decisões que afectem direitos fundamentais. Mas esse núcleo restringe-se ao direito ao recurso enquanto direito a um duplo grau de jurisdição. O que a Recorrente pretende é que lhe seja reconhecido o direito ao duplo grau de recurso, isto é, ao triplo grau de jurisdição. Este conteúdo, no entanto, não deriva, como resulta de jurisprudência firme deste Tribunal, designadamente da que foi citada anteriormente, dos parâmetros fundamentais cotejados.”
4. Inconformada, a recorrente reclama para a Conferência, dizendo, no essencial, para o que efectivamente releva, o seguinte:
“A douta decisão sumária entendeu, que
“...O que a Recorrente pretende é que lhe seja reconhecido o direito ao duplo grau de recurso, isto é, ao triplo grau de jurisdição...”.
Consignando o fundamento de que este Venerando Tribunal Constitucional
“...tem, portanto, entendido, de forma reiterada, que o núcleo fundamental do direito ao recurso, tal como é tutelado na nossa Constituição, abrange o direito ao recurso — isto é, a um grau de recurso — sempre que se trate de decisões proferidas em processo penal ou de decisões que afectem direitos fundamentais. -. “(destacamos)
Sem prejuízo das demais disposições referenciadas no recurso interposto, a Recorrente pede a devida vénia para destacar, o quanto estabelece o artigo 36. °, n.° 6, da Constituição da República: [...]
Ou seja, a Constituição estabelece, como direito fundamental — sujeito, inclusivamente, ao regime de aplicação directa, por força do disposto pelos seus artigos 17.° e 18.° — que os filhos “não podem ser separados dos pais...”, ou seja, não podem ser entregues aos cuidados de terceiros, senão quando os pais “...não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles...”.
É certo que, na presente situação em exame, a Recorrente interpôs recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Évora, da douta decisão do Tribunal Judicial de Almeirim, que havia decretado a inibição do poder paternal, face às filhas menores da Recorrente, confiando-as aos cuidados da Recorrida.
O que, salvo o devido respeito, poderia levar à conclusão de que, ao interpor, posteriormente, recurso de revista para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, estaria a Recorrente a pretender uma reapreciação da mesma matéria, agora em sede de “duplo grau de recurso”, ou , ainda, “triplo grau de jurisdição”, como entendeu a douta decisão sumária.
Ocorre, salvo sempre o devido respeito, que há na situação em exame uma circunstância fundamental, não considerada relevante pela douta decisão sumária, que no entender da Recorrente afasta o fundamento por esta invocado, para negar, desde logo, provimento ao recurso.
É que a matéria ventilada no recurso de revista, não se confunde com a matéria discutida em sede de apelação (porque, no caso presente, não se verificou nenhuma espécie de “dupla conforme” decisão).
Antes pelo contrário.
[...]
Desta forma, em verdade, foi a decisão do Venerando Tribunal da Relação que, ao pautar-se em critérios de exclusiva “conveniência e oportunidade”, para confiar as filhas menores da Recorrente aos cuidados da Recorrida — mesmo, quando ausentes os requisitos exigidos para a decretação da inibição do poder paternal - constituiu matéria nova e afectou o seu direito fundamental, consagrado no antes referido artigo 36.°, n.° 6, da Constituição da República.
Ora, afastar o exercício do direito ao recurso de revista pela Recorrente, nesta circunstância, salvo sempre o devido respeito, é o mesmo que negar-lhe qualquer oportunidade de defender este seu direito fundamental, ou seja, tornar, desde logo, inquestionável a decisão da Relação, proferida com critérios exclusivos de “conveniência e oportunidade”.
Pelo que, salvo sempre o devido respeito, parece que os doutos acórdãos deste Venerando Tribunal Constitucional, referenciados na douta decisão sumária, não alcançam a situação ora colocada em sede de recurso, posto que, desde logo, não analisaram a matéria sob a perspectiva do processo equitativo (até porque, a actual redacção do artigo 20.°, n.° 4, da Constituição da República, é posterior aos referenciados douto acórdãos).
[...]
Assim, ao não admitir o recurso de revista interposto pela recorrente, o douto acórdão recorrido interpretou e aplicou o artigo 1411.°, n.° 2, do Código de Processo Civil, no sentido de que “...a inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça abrange igualmente um recurso de revista interposto pela progenitora, contra uma decisão que indeferiu a entrega judicial de um seu filho menor e confiou?o à guarda de uma terceira pessoa, mesmo sem ter reconhecido a inidoneidade da recorrente, ou, ainda, qualquer situação de perigo quanto à segurança, saúde, formação moral ou educacional do filho menor...”.
