Imprimir acórdão
Processo n.º 832/09
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. recorre para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, que confirmou o julgamento de improcedência da oposição que o oponente, ora recorrente, deduzira contra uma execução fiscal, por dívidas à Segurança Social, que contra si reverteu. Diz o recorrente:
[...] não se conformando com o douto acórdão que julgou o seu recurso improcedente, vem dele recorrer para o Tribunal Constitucional, recurso que deverá subir de mediato, nos autos e com efeito suspensivo, e em cumprimento do douto despacho de aperfeiçoamento de fls., indicar o seguinte:
a) O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do artigo 70.1 da Lei do Tribunal Constitucional;
b) A norma cuja inconstitucionalidade se pretende que este venerando Tribunal aprecie é a constante do artigo 24.1 b) da Lei Geral Tributária.
c) Tal disposição, salvo o devido respeito, viola a norma constitucional contida no artigo 32.2 da nossa Lei Fundamental.
d) O recorrente levantou a questão da inconstitucionalidade dessa norma no ponto 25 das suas alegações de recurso para o venerando Supremo Tribunal de Justiça, como já antes o fez no ponto 19 das suas alegações de recurso, do douto acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (recurso jurisdicional tributário proc.º 01462/06, 2.º juízo, 2.ª secção (contencioso tributário).
O recurso foi admitido e o recorrente alegou, concluindo:
a) O recorrente não preteriu credores com o património da empresa pois pagou os velhos trabalhadores com dinheiro arrancado do seu património particular que vendeu ou onerou.
b) A recuperação da empresa tornou-se impossível pois que, tratando-se duma sociedade de despachantes aduaneiros que deixou de facturar 90% do que costumava desde que as fronteiras da UE desapareceram, foi impossível a sua reconversão noutra actividade não só pela idade avançada e anterior formação do pessoal de que dispunha. Mesmo assim conseguiu sobreviver 7 anos àquele desaparecimento!
c) O recorrente não delapidou o património da empresa porque esta sendo uma prestadora de serviços, não o tinha a não ser a organização de pessoas que deixou de ter préstimo face às novas realidades tecnológicas, sua avançada idade e formação agora antiquada.
d) O recorrente não teve culpa na inexistência (a partir de determinada altura) de trabalho (e era apenas uma empresa prestadora de serviços) que não lhe pode ser imputada por derivar de facto de terceiros incontrolável por si ou por qualquer outro (extinção das fronteiras europeias).
e) A recorrida não alegou factos concretos de que o recorrente pudesse defender-se da presunção de culpa que, mesmo se fosse constitucional, não dispensava a quem se prevalecesse dela, de os apontar e provar
f) Mas, algumas das dívidas exequendas estão prescritas por não ter sido cumprido o prazo do artigo 498.º do Código Civil, aplicável porque o recorrente, não é o devedor originário e a sua responsabilidade é-lhe assacada por uma culpa presumida.
g) Apesar disso a culpa presumida viola o princípio da inocência por se tratar de direito delitual e não civil, qualidade já reconhecida pelo Venerando Supremo Tribunal em acórdão atrás citado. Com efeito,
h) “A responsabilidade subsidiária dos gerentes e administradores das sociedades de responsabilidade limitada tem natureza delitual ou extra contratual.
i) Ora a solução adoptada no douto acórdão recorrido só poderia aceitar-se como excepção ao princípio da presunção de inocência. Só que esta excepção teria de estar expressa mente prevista no texto constitucional.
j) E o pagamento subsidiário só nasce como compensação por um delito negligente, (para-fiscal), razão porque, materialmente, se trata dum conceito penal e não civil ou administrativo.
k) Se não fosse uma pena, ao gestor pagador estariam reservados os direitos de regresso e os outros que protegem o fiador ou terceiro que paga pelo devedor.
l) Ao inverter a ordem constitucional da presunção de inocência, foi violada a constituição.
m) Assim, a norma contida na alínea b) do artigo 24 da Lei Geral Tributária, quando determina que os que exercem funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si, pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes é imputável a falta de pagamento contraria o disposto no artigo 32.2 da CRP pelo que deve ser considerada inconstitucional.
