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Processo n.º 678/11
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, os aqui reclamantes, A. e B., vieram interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, do acórdão de 24 de Maio de 2011, proferido pelo referido Supremo Tribunal.
2. No requerimento de interposição de recurso, referem que o mesmo se funda no disposto nas alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
Delimitam o respectivo objecto, nos seguintes termos:
“As normas cuja inconstitucionalidade se pretende suscitar, atendendo à forma como as mesmas foram nesta Alta Corte interpretadas e aplicadas, são os arts. 1038º, f) e g) do Cód. Civil, o art. 64º, n.º 1, f) do RAU; os arts. 798º e 799º do Cód. Civil; e o art. 334º do Cód. Civil”.
3. Tal recurso não foi admitido, por ter sido considerado manifestamente infundado, nos termos do n.º 2 do artigo 76.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
Pode ler-se na decisão aludida:
“No ponto XIV do mesmo acórdão discorreu-se detalhadamente – em termos que aqui se dão por reproduzidos – sobre a questão da constitucionalidade que se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. Penso ter-se feito em termos de evidência, de sorte que considero ser o recurso manifestamente infundado, nos termos da parte final do n.º 2 do artigo 76.º da referida lei.”
É desta decisão, datada de 16 de Junho de 2011, que os recorrentes presentemente reclamam.
4. Para fundamentar a reclamação apresentada, referem que da análise do despacho reclamado “resulta que o recurso não foi admitido porque a tese que nele previsivelmente os Reclamantes irão defender está em contradição com o aludido no douto acórdão.” Porém, tal circunstância não torna o recurso manifestamente infundado, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 76.º da LTC.
De facto – esclarecem os reclamantes – o argumento da manifesta falta de fundamento não é aplicável aos recursos que também se fundamentam na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, como acontece com o presente.
Por esse motivo, “não havendo nenhuma razão processual para a inadmissibilidade do recurso, não poderia ter sido invocado o argumento de mérito da falta de fundamento manifesta para a sua não admissão”, o que é suficiente, na opinião dos reclamantes, para que a presente reclamação seja atendida.
Analisando os argumentos presentes no acórdão recorrido, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, referem ainda os reclamantes que as razões da invocação dos artigos 61.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), em apoio da sua tese, são perfeitamente justificáveis, a propósito da obrigação do inquilino comercial de informar o senhorio da cessão de exploração ou outro negócio sobre o estabelecimento que funciona no imóvel arrendado.
Aliás – acrescentam – tais normas são invocadas no acórdão n.º 289/99 do Tribunal Constitucional, em matéria idêntica à da questão levantada nestes autos, o que, desde logo, afasta a possibilidade de se rejeitar, liminarmente, o presente recurso, com base na suposta irrelevância da sua invocação.
Referem ainda, por outro lado, que o tribunal a quo apenas indica um outro fundamento para “rejeitar a posição de inconstitucionalidade que, no âmbito da revista, foi seguida” pelos reclamantes, ou seja, a circunstância de do referido acórdão n.º 289/99 não decorrer a inconstitucionalidade da obrigação de comunicação ao senhorio da cessão de exploração do estabelecimento.
Porém – alegam os reclamantes – a questão colocada é mais ampla, incidindo sobre a sanção ligada à falta da referida comunicação, o que justifica a invocação dos princípios da isonomia e da proporcionalidade, sobre os quais a decisão recorrida não se pronunciou.
Acrescentam ainda que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não abordou todas as questões de constitucionalidade suscitadas na revista, pelo que se desconhece, relativamente às que não mereceram qualquer abordagem, a razão de terem sido consideradas manifestamente infundadas.
Nestes termos, concluem os reclamantes pela admissibilidade do recurso interposto.
5. O Ministério Público, no Tribunal Constitucional, não concordando com o despacho reclamado, defendeu, porém, a inadmissibilidade do recurso, por falta de verificação dos respectivos pressupostos processuais.
