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Processo n.º 372/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório1. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo Sul interpôs recurso obrigatório, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da Lei do Tribunal Constitucional, da decisão naquele proferida “pois que o acórdão proferido nos autos desaplicou o normativo inserto no artigo 8.º do RGIT, por alegada violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.”
2. A 13 de Maio de 2011 foi proferida decisão sumária a remeter para Acórdão da 1.ª Secção deste Tribunal, onde foi decidido dar provimento ao recurso.
3. Inconformado, A., ora recorrido, veio dela reclamar, dizendo o seguinte:
“1. O ora Reclamante não se pode conformar com a decisão sumária proferida nos presentes autos pelo Ilustre Conselheiro Relator. E entende que a questão de constitucionalidade já apreciada, entre outros, no douto Acórdão Fundamento, proferido pela 1. Secção, com o n.º 35/2011, em 25 de Janeiro de 2011, merece reponderação e reapreciação, em conferência ou mesmo em pleno, por esse Alto Tribunal. Já que, por um lado,
I - Da intransmissibilidade das penas.
A questão da transferência da responsabilidade das pessoas colectivas pelo pagamento de coimas para a esfera dos administradores e gerentes tem sido muito debatida na doutrina e pela nossa recente jurisprudência - o que se discute é, pois, a constitucionalidade do artigo 8. do RGIT. Ora,
Dispõe o artigo 8.º do RGIT, sob a epígrafe ‘Responsabilidade Civil pelas Multas e Coimas’ que se transcreve parcialmente: ‘Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que de facto, funções de administração (...) são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente pelo pagamento.
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhe seja imputável a falta de pagamento.’
O artigo 30.º, n.º 3 da CRP, sistematicamente inserido no Título II da Constituição, onde estão consagrados os direitos, liberdades e garantias, estatui que: ‘A responsabilidade penal é insusceptível de transmissão.’
Por último, prevê o artigo 32.º, nos seus n.ºs 2 e 10.º, respectivamente, igualmente inserido no Título II da Constituição, que: ‘Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.’
E que; (...) ‘Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa.’
Tendo presente a regra de que na ‘fixação do sentido da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados’ (cfr. artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil), uma conclusão se pode, desde já, extrair: o artigo 8. do RGIT transfere efectivamente a responsabilidade pelo pagamento de multa ou de coima de uma pessoa colectiva para uma pessoa singular neste caso de uma sociedade por quotas para o seu gerente.
Com efeito,
Ou existe uma transferência de responsabilidade contra-ordenacional, que se traduz no pagamento de uma coima, caso em que se encontra plenamente justificada a quantia que é revertida, por essa via e com esse fundamento, para o responsável subsidiário. E então importa dilucidar a questão da efectiva violação pelo artigo 8.º n.º 1 do RGIT do princípio constitucional da intransmissibilidade das penas.
Ou então não estamos perante uma transmissão de responsabilidade contraordenacional, mas sim perante uma autónoma responsabilidade civil dos gerentes e administradores, caso em a administração fiscal, para além de não poder servir-se do mecanismo da reversão para efectivação dessa responsabilidade civil, tem igualmente de alegar e demonstrar os danos que resultam dessa acção imputável ao gerente ou administrador, liquidando a respectiva indemnização ressarcitória.
Certo é que, esse Alto Tribunal sustenta a tese da não inconstitucionalidade da norma do artigo 8. n.º 1 do RGIT nesta previsão autónoma responsabilidade civil dos gerentes e administradores, mas não resolve a contradição de termos que tal tese encerra, pois que:
a) Se se trata de efectivar uma responsabilidade civil autónoma do gerente ou administrador, a mesma é incompatível com o mecanismo da reversão no qual, por definição, são chamados terceiros a uma obrigação de outrem.
b) Se se trata de efectivar uma responsabilidade civil autónoma do gerente ou administrador, como se explica que não sejam apurados os pressupostos da responsabilidade civil e que o dano se liquide, sem qualquer fundamentação ou explicitação, de forma automática, exactamente no quantitativo de coima em que a sociedade devedora havia sido condenada.
Resulta, pois, evidente que, no caso dos autos, a Administração Fiscal se limitou a reverter para o gerente uma dívida da sociedade pelo pagamento de coimas em que foi condenada. Inelutavelmente, ocorre a transferência de uma responsabilidade, pelo que temos que apurar qual a natureza da coima.
