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Processo n.º 666/11
Plenário
Relator: Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional
1. Em 8 de Setembro de 2011 foi recebido no Tribunal Constitucional o ofício n.º 24/2011 do Presidente da Assembleia Municipal do Cartaxo, cujo teor seguidamente se transcreve:
'ASSUNTO: Envio de documentação - Solicitação de referendo
Exmo. Senhor Presidente,
Nos termos da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 3/2010, de 15 de Dezembro, do Capítulo III, Secção I, Artigo 25.º, venho por este meio solicitar a fiscalização, constitucionalidade e legalidade da respectiva deliberação tomada na Assembleia Municipal do 01 de Setembro de 2011 relativo à “Proposta de realização de um referendo local sobre a concessão de exploração do parque público de estacionamento coberto na cidade do Cartaxo, com integração de estacionamentos tarifados dispersos na via pública sob gestão do Município, a um privado, pelo prazo de trinta anos”.
Junto envio em anexo minuta da acta n.º 6, relativa à sessão ordinária da Assembleia Municipal de 01 de Setembro de 2011, bem como projecto de deliberação do BE sobre “Proposta de realização de um referendo local sobre a concessão de exploração do parque público de estacionamento coberto na cidade do Cartaxo, com integração de estacionamentos tarifados dispersos na via pública sob gestão do Município, a um privado pelo prazo de trinta anos”. [...]'
2. Em 3 de Outubro de 2011 o Tribunal decidiu, pelo Acórdão n.º 435/2011, pronunciar-se pela ilegalidade do referendo, ordenando a notificação do Presidente da Assembleia Municipal do Cartaxo para, querendo, no prazo de oito dias aquele órgão deliberar no sentido da reformulação da pergunta, expurgando-a da ilegalidade verificada.
3. Em 18 de Outubro de 2011 foi recebido no Tribunal, o ofício n.º 36/2011 do Presidente da Assembleia Municipal do Cartaxo, cujo teor seguidamente se transcreve:
No âmbito da decisão do Acórdão n.º 435/2011 proferido pelo Tribunal Constitucional, em 03-10-2011, notificando o Presidente da Assembleia Municipal do Cartaxo, para que no prazo de 8 dias, a Assembleia Municipal deliberasse, querendo, “no sentido da reformulação da deliberação de realização do referendo, expurgando-a da ilegalidade verificada”, junto envio em anexo minuta da acta n.º 7, relativa à sessão extraordinária da Assembleia Municipal de 14 de Outubro de 2011, bem como projecto de deliberação (reformulado) do Bloco de Esquerda.
Com os melhores cumprimentos. [...]
O requerente certificou, em anexo, que na sessão extraordinária da Assembleia Municipal do Cartaxo, ocorrida em 14 de Outubro de 2011, fora aprovada, com 11 votos a favor, 15 abstenções, e num voto contra, a seguinte deliberação:
PROPOSTA DE REALIZAÇÂO DE UM REFERENDO LOCAL SOBRE A CONCESSÃO DE EXPLORAÇÃO DO PARQUE PÚBLICO DE ESTACIONAMENTO COBERTO NA CIDADE DO CARTAXO, COM INTEGRAÇÃO DE ESTACIONAMENTOS TARIFADOS DISPERSOS NA VIA PÚBLICA SOB GESTÃO DO MUNICÍPIO, A UM PRIVADO PELO PRAZO DE TRINTA ANOS
Tendo em consideração os pressupostos contidos na resposta do Tribunal Constitucional, à proposta de realização de referendo, supra mencionada, o Bloco de Esquerda, propõe que a Assembleia Municipal do Cartaxo delibere nos termos e para os efeitos do artigo 240.º, n.º 1 da Constituição e da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de Agosto, apresentar ao Tribunal Constitucional e ao Senhor Presidente da Câmara Municipal do Cartaxo a alteração das perguntas contidas na proposta original.
Assim propõe-se que seja considerada para o referendo local sobre a concessão de exploração do parque público de estacionamento coberto na cidade do Cartaxo, com integração de estacionamentos tarifados dispersos na via pública sob gestão do município, a um privado pelo prazo de trinta anos, apenas uma pergunta, que a seguir se descreve:
Concorda que a Câmara Municipal do Cartaxo contratualize a concessão de exploração do parque de estacionamento coberto, e de mais 620 lugares de estacionamento dispersos nas ruas circundantes ao centro urbano, por um prazo de 30 anos a uma empresa privada?
