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Processo n.º 211/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. e marido, B. intentaram, em 5 de Março de 1999, no Tribunal da comarca de Loulé, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, que correu termos no 3.º Juízo Cível, sob o n.º 67/1999, contra C. e seu filho, D. (menor à data da instauração dos autos e então representado por sua mãe), pedindo que se declarasse a nulidade do contrato de mandato em que foi mandante E., já falecido, respectivamente sogro e avô dos Réus, e da correspondente procuração por aquele emitida a favor da 1.ª Ré, bem como do contrato de doação de dois prédios a favor do 2.º Réu, celebrado com base nessa procuração, com os consequentes cancelamentos no registo predial. Mais pediram que fossem declarados válidos os testamentos outorgados pelo referido E., em que os referidos prédios eram deixados, a título de legados, aos Autores.
Os Réus apresentaram contestação, em que além de se oporem à pretensão formulada pelos Autores, deduziram pedido reconvencional de indemnização, a liquidar em execução de sentença, referente aos prejuízos resultantes de não poderem usufruir dos prédios em causa.
Após realização de audiência de julgamento foi proferida sentença em 8 de Junho de 2006 que julgou improcedente a acção e a reconvenção, absolvendo Autores e Réus dos respectivos pedidos.
Desta decisão foi interposto recurso pelos Autores para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão proferido em 20 de Setembro de 2007, decidiu ampliar a matéria de facto e anular parcialmente o julgamento efectuado.
Repetido o julgamento na 1.ª instância foi proferida nova sentença em 14 de Outubro de 2008 que repetiu a decisão anterior.
Interposto novo recurso pelos Autores para o Tribunal da Relação de Évora, foi proferido acórdão em 18 de Novembro de 2009 que julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.
De novo inconformados os Autores recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão proferido em 13 de Julho de 2010, negou a revista da decisão recorrida.
Os Autores arguíram a nulidade e requereram a rectificação e a reforma deste Acórdão, tendo apenas sido deferido o pedido de rectificação de lapso de escrita, por Acórdão proferido em 30 de Novembro de 2010.
Os Autores recorreram então para o Tribunal Constitucional dos Acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos seguintes termos:
“…2. Pretendem ver apreciada a (in)constitucionalidade:
- Da norma contida no art.º 2313.º do Código Civil, conjugada com as normas contidas nos art.ºs 2179.º, 2182.º, 2187.º. 2204.º 2205.º, interpretadas no sentido de –
“Existe ainda disposição revogatória tácita do testamento, se através de válida disposição de vontade pela via do contrato de mandato que pretende que não caduque com a sua morte e através de procuração irrevogável a ele associada onde confere ao mandatário e procurador poderes para dispor dos seus bens, o autor do testamento, estando em causa como está, a sucessão testamentária onde foi feita uma liberalidade, conceder poderes que autorizam o mandatário e procurador a dispor dos seus bens sem restrições, advenientes do prévio testamento, em favor de um herdeiro legitimário.”
Considera-se que a aludida norma na interpretação que foi feita, ou seja, que uma procuração irrevogável constitui válida disposição revogatória tácita do testamento, viola, normas imperativas (art.ºs 2179.º, 2182.º, 2187.º, 2204.º, 2205.º e 217.º/2 do CC) e os princípios de protecção do interesse público da confiança e segurança das pessoas e dos negócios jurídicos, e que gozam de garantia constitucional, o sentido ou dimensão normativa atribuída à norma contida no art.º 2313.º do CC, viola ainda o principio da separação de poderes e de independência impostos na Constituição (Cfr. art.ºs 111.º/1 e 112.º/5), por com essa interpretação se ter alterado o conteúdo da lei, exercendo o Juiz funções de legislador, o que constitui exclusivo do poder legislativo, bem como os princípios da função jurisdicional e da independência, consagrados nos art.ºs 202.º e 203.º da CRP, por não ter feito aplicação estrita da norma imperativa do art.º 2313.º, pelo que uma tal interpretação é desconforme com a Constituição.