Relativamente à circunstância de os reclamantes terem invocado, como fundamento do recurso, a alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, alega o Ministério Público que, no requerimento de interposição respectivo, falta a referência à decisão do Tribunal Constitucional que, com anterioridade, julgou inconstitucional a norma aplicada pela decisão recorrida. Porém, resulta das alegações de revista e do acórdão recorrido que essa decisão corresponde ao acórdão n.º 289/99. Tal aresto, contudo, proferiu um juízo de não inconstitucionalidade, não se integrando, assim, na previsão normativa da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Pelo exposto, ainda que com fundamento diferente, pugna pelo indeferimento da reclamação, quanto ao recurso interposto ao abrigo daquela alínea g).
Mais refere o Ministério Público que, no requerimento de interposição de recurso, não é identificada a exacta interpretação, cuja sindicância de constitucionalidade é pretendida, antes se remetendo para a forma como as normas foram “interpretadas e aplicadas”, o que não satisfaz os requisitos formais previstos no artigo 75.º-A, da LTC.
Porém, nas alegações na revista, a única questão de constitucionalidade normativa suscitada era apresentada como extraível da conjugação dos artigos 64.º, n.º 1, alínea f), do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), e 1038.º, alíneas f) e g), do Código Civil. Ora, tal bloco de preceitos não coincide com aquele que os reclamantes erigem como suporte do objecto do recurso de constitucionalidade, o que gera a inadmissibilidade do mesmo.
Acresce que o acórdão recorrido expressamente afasta a aplicabilidade do RAU, no presente caso, pelo que nunca se poderia conhecer, em recurso de constitucionalidade, do bloco normativo que inclui preceito do referido diploma legal.
O Ministério Público alega ainda que não existe uma coincidência absoluta entre a dimensão normativa problematizada pelos reclamantes, nas alegações de revista – reportada a “comunicação dos locatários ao locador da celebração de um negócio de exploração do estabelecimento comercial (…) com uma sociedade comercial constituída entre os locatários” – e a dimensão convocada pelo acórdão recorrido – referente a cessão de exploração e “transmissão do gozo do locado” – pelo que o recurso não seria admissível igualmente por tal motivo.
Por último, refere o Ministério Público que, caso se entenda que não se verificam os indicados obstáculos processuais à admissibilidade do recurso, este não deverá ser considerado manifestamente infundado, como refere o despacho reclamado, salientando que tal conclusão é, aliás, contraditória, com a afirmação – constante do mesmo despacho – de que a questão de constitucionalidade foi detalhadamente abordada.
Na verdade – acrescenta – como refere o acórdão n.º 501/94, “se o julgador, no âmbito da reclamação, tiver de desenvolver uma actividade cognitiva e argumentativa semelhante à que utilizaria em sede de recurso para poder concluir pela inatendibilidade dos respectivos fundamentos, tal indicará que não estamos perante um “recurso manifestamente infundado.”
6. Em cumprimento do princípio do contraditório, foram os reclamantes notificados para se pronunciarem relativamente às questões novas, susceptíveis de obstar à admissibilidade do recurso, nomeadamente a eventual falta de coincidência entre a questão de constitucionalidade suscitada previamente perante o tribunal a quo, a questão definida como objecto do recurso e o critério normativo adoptado como ratio decidendi pela decisão recorrida.
Os reclamantes utilizaram a faculdade que lhes foi concedida, apresentando nova peça processual, com as seguintes conclusões:
“ (…) Face ao exposto, reitera-se o pedido de admissão e julgamento do recurso:
a. Por serem coincidentes as questões constitucionais levantadas ao longo do processo, nomeadamente na fase de revista, e as trazidas ao conhecimento de V. Exas. neste recurso.
i. No caso dos arts. 798° e 799° do Cód. Civil, admite-se que essa coincidência não é clara, embora a aplicação feita pelo douto acórdão recorrido destes artigos ponha realmente em causa preceitos constitucionais, pelo que V. Exa. melhor decidirá sobre a sorte do recurso nesta parte.
b. Por serem coincidentes os critérios normativos usados na douta decisão recorrida e no presente recurso, o que respeita o quadro conceitual para a sua admissibilidade, independentemente de a norma – que é a mesma - estar circunstancialmente vertida no art. 1093° do Cód. Civil, ou no art. 64º do RAU, até porque isso não invalida o preenchimento do pressuposto legal quanto ao art. 1038º do Cód. Civil.