O que, salvo sempre o devido respeito, caracteriza a inconstitucionalidade material do referido artigo 1411.°, n.° 2, do CPC [...].
Assim como viola o disposto pelo artigo 20.°, n.º 4, da CRP[...].
Viola, ainda, o antes referido artigo 36.°, n.° 6, da CRP[...].
Restando violado, ainda, salvo sempre o devido respeito, o princípio o Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.° da CRP, assim como o princípio da legalidade a este inerente, igualmente consagrado no artigo 3.°, do mesmo Texto Constitucional[...].
[...]”
5. O Ministério Público, por seu turno, pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.
Redistribuído o processo por o relator inicial ter deixado de fazer parte do Tribunal e dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação
6. A decisão reclamada negou provimento ao recurso por remissão para jurisprudência anterior deste Tribunal que não considerara inconstitucional o artigo 1411.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Para a reclamante, tal jurisprudência deve ser, no caso, afastada, não só porque “a matéria ventilada no recurso de revista, não se confunde com a matéria discutida em sede de apelação (porque, no caso presente, não se verificou nenhuma espécie de “dupla conforme” decisão)”, mas também porque “os doutos acórdãos deste Venerando Tribunal Constitucional, referenciados na douta decisão sumária, não alcançam a situação ora colocada em sede de recurso, posto que, desde logo, não analisaram a matéria sob a perspectiva do processo equitativo”.
Sem razão, porém.
De facto, do ponto de vista da fiscalização concreta da constitucionalidade da norma contida no artigo 1411.º, n.º 2, do Código de Processo Civil - que não da decisão do STJ, que não é, em si mesma, sindicável por este Tribunal, ao contrário do que a reclamante parece pressupor -, nenhuma linha argumentativa relevante justifica o afastamento da anterior jurisprudência. Na verdade, como se afirma no Acórdão n.º 930/96, citado na decisão ora reclamada, “em matéria de «direito ao recurso», entendido como «direito a um duplo grau de jurisdição» - excluindo a hipótese do recurso ou matéria penal, face ao nº 1 do artigo 32.º da Constituição - tem este Tribunal entendido, invariavelmente, ser o mesmo «restringível pelo legislador ordinário», estando-lhe apenas «vedada a abolição completa ou afectação substancial (entendida como redução intolerável ou arbitrária)» deste, sendo que o texto constitucional «não garante, genericamente, o direito a um segundo grau de jurisdição e muito menos, a um terceiro grau» (citações extraídas do Acórdão n.º 287/90). Ora, no caso, o que a recorrente reivindica é, após o exercício do direito ao duplo grau com o recurso para a Relação, o direito a um terceiro grau através do recurso para o Supremo Tribunal, direito que, como vimos, o artigo 20.º n.º 1 da Lei Fundamental não lhe confere.'
E nem se diga que, em relação à decisão do tribunal da relação se trataria de um primeiro grau de recurso. É que, como se afirmou recentemente no Acórdão n.º 385/11, em matéria penal, mas transponível, por maioria de razão, para os presentes autos, “com uma reapreciação jurisdicional, independentemente do seu resultado, revela-se satisfeito esse direito de defesa do arguido, pelo que a decisão do tribunal de recurso já não está abrangida pela exigência de um novo controlo jurisdicional. O facto de nessa reapreciação se ter ampliado a matéria de facto considerada relevante para a decisão a proferir, traduz precisamente as virtualidades desse meio de controlo das decisões judiciais, não sendo motivo para se considerar que estamos perante uma primeira decisão sobre o thema decidendum, relativamente à qual é necessário garantir também o direito ao recurso. Na verdade, a ampliação da matéria de facto julgada provada não modifica o objecto do processo. Tal como a decisão da 1.ª instância, o acórdão do Tribunal da Relação que sobre ela recai limita-se a verificar se o arguido pode ser responsabilizado pela prática do crime de que fora acusado e, na hipótese afirmativa, a definir a pena que deve ser aplicada, o que se traduz num reexame da causa. Assim, o Acórdão do Tribunal da Relação, apesar da alteração que introduziu à decisão recorrida, é já a segunda pronúncia sobre o objecto do processo, pelo que já não há que assegurar a possibilidade de suscitar mais uma instância de controlo, a qual resultaria num duplo recurso, com um terceiro grau de jurisdição.”
Por outro lado, não se vislumbra como possa ter aqui cabimento a invocação da norma constitucional sobre o processo equitativo, já que dela manifestamente não decorre a exigência de um qualquer grau de recurso das decisões judiciais.
Improcede, assim, a presente reclamação.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2011.- Gil Galvão – Carlos Pamplona de Oliveira – Rui Manuel Moura Ramos.