3. Pretendem, também, ver apreciada a (in)constitucionalidade:
- Das normas contidas nos n.ºs 1 e 2 do citado art.º 732.º- A, do CPC, quando interpretadas no sentido:
a) De não imporem a audição prévia das partes, quando o Supremo se proponha tomar uma decisão que não integrando o thema decidendum, nem foi objecto de discussão jurídica da causa, colida com a sua própria jurisprudência; e/ou
b) De não imporem que o relator, qualquer dos adjuntos ou os presidentes das secções cíveis, sugiram que o julgamento do recurso se faça com a intervenção do plenário das secções cíveis quando o Supremo se proponha a tomar uma decisão colida com a sua própria jurisprudência; e/ou
c) De que o requerimento das partes a que se refere o n. 2 do art.º 732.º- A, apenas pode ser apresentado até à prolação do acórdão que julga a revista, e não, depois deste acórdão, ainda que se trate de uma decisão surpresa.
Considerando-se que qualquer uma dessas interpretações são inconstitucionais, por violação dos princípios da igualdade, da segurança jurídica e da protecção da confiança (art.ºs 2.º e 13.º da CRP, do contraditório e do direito ao recurso (art.º 20.º da CRP).
4. Pretendem, ainda, ver apreciada a (in)constitucionalidade:
- Das normas contidas nos art.ºs 660.º/2, 66l.º/l e 664.º do CPC, conjugadas com as normas dos art.ºs, 715.º/2,3, 722.º, 726.º, 729.º do CPC, quando interpretadas no sentido:
a) De admitir que as conclusões de recurso não limitem o seu objecto, podendo o Tribunal conhecer em objecto diverso do pedido e da causa de pedir.
b) De caber ao Tribunal de Revista conhecer da vontade real do testador de revogar um testamento, não tendo as partes discutido e/ou interpretado a vontade do testador essa questão.
c) De poder o julgador, sem prévia comunicação às partes do novo enquadramento jurídico, (revogação tácita do testamento) julgar a acção com fundamento diverso, equiparando a procuração/mandato ao testamento, sem que alguma das partes tenha abordado tal questão.
Considerando-se que qualquer uma dessas interpretações são inconstitucionais, o princípio da liberdade do juiz no tocante à indagação, interpretação e aplicação do direito - art. 664 CPC – deve ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa – art. 3/3 CPC, violando-se o direito a um processo justo e equitativo e ao exercício de um contraditório pleno, tanto na vertente do princípio de audição prévia como na vertente de violação de proibição da decisão surpresa, princípio consubstanciado nos art.ºs 13.º (princípio da igualdade), 20.º/l,4 (princípio de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e 202.º (princípio da defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos) da Constituição da República Portuguesa, os princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica, consideradas como elementos basilares, essenciais do Estado de Direito, que se traduz na previsibilidade, ou seja, na certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos das normas jurídicas, designadamente ao modo de funcionamento dos Tribunais, consagrados nos artigos 2.º, 207.º e 212.º da Constituição
O que está em causa não é a garantia de defesa, no sentido negativo de oposição perante pretensão da outra parte, mas o direito de influenciar a formação da decisão do órgão judicial que lhe diz directamente respeito e que também tem de considerar-se incluído na exigência constitucional do processo equitativo.
A peça processual em que suscitou as questões de constitucionalidade, foi a reclamação que apresentou nesse Supremo Tribunal.
