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Processo n.º 799/2010
Plenário
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, ao abrigo do disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada por último pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, doravante LTC), a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que a contraprova respeita a crime de condução de veículo em estado de embriaguez e seja consubstanciada em exame de pesquisa de álcool em ar expirado.
Fundamenta o requerente o seu pedido no facto de o Tribunal já ter decidido, em três casos concretos, nos Acórdãos n.ºs 488/2009 e 24/2010 e na Decisão Sumária n.º 394/2010, a inconstitucionalidade da referida norma por violação do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa.
2. Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Primeiro-Ministro, em resposta, ofereceu o merecimento dos autos.
3. Elaborado e discutido, em Plenário, o memorando a que alude o artigo 63.º da LTC, cumpre decidir em conformidade com a orientação que aí se fixou.
II – Fundamentação
4. Sob a epígrafe “Fiscalização da condução sob influência do álcoolâ€, dispõe o artigo 153.º do Código da Estrada, na redacção aprovada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro:
1. O exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.
2. Se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, a autoridade ou agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito, ou, se tal não for possível, verbalmente, daquele resultado, das sanções legais dele decorrentes, de que pode, de imediato, requerer a realização da contraprova e de que deve suportar todas as despesas originadas por esta contraprova no caso de resultado positivo.
3. A contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando:
a) Novo exame, a efectuar através de aparelho aprovado;
b) Análise de sangue
4. No caso de opção pelo novo exame previsto na alínea a) do número anterior, o examinando deve ser, de imediato, a ele sujeito e, se necessário, conduzido a local onde o referido exame possa ser efectuado.
5. Se o examinando preferir a realização de uma análise de sangue, deve ser conduzido, o mais rapidamente possível, a estabelecimento oficial de saúde, a fim de ser colhida a quantidade de sangue necessária para o efeito.
6. O resultado da contraprova prevalece sempre sobre o resultado do exame inicial.
(…)
Nos Acórdãos n.ºs 488/2009 e 24/2010, bem como na Decisão Sumária n.º 394/2010, o Tribunal julgou inconstitucional, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, inscrita na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, a norma decorrente do n.º 6 do artigo 153.º atrás transcrito, na parte em que a contraprova respeita a crime de condução de veículo em estado de embriaguez e seja consubstanciada em exame de pesquisa de álcool no ar expirado.
Havendo, quanto a este segmento normativo (identificado pelo requerente no seu pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral) três juízos de inconstitucionalidade proferidos no âmbito de processos de fiscalização concreta, mostram-se reunidos os pressupostos para que, conforme dispõe o artigo 82.º da LTC, possa o Tribunal apreciar a questão de constitucionalidade nos termos do processo de fiscalização abstracta sucessiva.
5. O artigo 153.º do Código da Estrada estabelece o regime legal de fiscalização da condução sob influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas. De harmonia com o disposto nos dois primeiros números deste artigo, a quantificação da taxa de álcool no sangue do condutor começa por ser realizada através de exame no ar expirado, efectuado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito; se o exame for positivo, o examinando pode, de imediato, requerer a realização da contraprova, que será efectuada por um dos meios, por si escolhido, definidos no n.º 3 do mesmo artigo. Finalmente, e como determina o n.º 6, “o resultado da contraprova prevalece sempre sobre o resultado do exame inicialâ€.
Está em causa (no segmento normativo atrás assinalado) a inconstitucionalidade orgânica do n.º 6 do artigo 153.º, na medida em que nele se estabelece uma regra imperativa sobre valoração de prova, regra essa que, constando do regime de fiscalização da condução sob influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas, terá não apenas implicações no domínio contra-ordenacional (artigos 145.º e 146.º do Código da Estrada) mas ainda nos domínios penal e processual penal (artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal), domínios estes reservados à competência legislativa da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo [artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da CRP].
6. No Acórdão n.º 488/2009 foi a questão apreciada nos seguintes termos:
5.2 – Pois bem, a primeira questão que se coloca é a da constitucionalidade orgânica da norma que está em causa, enquanto dispondo sobre o valor das provas atendíveis em julgamento por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal.
A decisão recorrida não equacionou esta questão. Tal não impede, porém, que o Tribunal Constitucional a enfrente e a resolva, dado estar apenas vinculado ao pedido e não, já, aos fundamentos invocados, podendo fazê-lo com base na violação de normas ou princípios constitucionais diversos dos alegados (art.º 79.º-C da LTC).
