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Processo n.º 532/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Em Maio de 2008, A. intentou no Tribunal Judicial de Caminha contra B. uma acção, a fim de ser judicialmente reconhecido como filho do réu.
Tendo este último invocado a excepção de caducidade do direito do Autor, o juiz, por decisão proferida em despacho saneador, julgou improcedente a referida excepção, por se recusar a aplicar ao caso a norma constante do nº 4 do artigo 1817.º do Código Civil (ex vi artigo1873.º), com fundamento na inconstitucionalidade do prazo aí fixado para a propositura da acção. Desta recusa de aplicação de norma recorreu o Ministério Público para o Tribunal Constitucional que, através do Acórdão nº 65/2010, proferido em Secção, negou provimento ao recurso e confirmou o juízo de inconstitucionalidade proferido pelo tribunal a quo.
Baixados os autos a esse mesmo tribunal, nele se ordenou que A. e B. comparecessem na Delegação do Norte do Instituto Nacional de Medicina Legal, a fim de que aí se realizasse exame laboratorial hematológico para investigação biológica da paternidade.
Contudo, em requerimento dirigido ao Tribunal, veio B. dizer que não consentia na realização do referido exame laboratorial, por entender que ele consistiria num “atentado à sua integridade física”. Mais invocava que, sendo o direito à integridade física um direito constitucionalmente protegido (artigo 25.º da Constituição), tinha, nos termos do artigo 21.º da CRP, o direito a resistir a qualquer ordem que o ofendesse. Acrescentava ainda o Réu que, tendo entretanto entrado em vigor a Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, que alterara a redacção dos artigos 1817.º e 1842.º do Código Civil – e sendo, nos termos do disposto no artigo 3.º da mesma Lei, aplicável o novo regime legal aos processos pendentes em tribunal – não via qualquer interesse processual no prosseguimento da acção.
2. Na sequência deste requerimento, o Tribunal Judicial de Caminha considerou, em decisão datada de 2 de Junho de 2010, que, “embora o não afirmasse claramente”, o Réu invocava novamente a caducidade do direito do Autor, desta feita face à nova redacção do nº 1 do artigo 1817.º do Código Civil, dada pela Lei nº 14/2009,
de 1 de Abril. E, embora entendesse que a norma de direito transitório contida no artigo 3.º da referida Lei – que mandava aplicar o novo regime a processos pendentes em tribunal – punha “em causa o princípio da imprescritibilidade das acções de investigação da paternidade” e frustrava “intoleravelmente a confiança depositada pelo proponente da acção” [na sua imprescritibilidade], não deixou o Tribunal de a aplicar, pois que entendeu que para o caso valeria, nos termos, precisamente, da referida disposição transitória, o novo prazo de caducidade das acções de investigação da paternidade constante da actual redacção do nº 1 do artigo 1817.º do Código Civil.
Só que manteve, para o novo regime, o juízo de inconstitucionalidade que já anteriormente formulara, quando ainda vigorava a versão do Código anterior à Lei nº 14/2009. Fê-lo nos seguintes termos:
(…)
Conclui-se, assim, que todos os argumentos que fundamentaram a declaração de inconstitucionalidade do art.° 1817º, n° 1 do CC na sua versão antiga, mantém toda a pertinência e actualidade face à redacção actual, pois também ela colide com todos os princípios e direitos fundamentais enunciados.
(…)
Pelo exposto, recuso a aplicação do disposto no art.° 1817°, n° 1 na redacção introduzida pela Lei n° 14/2009, de 01/04, por inconstitucionalidade material, na medida em que prevê para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dez anos, posterior à maioridade ou emancipação do investigante, por violação dos direitos fundamentais com assento constitucional nos art.°s 2°, 36°, n° 1, 25°, 26° e 18°, n° 2.
3. Desta decisão interpôs o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o presente recurso de constitucionalidade, por a decisão do Tribunal Judicial de Caminha ter recusado a “aplicação da norma contida no nº 1 do artigo 1817.º do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009 (…) com fundamento na sua inconstitucionalidade material.”
Recebido o recurso no Tribunal, nele apresentou alegações o recorrente, que, depois de ter alertado para o facto de, no caso, se ter também entendido que era inconstitucional a norma constante do artigo 3.º da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, concluiu, pugnando para que fosse julgada contrária à Constituição a nova redacção do nº 1 do artigo 1817.º do Código Civil, por violação dos artigos 26.º, nº 1, 36.º, nº 1, e 18.º, nº 2 da CRP.
O recorrido não contra-alegou.
Importa apreciar e decidir
II – Fundamentação
4. Deve antes do mais dizer-se que o objecto do presente recurso se cinge à norma constante do nº 1 do artigo 1817.º do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, segundo a qual “[a] acção de investigação da maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação”. É esta norma – aplicável às acções de investigação da paternidade nos termos do artigo 1873.º do Código – que a decisão recorrida entende ser materialmente inconstitucional, por violação do dos direitos fundamentais com assento nos artigos 2.º, 36.º, nº 1, 25.º, 26.º, e 18.º, nº 2 da CRP.
É certo, como o sublinha, nas suas alegações o Exmo. Representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional, que a referida decisão considerou também que a norma contida no artigo 3.º da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril – segundo a qual se aplicaria aos processos pendentes em tribunal o novo regime relativo aos prazos de caducidade das acções de investigação da paternidade – era “ofensiva do princípio constitucional da tutela da confiança, corolário do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.” No entanto, para efeitos de interposição do recurso de constitucionalidade e de recorte do seu objecto, tal consideração não pode deixar de ser tida como um mero obter dicta.
Com efeito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional [artigo 280.º, nº 1, alínea a) da CRP e artigo 70.º, nº1, alínea a) da LTC] de decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade. Ora a decisão recorrida não recusou a aplicação da norma constante do artigo 3.º da Lei nº 14/2009. Pelo contrário: não obstante todas as considerações tecidas em torno da sua inconstitucionalidade, a verdade é que foi por aplicação desta norma que se chegou à conclusão segundo a qual o prazo de caducidade da acção de investigação da paternidade, à luz do qual se deveria resolver o caso concreto, seria agora o de dez anos, constante da nova redacção dada ao nº 1 do artigo 1817.º do CC pela Lei nº 14/2009. Como a regra de direito transitório constante do artigo 3.º não foi desaplicada, as considerações relativas à sua eventual inconstitucionalidade não relevam para a determinação do objecto do presente recurso, que se cinge, portanto, ao nº 1 do artigo 1817.º do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pela lei de 2009.
5. Sobre a questão de saber se é ou não inconstitucional o novo prazo de caducidade das acções de investigação da paternidade já se pronunciou o Tribunal Constitucional.
No Acórdão nº 401/2011, proferido em Plenário (e disponível em www.tribunalconstitucional.pt), decidiu o Tribunal não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, nº 1, do Código Civil, na redacção da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação da paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante.
É esta a decisão que importa também aqui aplicar, não julgando inconstitucional a norma sub judicio.
III – Decisão
Nestes termos, o Tribunal decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, nº 1, do Código Civil, na redacção da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação da paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso
Lisboa, 16 de Novembro de 2011.- Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.