Sim
Não
4. Cumpre apreciar e decidir, nos termos dos artigos 27º n.º 2, 29º n.º 2 e 30º n.º 1 do Regime Jurídico do Referendo Local, aprovado pela Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de Agosto (doravante, RJRL).
5. O artigo 10º n.º 1 do RJRL confere aos deputados das assembleias municipais poder de iniciativa no referendo local municipal, como aconteceu no caso em presença. Tal referendo visa permitir que os cidadãos eleitores recenseados na autarquia local onde se verifique a iniciativa se pronunciem sobre questões de relevante interesse local que devam ser decididas pelos respectivos órgãos autárquicos. O referendo terá, aliás, efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento. Sendo o referendo (local ou nacional) um meio excepcional de consulta da vontade popular, a lei condiciona a sua convocação e realização à verificação de um determinado número de requisitos
O Tribunal, pronunciando-se sobre o pedido inicialmente formulado, concluiu no Acórdão n.º 435/2011 não haver obstáculos relacionados quer quanto aos limites temporais da consulta, quer quanto à natureza da questão a submeter a referendo por se tratar de matéria de relevante interesse local, da competência do órgão autárquico em causa.
6. Considerou, todavia, o Tribunal que as perguntas então enunciadas, decorrentes da deliberação tomada em 1 de Setembro do corrente ano, não obedeciam ao critério do n.º 2 do artigo 7º do RJRL, nos termos do qual se determina que as perguntas são formuladas com objectividade, clareza e precisão, sem sugerirem directa ou indirectamente o sentido das respostas. O Tribunal ponderou, na verdade, que 'a clareza da pergunta há-de conjugar-se com a sua objectividade e precisão, o que implica uma maior complexidade e a utilização de terminologia rigorosa, para se evitar, posteriormente, a existência de equívocos quanto às soluções propugnadas, por a pergunta abranger situações não pretendidas ou consentir leituras ambíguas', sendo que os requisitos da objectividade, clareza e precisão são verdadeiramente cruciais para permitir aos eleitores a leitura e compreensão acessíveis e sem ambiguidades da pergunta, evitando 'que a vontade expressa dos eleitores seja falsificada pela errónea representação das questões' requerendo-se 'a minoração, na medida do possível, do risco de leituras e entendimentos da questão pelos seus destinatários que possam – directa ou implicitamente, por interrogações ou ambiguidades que suscitem no eleitor – apontar para uma das respostas alternativas', sendo que o adequado cumprimento destes requisitos não poderá deixar de ser equacionado, a partir do ponto de vista da globalidade dos eleitores, porquanto, 'fazendo apelo a um paralelismo com a teoria da impressão do destinatário, o horizonte para aferir a compreensão das perguntas há-de ser o cidadão eleitor normal, sem conhecimentos especializados nas matérias sobre que é inquirido'.
Quanto à primeira pergunta, entendeu-se que a sua formulação permitia uma incorrecta representação da realidade, susceptível de inquinar a formação de uma vontade esclarecida por parte dos respectivos eleitores, por ser compatível com uma leitura segundo a qual os lugares de estacionamento 'que neste momento são públicos' deixam de o ser por virtude do contrato de concessão, o que traduziria a consideração de um errado pressuposto de facto e de direito, susceptível de fazer cair os eleitores em erro quanto ao alcance e aos efeitos da concessão.
Por outro lado, a segunda questão introduziria um elemento de dúvida inultrapassável podendo conduzir a um irremediável apuramento de um resultado de sentido equívoco, por ser hipoteticamente possível a ocorrência de respostas simultaneamente afirmativas ou negativas às duas questões, prejudicial à aferição de um resultado unívoco e o carácter dilemático do referendo.
Finalmente, o Tribunal entendeu que as perguntas se encontravam formuladas de modo a sugerir uma determinada resposta, por se haver omitido, na primeira questão, qualquer referência às receitas municipais e incluindo-se essa realidade, que constitui um factor de ponderação, apenas na segunda hipótese.