É claro que a norma, nos termos em que se acha enunciada, tanto funciona ou projecta os seus efeitos nas situações em que a condução sob a influência de álcool se queda pela prática de uma contra-ordenação grave [artigo 145.º, n.º 1, alínea l)] ou muito grave [artigo 146.º, alínea j), ambos do Código da Estrada], como quando ela é susceptível de preencher o tipo penal recortado no artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal.
Mas tendo a virtualidade de alcançar efeitos a nível penal e sendo este domínio de vigência que está aqui em causa, é quanto a ele que há que resolver a questão.
E colocando-nos neste plano, haverá, todavia, que destrinçar as situações em que a contraprova foi efectuada através de análise de sangue ou através de aparelho de pesquisa quantitativa aprovado para o efeito.
Na verdade, quanto àquele tipo de contraprova não poderá desconhecer-se o disposto, hoje, no referido n.º 5 do artigo 6.º do mencionado Regulamento e a circunstância de o mesmo haver sido emitido através de Lei da Assembleia da República.
Deste modo, a questão da inconstitucionalidade orgânica de tal preceito do n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada apenas se coloca relativamente aos resultados das contraprovas obtidos através de analisadores quantitativos aprovados para o efeito e no domínio do processo penal, como é o caso.
Ora, quer se atribua às normas que dispõem sobre as provas atendíveis em processo criminal e o seu respectivo valor natureza material, quer se lhes reconheça natureza adjectiva, certo é que as disposições que prevêem os tipos de prova admissíveis e o seu valor são normas de processo criminal, dado cumprirem a função instrumental de darem a conhecer “os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis†(cf. artigo 124.º do Código de Processo Penal – C. P. Penal) cuja determinação é prosseguida pelo processo criminal.
Enquanto norma que dispõe sobre o valor da análise da contraprova por confronto com o valor do exame inicial (não importando, aqui, saber se com o valor de prova taxada ou prova legal, como parece ter entendido a decisão recorrida, ou se com valor de prova sujeita a apreciação judicial segundo as regras de experiência e livre convicção do julgador), ela é uma norma processual compreendida no âmbito material do princípio afirmado no artigo 127.º do C. P. Penal.
Assim sendo, o preceito, na medida em que projecta efeitos a nível da valoração da prova em processo criminal, e quando referido a contraprova efectuada mediante analisador quantitativo, apenas poderia ser editado por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei do Governo, emitido a coberto de autorização legislativa, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Assembleia da República.
Anote-se, porém, que, quando referida a contraprova efectuada com recurso a análise ao sangue, há-de entender-se que a mesma foi substituída pelo referido n.º 5 do artigo 6.º do referido Regulamento, deixando-se de colocar a questão da competência para a edição do respectivo critério normativo.
5.3 – O artigo 1.º da Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, concedeu autorização ao Governo para “proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs 2/98, de 3 de Janeiro, e 265-A/2001, de 28 de Setembro, e pela Lei n.º 20/2002, de 21 de Agosto, e ainda a criar um regime especial de processo para as contra-ordenações emergentes de infracções ao Código da Estrada, seus regulamentos e legislação complementarâ€.
E, definindo o sentido da autorização, o artigo 2.º da mesma Lei dispõe que a autorização visa “permitir a criação de um regime jurídico em matéria rodoviária em conformidade com os objectivos definidos no Plano Nacional de Prevenção Rodoviária, com as normas constantes de instrumentos internacionais a que Portugal se encontra vinculado e com as recomendações das organizações internacionais especializadas com vista a proporcionar índices elevados de segurança rodoviária para os utentesâ€.
Ora, conquanto possa entender-se que o regime em causa constante do n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada cabe no objecto e no sentido da lei de autorização, certo é que, analisado o artigo 3.º da mesma Lei e tendo em conta que “a extensão da autorização especifica quais os aspectos da disciplina jurídica da matéria em causa sobre que vão incidir as alterações a introduzir por força do exercício dos poderes delegados†(cf., entre outros, o Acórdão n.º 358/92, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), não se vê que o mesmo caiba em qualquer dos que, aí, são enunciados.
Assim sendo, a norma em causa padece de inconstitucionalidade orgânica.
Aqui chegados, torna-se desnecessário apurar se a mesma afronta os princípios constitucionais invocados pela decisão recorrida ou pelo Ministério Público.