i. Os Reclamantes declaram que a norma violada inclui também o art. 1093º, n.º 1, f) do Cód. Civil, para o caso de V. Exa. entender ser tal necessário, o que fazem ao abrigo do art. 75°-A, n.ºs 5 e 6 da LTC.
c. Por estarem suficientemente indicadas as normas violadas, e estar suprida nesta peça, se se entender que havia falta disso, a indicação da interpretação dessas normas que é inconstitucional.
d. Por haver plena identidade das questões de facto consideradas no recurso e na douta decisão recorrida, sendo a divergência sobre a consequência jurídica dos factos, e não sobre estes.
e. Por terem sido indicadas decisões anteriores deste tribunal que julgaram inconstitucional a norma aplicada na decisão aqui recorrida, embora examinando o problema sobre um enfoque diverso, o que foi determinado pela diferente situação processual que originou tais decisões (ali era o locador o recorrente).”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
7. No requerimento de interposição de recurso, os reclamantes não identificam a norma ou interpretação normativa, cuja constitucionalidade pretendem ver apreciada, limitando-se a mencionar os preceitos de que se extrairá tal norma ou interpretação normativa.
A omissão de designação de tais elementos constitui um incumprimento do disposto no artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC.
É certo que, na última peça processual apresentada, os reclamantes tentam suprir tal vício, explicitando as interpretações, cuja inconstitucionalidade invocam, referindo o disposto no n.º 5 do artigo 75.º-A, da LTC. Tal explicitação, porém, não tem qualquer efeito útil, atenta a não verificação de pressupostos de admissibilidade do recurso insupríveis, que sempre determinaria a impossibilidade de conhecimento de mérito, como melhor exporemos infra.
Na verdade, o convite ao aperfeiçoamento, previsto no artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6, da LTC, só tem sentido útil quando faltam apenas meros requisitos formais do requerimento de interposição do recurso – a que se alude nos n.ºs 1 a 4 do mesmo preceito – carecendo, ao invés, de utilidade quando faltam os pressupostos de admissibilidade do recurso – enunciados especificamente no artigo 70.º e no n.º 2 do artigo 72.º da LTC – que não podem ser supridos deste modo. Nesta última hipótese, em vez de proferir um convite ao aperfeiçoamento – que determinaria a produção de processado inútil, em prejuízo dos princípios de economia e celeridade processuais – deve o relator proferir logo decisão sumária, no sentido do não conhecimento do recurso (cfr., neste sentido, acórdãos deste Tribunal Constitucional n.os 99/00, 397/00, 264/06, 33/09 e 116/09, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt).
8. No requerimento de interposição de recurso, os reclamantes referem que o mesmo se funda nas alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
A referida alínea g) reporta-se a decisões dos tribunais “que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional”.
Nos termos do n.º 3 do artigo 75.º-A da LTC, “no caso dos recursos previstos nas alíneas g) (…) do artigo 70.º, no requerimento deve identificar-se também a decisão do Tribunal Constitucional ou da Comissão Constitucional que, com anterioridade, julgou inconstitucional ou ilegal a norma aplicada pela decisão recorrida.”
Assim sendo, deveriam os reclamantes ter identificado, de forma expressa e inequívoca, a decisão que fundamenta o accionamento do recurso previsto na aludida alínea.
Contudo, como refere o Ministério Público – e confirmam os próprios reclamantes, na última peça processual que juntaram – o acórdão a que pretendiam reportar-se era aquele a que foi atribuído o n.º 285/99 e ainda – acrescentam os reclamantes, remetendo para a referência feita no artigo 114 das alegações de revista e nota 8 desse mesmo parágrafo – o acórdão n.º 77/2001.
Nenhum dos referidos acórdãos, porém, se subsume à previsão normativa da alínea g) do n.º 1 do referido artigo 70.º da LTC, porquanto em nenhum deles é julgada inconstitucional ou ilegal qualquer norma. Na verdade, ambos os arestos concluem por um juízo de não inconstitucionalidade, pelo que o recurso, ao abrigo da aludida alínea g), não é admissível.
Resta, assim, apreciar os pressupostos de admissibilidade do recurso, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
9. O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência dum objecto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Comecemos, assim, por verificar se tais requisitos se encontram preenchidos in casu, já que tal verificação é necessariamente prévia à apreciação do mérito da pretensão, nomeadamente à eventual conclusão pelo seu carácter “manifestamente infundado”, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 76.º da LTC.