7. A tarefa do Tribunal está agora facilitada pela adopção, no novo pedido, de uma única pergunta a submeter aos eleitores o que arreda, imediatamente, os obstáculos decorrentes da conjugação das anteriores duas questões. A actual – única – pergunta apresenta a seguinte formulação:
Concorda que a Câmara Municipal do Cartaxo contratualize a concessão de exploração do parque de estacionamento coberto, e de mais 620 lugares de estacionamento dispersos nas ruas circundantes ao centro urbano, por um prazo de 30 anos a uma empresa privada?
8. Ora, afigura-se ao Tribunal que a Assembleia Municipal do Cartaxo retirou os elementos susceptíveis de perturbar o sentido claro e unívoco da pergunta. Esta revela uma questão exposta de forma não ardilosa, que é susceptível, tal como impõe o legislador, de uma resposta dilemática de sim ou não. É, assim, de concluir que a pergunta está agora formulada com objectividade, clareza e precisão e não sugere, directa ou indirectamente, o sentido da resposta, preenchendo o requisito decorrente do artigo 7º n.º 2 do RJRL.
9. Em consequência, o Tribunal Constitucional dá por verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo local convocado pelas deliberações tomadas na Assembleia Municipal do Cartaxo em 1 de Setembro e em 14 de Outubro de 2011, com a seguinte questão:
Concorda que a Câmara Municipal do Cartaxo contratualize a concessão de exploração do parque de estacionamento coberto, e de mais 620 lugares de estacionamento dispersos nas ruas circundantes ao centro urbano, por um prazo de 30 anos a uma empresa privada?
Lisboa, 19 de Outubro de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – Ana Maria Guerra Martins – José Borges Soeiro – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – João Cura Mariano – Maria João Antunes – Joaquim de Sousa Ribeiro – Gil Galvão – Catarina Sarmento e Castro (com declaração) – J. Cunha Barbosa (vencido, nos termos da declaração que junto) – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Tal como na discussão que antecedeu a aprovação do anterior Acórdão relativo ao referendo local em apreciação, divergi, na presente decisão, da posição maioritária assumida pelo Tribunal quanto à desnecessidade do parecer da câmara municipal para que a assembleia municipal pudesse, no caso, deliberar sobre a realização dum referendo.
No primeiro Acórdão, havendo este Tribunal concluído pela ilegalidade do referendo por outras razões, a que aderi, e não perfilhando a maioria o entendimento da obrigatoriedade do parecer, dispensou-se o tratamento desta questão na qual estou vencida, não tendo a falta do parecer dado lugar à notificação do requerente nos termos do art. 28.º da Lei do Referendo Local.
Em meu entender, quando a competência não seja exclusivamente da assembleia municipal – e, no caso, fora já nesta matéria, efectivamente, exercida por ambos os órgãos, resultando dos elementos do processo que a câmara municipal deliberara e a assembleia municipal autorizara a concessão, em Junho de 2011, segundo descreve o projecto de deliberação primeiramente aprovado e submetido a este tribunal – ainda que a assembleia possa, sem qualquer dúvida, utilizar o referendo para formar a sua decisão (ou, no caso, eventualmente, modificá-la), creio que, deve a câmara ser envolvida no procedimento respectivo, devendo, nos termos da lei, ser-lhe solicitado um parecer, ainda que não vinculativo.
Creio que a intenção do legislador foi a de dar oportunidade ao órgão que também participa na tomada de decisão objecto de referendo, de transmitir ao outro órgão que pretende exercer a iniciativa referendária, a sua posição quanto ao mesmo. Não me parece que com o art. 24.º o legislador tenha desejado que, em situações como a do presente processo, tendo uma câmara municipal exercido a sua competência deliberando (no caso, concessionar a exploração dum parque de estacionamento coberto e de estacionamentos à superfície), e havendo a sua decisão sido objecto de decisão favorável por parte da assembleia municipal (decisões que são, por norma, decisões de controlo preventivo), que, posteriormente, sem pedir qualquer parecer à câmara municipal, possa a assembleia, sem mais, deliberar realizar um referendo sobre a mesma questão. Embora entenda, sem dúvidas, que a assembleia municipal pode utilizar, nestes casos, o referendo, defendo que a lei obriga a que peça um parecer à câmara municipal.