O Tribunal concluiu, portanto, que o Governo, ao dispor inovadoramente, e sem a devida autorização, no n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada, sobre o modo de valoração da prova em matéria de fiscalização da condução sob o efeito do álcool ou de substâncias psicotrópicas, invadiu a reserva de competência legislativa da Assembleia da República.
Com efeito, estando em causa matéria com implicação penal ou processual penal, mostrava-se necessária a autorização legislativa. Tal autorização não consta no entanto da Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, que “autoriza o Governo a proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Márioâ€. A lei habilitante é na verdade omissa no que respeita à matéria em causa – apesar das múltiplas alíneas, de a) a z) e de aa) a ee), que compõem o seu artigo 3.º, o qual define a extensão da autorização conferida ao Governo.
Acrescente-se, ainda, que se não operou neste caso uma posterior novação do preceito. Na verdade, se a Lei n.º 53/2004, enquanto lei de autorização legislativa, nada dispôs sobre matéria de fiscalização da condução sob o efeito do álcool ou de substâncias psicotrópicas – não podendo por isso o Governo editar, sob a forma de decreto-lei, normas relativas a tal matéria –, também o acima referido Regulamento, aprovado por lei da Assembleia da República, apesar de estabelecer, no seu artigo 3.º que “os métodos e equipamentos previstos na presente lei (…) para a realização dos exames de avaliação do estado de influenciado pelo álcool, são aplicáveis à contraprova a que se refere o n.º 3 do artigo 156.º do Código da Estradaâ€, nada estatui sobre a específica questão que aqui está em causa, e que é a do valor probatório dessa contraprova.
Há por isso que concluir, como o fizeram os Acórdãos n.ºs 488/2009, 24/2010, e ainda a Decisão Sumária n.º 394/2010, que a norma inscrita no n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que a contraprova respeita a crime de condução de veículo em estado de embriaguez e seja consubstanciada em exame de pesquisa de álcool no ar expirado, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 153.º, n.º 6, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que a contraprova respeita a crime de condução em estado de embriaguez e seja consubstanciada em exame de pesquisa de álcool no ar expirado, por violação do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
Lisboa, 19 de Outubro de 2011. - Maria Lúcia Amaral – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – Carlos Pamplona de Oliveira – Catarina Sarmento e Castro – Ana Maria Guerra Martins – José Borges Soeiro – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão – Maria João Antunes (vencida, quanto ao conhecimento e quanto ao fundo, nos termos da declaração que se anexa) – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencida no que diz respeito ao conhecimento do objecto do recurso, por entender que não estavam reunidos os pressupostos do artigo 82.º da Lei do Tribunal Constitucional (Processo aplicável à repetição do julgado). Na Decisão Sumária n.º 394/2010, tida como uma das decisões em que foi feito o juízo de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 153.º, n.º 6, do Código da Estrada, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que a contraprova respeita a crime de condução em estado de embriaguez e seja consubstanciada em exame de pesquisa de álcool no ar expirado, o julgamento é mais amplo, uma vez que é julgada “inconstitucional a norma extraída do artigo 153.º, n.º 6, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiroâ€. Sendo certo que, logo no Acórdão n. º 488/2009, foi esclarecido que “a questão de inconstitucionalidade orgânica de tal preceito do n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada apenas se coloca relativamente aos resultados das contraprovas obtidas através de analisadores quantitativosâ€. E já não em relação aos resultados das contraprovas efectuadas através de análise de sangue, por em relação a estas não se poder desconhecer “o disposto, hoje, no referido n.º 5 do artigo 6.º do mencionado Regulamento [Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas] e a circunstância de o mesmo haver sido emitido através de Lei da Assembleia da Repúblicaâ€.
2. Entendo também que o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, estatui sobre o valor probatório da contraprova, quando no capítulo sobre a “avaliação do estado de influenciado pelo álcool†nada diz quanto à prevalência da prova ou da contraprova consubstanciada em exame de pesquisa de álcool no ar expirado. O silêncio da lei tem o sentido de afirmar a regra geral constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal – “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competenteâ€. O que coloca a questão da revogação da “norma constante do artigo 153.º, n.º 6, do Código da Estrada, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que a contraprova respeita a crime de condução em estado de embriaguez e seja consubstanciada em exame de pesquisa de álcool no ar expiradoâ€, apreciada num processo que segue os termos do processo de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade.- Maria João Antunes.