O recorrido Instituto de Gestão de Regimes de Segurança Social contra-alegou rematando a sua alegação da seguinte forma:
1. O n.º 1 do artigo 24º al. b) da LGT não viola o principio da presunção de inocência previsto no artigo 32º n.º 2 da CRP.
2. O n.º 1 do artigo 24º al. b) da LGT limita-se a estabelecer uma presunção de culpa no não acatamento de deveres funcionais de gerência.
3. Assim, o ónus (do gerente) de provar que não tem culpa de não ter pago em tempo as obrigações fiscais que terminavam durante o exercício do seu cargo não viola qualquer preceito constitucional.
Por todo o exposto, deve improceder o recurso no que se refere à invocada inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 24º al. b) da LGT, mantendo-se em todo mais o douto Acórdão recorrido [...]
2. Corridos os vistos, cumpre decidir.
Em causa está a norma prevista na alínea b) do artigo 24º da Lei Geral Tributária, quando determina que aqueles que exercem funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si, pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes é imputável a falta de pagamento. No entender do recorrente, a norma contraria o disposto no artigo 32º n.º 2 da Constituição, pelo que deve ser julgada inconstitucional.
A decisão recorrida tratou a questão de inconstitucionalidade da seguinte forma:
[...] Quid juris?
Pela excelência do parecer do EPGA, entendemos transcrevê-lo, por sufragarmos o entendimento aí explanado.
Escreveu o distinto magistrado:
“Estabelece o art. 32.º, n.º 2 da Constituição da República que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.
“O que ali se consagra é um princípio estruturante do processo penal – e de um modo geral do direito sancionatório – denominado da presunção da inocência.
“Nas suas origens o princípio teve sobretudo o valor de reacção contra os abusos do passado – cf. neste sentido Constituição da República Anotada de Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo I, pág. 355.
“No presente consubstancia-se nas ideias força de que o processo penal “deve assegurar todas as necessárias garantias práticas de defesa do inocente e não há razão para não considerar inocente quem não foi ainda solene e publicamente julgado por sentença transitada em julgado” (ob. cit., pág. 355- 356).
“Trata-se, como referem aqueles autores de princípio que “há-de projectar-se no processo penal em geral, na organização e funcionamento dos tribunais, no direito penitenciário e até porventura no direito penal”.
“O principio tem pois aplicação no âmbito do processo criminal ou sancionatório, em geral, mas não em contencioso de anulação de actos tributários ou no processo de oposição à execução, como é o caso – cf., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 06.10.1999, recurso 22759.
“Daí que se entenda que o disposto na alínea b) do n.º 2 do art. 24º da Lei Geral Tributária não colide, de forma alguma, o princípio constitucional da presunção da inocência, pois que tal princípio tem âmbito de aplicação restrito ao procedimento penal ou sancionatório (disciplinar ou contra-ordenacional).
“Acresce dizer que mesmo no âmbito do processo penal o princípio da presunção da inocência não pode nem deve ser identificado com o princípio da livre convicção do julgador, o que determinaria o afastamento do processo penal de toda a espécie de presunções legais.
“Como sublinham Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit. pag. 356, “as presunções fundam-se no senso comum, nas regras válidas da experiência, constituindo princípios de direito para a valoração da prova. Trata-se, a maioria das vezes de uma vigilância moderada do juiz. As presunções não dispensam o tribunal de procurar a verdade e de assegurar ao arguido todos os meios práticos para demonstrar o infundado da presunção”.
“Portanto, mesmo no âmbito do processo penal, o princípio constitucional da presunção da inocência, não colide com a existência de presunções legais.
“O mesmo sucederia no âmbito do processo tributário e relativamente à presunção de culpa ínsita na alínea b) do n.º 2 do art. 24º da Lei Geral Tributária, se tal princípio fosse aplicável.
“Naquele normativo estabelece-se, para o que aqui releva, que as pessoas que exerçam funções de administração ou gestão em pessoas colectivas são subsidiariamente responsáveis “pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento”.
“Trata-se de uma responsabilidade que não é objectiva e assenta num acto ilícito que é o não acatamento dos deveres funcionais de gerência nomeadamente do dever de proceder ao pagamento de obrigações tributárias cujo prazo terminou no exercício do cargo.