Isto é, temos que procurar saber se a coima assume a natureza de uma pena, para só depois concluirmos se a transferência da responsabilidade pelo seu pagamento para a esfera do gerente, viola, ou não, os artigos 30.º e 32.º da CRP.
Para obtermos tal resposta temos que procurar saber qual a relação do Direito Contra-Ordenacional com o Direito Penal.
De acordo com os ensinamentos de MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, in Lições de Direito Penal, Parte Geral 1, Lei e Teoria do Crime no Código Penal de 1982, p. 107 e ss: ‘a denominação de contra-ordenações tem origem germânica, aliás recente; na evolução do conceito utilizaram-se sucessiva ou concomitantemente estoutros vocábulos: ilícito penal de polícia ou transgressões ou contravenções de polícia, ilícito penal administrativo ou infracções ou transgressões penais administrativas (...)
«As contra-ordenações» não seriam crimes e não pertenceriam ao âmbito do direito penal. Neste sentido o relatório do Decreto-Lei n.º 433/82 suscita a criação de um ramo de direito autónomo e distinto do direito penal, que corresponderá teoricamente a duas espécies de infracções puníveis; «elas tendem a extremar-se, quer pela natureza dos respectivos bens jurídicos, quer pela desigual ressonância ética» (cit. relatório do Decreto-Lei n. g 433/82). Contudo o relatório reconhece, depois de apontar aquela tendência, que a distinção terá «em última instância de ser juridicamente pragmática, por isso também necessariamente formal’
A verdade é que a coima não deixa de ser uma pena de natureza pecuniária que nasce da violação de um tipo objectivo inserido num regime legal, in casu, no RGIT.
A este propósito diz-nos ainda o citado autor que: ‘diz o art. 1 (n.º 1) que «constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comina uma coima».
Como facto tipicamente ilícito e culpável a definição coincide com a que se diz do Código Penal para os crimes, tendo apenas em atenção o citado n.º 1 do art. 1 a distinção está apenas na pena, que para as contra-ordenações consiste em uma coima.’
Ora o próprio RGIT, no artigo 2.º, n.º 1 prevê, nesta mesma linha que:
‘Constitui infracção tributária todo o facto típico, ilícito e culposo declarado punível por lei tributária anterior.’
Esta análise é suficiente para concluir que o direito contra-ordenacional, neste caso o direito contra-ordenacional fiscal, tem uma natureza comum ao direito penal, o que leva Roxin a qualificar este ‘o direito contra-ordenacional como um decalcamento deste [do direito penal]’.
Com efeito, é também neste sentido que vai a nossa jurisprudência, cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 265/01, de 19 de Junho, ao assinalar que ‘não só se aplicam ao ilícito contra-ordenacional, garantias constitucionalmente atribuídas ao direito penal (v.g. princípios da legalidade e da aplicação da lei penal mais favorável), como existe um evidente paralelismo entre o processo penal e o processo contra-ordenacional que é conformado por princípios básicos daquele, tendo em atenção aos interesses subjacentes’ (cfr. também Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12/03/2008, recurso n.º 1.053/07, e Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27/02/2008, recurso n.º 1.057/07).
Na realidade, tanto num como noutro, para que exista pena ou coima tem que existir imputação objectiva e imputação subjectiva.
E há imputação objectiva quando uma dada situação de facto preenche, em abstracto, a previsão e a estatuição de norma incriminadora ou punitiva - isto é preenche o tipo legal incriminador ou punitivo — e há imputação subjectiva quando o elemento objectivo do tipo for praticado pelo agente com culpa, na forma de dolo ou negligência (cfr. artigo 13.º do Código Penal, artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro e o artigo 8.º é aplicável por via do artigo 3.º alínea b) do RGIT às contra-ordenações fiscais).
Ora, se o que o artigo 8.º do RGIT faz é transmitir, por via do instituto da reversão fiscal uma ‘pena’ de natureza pecuniária de uma pessoa colectiva para o seu gerente; o que na realidade está a fazer é a transmitir uma pena, o que é constitucionalmente proibido pelo artigo 30.º, n.º 3 da CRP.
Esta transmissão da responsabilidade não só é inconstitucional por transmitir uma pena e violar o artigo 30.º, n.º 3 da CRP, como também é inconstitucional por admitir a transmissão da responsabilidade pelo pagamento de uma coima, sem se fazer prova de que se verificam, em concreto, os pressupostos gerais de imputação objectiva e subjectiva da responsabilidade penal e contraordenacional, violando também o artigo 32.º, n.º s 2 e 10 da CRP.