Os reclamantes identificam, como decisão recorrida, o “acórdão que negou a revista”, datado de 24 de Maio de 2011.
Interessa, pois, averiguar que questões de constitucionalidade normativa foram suscitadas, pelos reclamantes, nas alegações de recurso de revista, já que sobre os mesmos impendia o ónus de suscitação prévia, perante o tribunal a quo, das questões que pretendessem ver apreciadas em ulterior recurso de constitucionalidade.
Na referida peça processual, referem os reclamantes que:
“Constitui, assim, objecto da questão de constitucionalidade aqui invocada, a norma extraída da conjugação dos artigos 64.º, n.º 1, alínea f), do RAU e 1038.º, f) e g), do Cód. Civil, interpretados no sentido de que constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento a falta de comunicação dos locatários ao locador da celebração de um negócio de exploração do estabelecimento comercial sito no prédio arrendado com uma sociedade comercial constituída entre os locatários”
A propósito do artigo 334.º do Código Civil, referem:
“A interpretação da norma do Art. 334º do Cód. Civil no sentido de que permite, no caso concreto deste processo, o exercício do alegado direito de resolução do contrato por parte do senhorio, viola o princípio constitucional da proporcionalidade”
Quanto aos artigos 798.º e 799.º do Código Civil, os reclamantes não fazem qualquer referência reportada a questões de constitucionalidade, como, aliás, reconhecem, na última peça processual que apresentaram, em 24 de Outubro de 2011.
Ora, o cumprimento do pressuposto de admissibilidade do recurso, agora em apreciação, pressupõe que a questão da constitucionalidade seja levantada, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, directa e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria. Exige-se, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objecto de recurso e uma fundamentação, minimamente concludente, com indicação precisa do preceito ou bloco normativo cuja legitimidade constitucional se pretende questionar ou interpretação ou dimensão normativa de tal preceito ou bloco que se reputa violador da Constituição.
Face à asserção precedente, resulta claro que, relativamente a qualquer questão de constitucionalidade atinente aos artigos 798.º e 799.º do Código Civil, a admissibilidade do recurso estaria, desde logo, prejudicada por falta de cumprimento do ónus de suscitação prévia, perante o tribunal a quo.
Idênticas considerações são aplicáveis relativamente ao artigo 334.º do Código Civil.
De facto, os recorrentes não enunciam uma verdadeira questão normativa de constitucionalidade a propósito do referido preceito, limitando-se a invocar a inconstitucionalidade do juízo subsuntivo que, atendendo às concretas circunstâncias do caso, concluiu pela não aplicação do artigo 334.º do Código Civil.
Não compreendendo o nosso ordenamento jurídico a figura do recurso constitucional de amparo ou queixa constitucional, a admissibilidade do recurso de constitucionalidade depende da suscitação de uma verdadeira questão normativa – autonomizada da decisão, enquanto critério abstracto e potencialmente aplicável a uma generalidade de situações -requisito não preenchido, relativamente ao preceito em análise.
Resta apreciar se a questão suscitada, a propósito dos artigos 64.º, n.º 1, alínea f), do RAU e 1038.º, f) e g), do Cód. Civil, corresponde a um critério normativo que tenha sido, efectivamente, utilizado, como ratio decidendi, pela decisão recorrida.
Em primeiro lugar, salienta-se que o acórdão de 24 de Maio de 2011 expressamente refere a inaplicabilidade do RAU - por ter entrado em vigor posteriormente à ocorrência do facto que serve de fundamento resolutivo do contrato de arrendamento em análise – pelo que, em rigor, o artigo 64.º, n.º 1, alínea f), do referido diploma não foi convocado pela argumentação conducente à solução dada ao caso concreto, pela decisão recorrida.