“Como referem Diogo Leite Campos, Benjamim da Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada, ia edição, pág. 112 “aqui o prazo legal de pagamento ou entrega terminou no período de exercício do cargo. Neste caso, a lei é mais severa, dado que a responsabilidade da pessoa que exerce funções de administração pareceu mais séria. Assim o ónus da prova da ausência de culpa já é a cargo da pessoa que exerce funções de administração”.
“No entanto tal presunção de culpa funcional relativa ao não acatamento dos deveres de gerência não dispensa o tribunal de procurar a verdade material, sendo que o processo tributário assegura ao oponente, responsável subsidiário, todos os meios práticos para demonstrar o infundado da presunção.
“Daí que, também por aqui, se conclua que o disposto na alínea b) do n.º 2 do art. 24º da Lei Geral Tributária não colidiria, se aplicável, com o princípio constitucional da presunção da inocência”.
Comungamos inteiramente deste entendimento, na parte que ora apreciamos (constitucionalidade do art. 24º, 2º, b) da LGT).
O art. 32.º da CRP está subordinado à epígrafe “garantias de processo criminal”. Ora, no caso, e manifestamente, não estamos perante um ilícito penal ou contra-ordenacional, razão por que este preceito não resulta violado.
Aliás, o recorrente nada alega de relevante relativamente à pretensa inconstitucionalidade, limitando-se a trazer à colação um aresto deste STA, e defendendo que o art. 32.º, 2, da CRP consagrou a presunção de inocência, enquanto o art. 24.º, 1, b) da LGT consagra a presunção da culpa.
Mas não há, como resulta do exposto, qualquer antinomia entre os preceitos em causa, pois enquanto aquele se reporta às garantias em processo criminal este nada tem a ver com elas.
Afigura-se-nos que o regime consagrado no referido normativo é um regime proporcionado. A ilisão da culpa, a cargo do responsável subsidiário, não viola, a nosso ver, qualquer preceito constitucional.
A pretensão do recorrente não pode pois proceder. [...]
O Tribunal Constitucional tem jurisprudência sobre a questão, proferida precisamente em recurso interposto pelo mesmo recorrente, em que estava em causa a citada norma do artigo 24º n.º 1 alínea b) da Lei Geral Tributária, igualmente acusada de ofender o parâmetro constitucional previsto no n.º 2 do artigo 32º da Constituição. Diz-se no Acórdão n.º 283/10:
Importa começar por afirmar que a norma em causa (a alínea b) do nº 1 do artigo 24º da LGT) não tem, de todo, a estrutura típica das normas de natureza criminal, designadamente a que é ditada pelas exigências do princípio da legalidade em matéria criminal (artigo 29º da Constituição) quer quanto à “norma de comportamento” quer no que se refere à “norma de sanção”.
Por outro lado, a natureza tributária daquela norma não é questionada nem pela doutrina nem pela jurisprudência (entre outros, cf. CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, Almedina, 2006, p. 278 e ss., SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 2007, p. 270 e ss., e JÓNATAS MACHADO/NOGUEIRA DA COSTA, Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, 2009, p. 97 e ss.).
Face à natureza tributária da norma cuja apreciação foi requerida é de concluir, pois, que não é convocável, como parâmetro de aferição da constitucionalidade da mesma, norma que integra as garantias de processo criminal. Isto é, a garantia constitucionalmente reconhecida a todo o arguido de que se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa. Ainda que se sustente que a responsabilidade subsidiária por dívidas tributárias, prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 24º da LGT, tem “um carácter marcadamente sancionatório” (assim SALDANHA SANCHES, ob. cit., p. 270), o que é facto é que o processo de execução por reversão em que se efectiva este tipo de responsabilidade em nada é equiparável a um qualquer processo sancionatório em que se justifique uma extensão das garantias típicas do processo criminal.
É esta doutrina que aqui se aplica, o que conduz o Tribunal a um julgamento de improcedência da questão de inconstitucionalidade suscitada.
3. Em face do exposto, o Tribunal decide a negar provimento o recurso.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Novembro de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Rui Manuel Moura Ramos.