Mesmo tomando-se como certo que a assembleia municipal tem competência na matéria em causa, e que pudesse resultar duma certa leitura, que não a minha, da letra do art. 24.º, n.º 2 (“no caso de a competência relativa à questão submetida a referendo não pertencer à assembleia municipal”) que bastaria que a assembleia municipal fosse competente para excluir a necessidade do parecer, entendo, contudo, que uma decisão acerca da oportunidade (também política) do referendo não pode deixar de passar pela auscultação do órgão que, no caso, também é assumidamente considerado como sendo competente na matéria, havendo mesmo já deliberado sobre a mesma. O facto de ter havido iniciativa da câmara municipal no procedimento da concessão não serve de argumento para afastar a necessidade da sua participação, através do parecer, no procedimento referendário – pelo contrário, reforça-a.
Por estas razões, embora concordando, agora, como no Acórdão anterior, com a decisão tomada, entendo que deveria ter tido lugar a notificação do requerente para suprir a falta do parecer.
Catarina Sarmento e Castro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não discordando da fundamentação do acórdão, no que concerne à correcção e clareza da pergunta, agora, formulada com vista à realização do referendo, entendo, todavia, que, como deixei referido na discussão do memorando, à realização do mesmo obstaria, designadamente, a matéria que constitui seu objecto, afigurando-se-me vedada pelo disposto no artigo 4.º, n.º 1, al. d) da LORL.
Na realidade, constatando-se, neste caso, mesmo segundo um critério de simples evidência, que a matéria do referendo, por densificar um problema de afectação e gestão de bens públicos municipais, cujos efeitos se prolongarão no tempo durante vários mandatos, assume relevante interesse municipal, importará, no entanto, equacionar se a matéria do referendo se encontra, ou não, abrangida pela exclusão de conteúdos prevista no artigo 4.º da LORL.
De acordo com a alínea d) do n.º 1 de tal preceito, são expressamente excluídas do referendo local as questões e os actos de conteúdo orçamental, tributário ou financeiro.
A actividade financeira pode ser definida como integrando todos os actos tendentes à obtenção de receitas e à realização de despesas, com vista à satisfação das necessidades colectivas que um ente público tem a seu cargo (cf. Cardoso da Costa, Curso de direito fiscal, Coimbra, 1972, p. 1),“desdobrando-se (...) por uma série diversificada de operações relativas seja à aquisição e à gestão das receitas, seja à realização das despesas” (Casalta Nabais, Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra, 2005, p.4), pela qual se opera “a arbitragem concreta entre os bens económicos atribuídos ao Estado e os dos particulares, não só numa perspectiva estática (...), mas também numa óptica dinâmica de rendimento (Sousa Franco, Finanças públicas e direito financeiro, Volume I, 4.ª edição, Coimbra, 1997, p. 100), aí se encontrando compreendida, entre o mais, a matéria relativa aos respectivos meios de financiamento das diversas entidades públicas (cf. Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 4.ª Edição, Coimbra, 1991, pp. 27 e ss.).
Nesta óptica, a concessão de exploração de bens do domínio público, traduzida num contrato administrativo pelo qual se opera a transferência da administração para a entidade concessionária dos direitos relativos à exploração desse bem, constitui uma questão de conteúdo financeiro relativa à rentabilização de bens públicos.
Na verdade, a opção pelo recurso ao instrumento de gestão do contrato de concessão envolve, sempre, uma ponderação acerca, entre outros aspectos, das vantagens patrimoniais a obter por parte do concedente, razão pela qual a celebração de tal contrato revelará sempre a presença de uma indefectível motivação de índole estritamente financeira.
A concessão dos bens públicos desenvolve-se não só num problema de eleição do melhor modo de dar satisfação às necessidades públicas, como também numa ferramenta da melhor gestão dos rendimentos possíveis propiciados por esses bens, sendo a decisão essencialmente influenciada pelos ganhos directos ou indirectos de natureza económica e financeira.
Por esse motivo, concluiria pela ilegalidade da matéria abrangida na presente iniciativa referendária, atento o disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea d), da LORL.
J. Cunha Barbosa