Porém, ainda que considerássemos que tal alusão ao preceito do RAU seria substituível pela referência à norma homóloga do artigo 1093.º, n.º 1, alínea f) do Código Civil, não poderíamos concluir pela identidade entre a questão suscitada previamente perante o tribunal a quo – que poderia ser enunciada como objecto de ulterior recurso de constitucionalidade – e a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Na verdade, refere-se, no aresto posto em crise, que ficou assente que os réus cederam o gozo do arrendado a uma sociedade. Não tendo sido possível apurar exactamente a que título a sociedade passou a exercer os actos, antes praticados pelos réus, no imóvel locado, concluiu o acórdão que, independentemente de tal questão, se impunha a respectiva comunicação ao senhorio, nos termos da alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil, “sob pena de – se outro vício não houver – de ineficácia. (…) Ineficácia com que se basta o texto da mencionada alínea g).”
Assim, refere o acórdão que tem de se considerar “independentemente de qual seja a subsunção jurídica relativa a tal cedência e da discussão sobre o ónus de prova da comunicação, que aquela, se não foi ilícita, foi, no mínimo ineficaz relativamente ao senhorio.
Ou seja, está preenchido o fundamento resolutivo invocado.”
A decisão recorrida centra, desta forma, o fundamento jurídico da solução dada ao caso, não na natureza de um qualquer negócio incidente sobre o estabelecimento comercial eventualmente celebrado entre os réus – aqui recorrentes – e a sociedade, mas na falta de comunicação da cedência do gozo do arrendado, “independentemente de qual seja a subsunção jurídica relativa a tal cedência”, que a torna ineficaz em relação ao senhorio, constituindo fundamento resolutivo do contrato de arrendamento.
A questão de constitucionalidade que os recorrentes suscitaram, previamente, perante o tribunal a quo, afasta-se do critério normativo explicitado supra e efectivamente convocado pela decisão recorrida como fundamento decisório, enfatizando o aspecto do negócio de exploração do estabelecimento comercial, ao invés da cedência do gozo do locado, assim conformando a questão à tese dos recorrentes e não da decisão recorrida, sendo tal conformação ainda mais expressiva no excerto em que os recorrentes, sob uma capa de enunciação aparentemente abstracta e genérica, incluem a alusão à específica circunstância casuística de o negócio ter sido celebrado “com uma sociedade comercial constituída entre os locatários”.
Ora, quando os recorrentes incluem, na enunciação da questão de constitucionalidade, especificações casuísticas, mais não fazem do que tentar introduzir a sua versão/interpretação dos factos concretos, na formulação da aparência de norma que construíram e que não corresponde – nessa parte – a qualquer dimensão normativa extraída de um preceito ou conjunto de preceitos legais, e forçosamente ainda reconhecível na literalidade dos mesmos.
A este propósito, convém salientar que o critério de distinção entre a sindicância de decisões e a fiscalização de normas não se prende com o modo como o recorrente formula a questão de constitucionalidade, pressupondo antes a apreensão da verdadeira natureza da pretensão apresentada, de forma a afastar, do âmbito dos recursos de constitucionalidade, as tentativas de forjar normas ou interpretações, que, com maior ou menor habilidade, dissimulam a intencionada sindicância de juízos subsuntivos.
Nestes termos, não tendo os recorrentes, previamente perante o tribunal a quo, logrado autonomizar, de forma certeira, o critério normativo – nem, em rigor, como já vimos, o arco de preceitos em que o mesmo assentaria – que veio a ser utilizado pelo acórdão recorrido como ratio decidendi, não conseguindo sequer depurar o enunciado da questão colocada de elementos casuísticos, que desvirtuam a sua aparente natureza normativa, ficou definitivamente prejudicada a possibilidade de interposição de ulterior recurso de constitucionalidade, visto que a sua admissibilidade estaria dependente da coincidência entre a questão de constitucionalidade suscitada previamente e a ratio decidendi da decisão recorrida, por um lado, - requisito irremediavelmente incumprido – e, por outro, coincidência com a questão identificada como objecto do recurso.
Pelo exposto, falhando pressupostos de admissibilidade do recurso, o mesmo não pode ser admitido, ficando, assim, prejudicada qualquer apreciação sobre outro motivo de indeferimento, maxime que implique juízo liminar sobre a viabilidade substancial da pretensão deduzida.
Desta forma, embora com fundamento diferente do aduzido na decisão reclamada, conclui-se pela inadmissibilidade do recurso e consequente improcedência da presente reclamação.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
- julgar inadmissível o recurso de constitucionalidade interposto e, em consequência, julgar improcedente a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 21 de Dezembro de 2011.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.