Isto é, sem se verificar e provar se estão ou não reunidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo incriminador ou punitivo, sem provar a existência de um ‘facto típico, ilícito e culposo’ imputável ao gerente revertido.
O que aliás contraria as próprias alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT, pois nos termos da alínea a) o gerente ou administrador subsidiariamente responsável se ‘tiver sido por culpa sua que o património’ se tornou insuficiente para o pagamento da coima, ou, nos termos da alínea b), se for ‘imputável’ ao gerente ou administrador ‘a falta de pagamento’ da coima.
Ora, é neste ponto que a transmissão da responsabilidade pelo pagamento da coima para a esfera do gerente viola o artigo 32., n.ºs 2 e 10 da CRP, porquanto não assegura qualquer direito de defesa do arguido antes da transmissão da responsabilidade pelo pagamento da coima.
Mais, enquanto a Constituição consagra o princípio basilar do Estado de Direito Democrático (artigo 2. da CRP) da presunção da inocência, o que a Administração Fiscal faz, auxiliada pela bengala da polémica decisão do Tribunal Constitucional, é transferir a responsabilidade pelo pagamento de uma coima com base numa clara presunção de culpa, o que viola o próprio artigo 2.º da Constituição.
Ora, estes pressupostos operantes da transmissão da responsabilidade subsidiária previstos pelas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT não foram cumpridos, nem provados, pela Administração Fiscal no caso sub judice.
Esta foi também uma questão completamente omissa pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 129/2009, proferido no processo 648/08, da 3. Secção, bem como pelo recente Acórdão Fundamento da decisão sumária em reclamação.
Por esta razão, a interpretação e aplicação do artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RGIT, viola o artigo 30.º, n.º 3 da CRP, e como tal não pode deixar de ser inconstitucional.
II — Do princípio da proporcionalidade.
Mais, tal interpretação é ainda inconstitucional por restringir, de forma desnecessária e excessiva, os direitos de defesa do arguido em processo contraordenacional, violando o princípio constitucional da proporcionalidade previsto nos artigos 2.º e 18.º, n.º 2 da CRP. O fim das coimas é o de reprimir e prevenir a repetição de comportamentos ilícitos e não o da pura angariação de receitas...
Acresce que, O entendimento de que o artigo 8.º n.º 1 do RGIT consagra uma responsabilidade civil autónoma, ainda que assacada por via do mecanismo de reversão, colide com o princípio da proporcionalidade constitucionalmente plasmado.
Pois que, Se se trata de responsabilidade civil do próprio gerente ou administrador, esta não pode deixar de ter como critérios para a fixação do quantum indemnizatório, todos os pressupostos legais dessa mesma responsabilidade.
A indemnização fixa, coincidente com o montante da coima em que a sociedade devedora foi condenada administrativamente, obsta a uma determinação da medida ressarcitória em função da gravidade do facto, da culpa do agente, da sua situação económica, do dano causado e do nexo de causalidade entre o facto e o dano.
A indemnização fixa, que mais não passa de uma coima revertida, não tem fundamentos e é desproporcionada.”
4. Em resposta o Ministério Público alegou que, por haver conflito jurisprudencial sobre a constitucionalidade da norma em causa, foi interposto recurso obrigatório para o Plenário do Tribunal Constitucional, recomendando que se aguarde pela decisão do mesmo.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação5. Estamos perante uma reclamação para a conferência de uma decisão sumária. Como esta se ancorava no Acórdão n.º 35/2011, da 1.ª Secção, que encontrou oposição nos Acórdãos 24/2011, 26/2011 e 85/2011 da 2.ª Secção e, ao contrário do que se sustentou na decisão sumária, não se estava perante jurisprudência reiterada deste Tribunal, seria de deferir tal reclamação.
No entanto, sucede que foi proferido Acórdão pelo Plenário, para uniformizar a jurisprudência, não tendo o Acórdão n.º 437/2011 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) julgado a citada norma, constante do artigo 8.º do RGIT, inconstitucional.
É esta a jurisprudência que cumpre agora aplicar.
III – Decisão6. Assim, acordam, em conferência, indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Sem custas.
Lisboa, 24 de Outubro de 2011.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.