O douto acórdão do recurso de revista, foi de todo inesperado e imprevisto, não sendo exigível que o Recorrente antevisse a possibilidade da interpretação e aplicação das normas referidas de modo a impor-lhe o ónus de alegar a inconstitucionalidade antes da respectiva decisão, ademais que o douto acórdão de 13.07.2010 colide com a jurisprudência do mesmo Tribunal, apontando tal jurisprudência, nomeadamente, no sentido de que a revogação de um testamento, mesmo a material ou real, é um acto pessoal do testador; não pode ser feita por pessoa a seu pedido ou ainda que com procuração para o efeito…”
Os Recorrentes apresentaram alegações com as seguintes conclusões:
1) As normas contidas nos n.ºs 1 e 2 do citado art.º 732.º- A, do CPC, são inconstitucionais por violação dos princípios da igualdade, da segurança jurídica e da protecção da confiança (art.ºs 2 e 13.º da CRP) do contraditório e do direito ao recurso (art.º 20.º da CRP) quando interpretadas no sentido:
a) De não imporem a audição prévia das partes, quando o Supremo se proponha tomar uma decisão que não integrando o thema decidendum, nem foi objecto de discussão jurídica da causa, colida com a sua própria jurisprudência; e/ou
b) De não imporem que o relator, qualquer dos adjuntos ou os presidentes das secções cíveis, sugiram que o julgamento do recurso se faça com a intervenção do plenário das secções cíveis quando o Supremo se proponha a tomar uma decisão colida com a sua própria jurisprudência;
e/ou
c) De que o requerimento das partes a que se refere o n.2 do art.º 732.º- A, apenas pode ser apresentado até à prolação do acórdão que julga a revista, e não, depois deste acórdão, ainda que se trate de uma decisão surpresa.
2) Os ora Recorrentes alegaram as inconstitucionalidades no contexto da invocada nulidade do acórdão do STJ.
3) O STJ, ao decidir da nulidade alegada, baseou-se nas normas do art.º 732.º-A do CPC, interpretadas nos termos referidos na conclusão supra.
4) A faculdade das partes de intervirem activamente na detecção e prevenção dos possíveis conflitos jurisprudenciais, permitido pelo art.º 732.º-A do CPC, só será possibilitada e incrementada pelo indispensável cumprimento do princípio do contraditório e pela necessidade da sua prévia audição, de modo a prevenir a prolação de decisões-surpresa.
5) Constituindo o decidido no douto acórdão recorrido, pelas razões atrás expostas, uma autêntica decisão surpresa, que é proibida em face do disposto no art.º 3.º/3 do CPC e tendo o princípio do contraditório consagração constitucional no art.º 20.º da CRP, não se mostrando que foi concedido aos Recorrentes o seu exercício antes da prolação do douto acórdão em crise, as citadas normas nas vertentes de interpretação, assumem dignidade constitucional, devendo delas se conhecer.
6) As normas contidas nos art.ºs 660.º/2, 661.º/1 e 664.º do CPC, conjugadas com as normas dos art.ºs, 715.º/2,3, 722.º, 726.º, 729.º do CPC, são inconstitucionais por violação dos princípios consubstanciados nos art.ºs 13.º (princípio da igualdade), 20.º.º/1,4 (princípio de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e 202.º (princípio da defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos) da Constituição da República Portuguesa, os princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica, consideradas como elementos basilares, essenciais do Estado de Direito, que se traduz na previsibilidade, ou seja, na certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos das normas jurídicas, designadamente ao modo de funcionamento dos Tribunais, consagrados nos artigos 2.º, 207.º e 212.º da Constituição quando interpretadas no sentido:
a) De admitir que as conclusões de recurso não limitem o seu objecto, podendo o Tribunal conhecer em objecto diverso do pedido e da causa de pedir.
b) De caber ao Tribunal de Revista conhecer da vontade real do testador de revogar um testamento, não tendo as partes discutido e/ou interpretado a vontade do testador essa questão.
c) De poder o julgador, sem prévia comunicação às partes do novo enquadramento jurídico, (revogação tácita do testamento) julgar a acção com fundamento diverso, equiparando a procuração/mandato ao testamento, sem que alguma das partes tenha abordado tal questão.
7) Ainda que se trate, o que sequer foi o caso nos autos, de uma alteração de qualificação jurídica, o actual sistema jurídico estabelece a proibição absoluta das decisões-surpresa (Cfr. art.º 3.º/3 do CPC), o que é válido quer para a 1.ª Instância, quer para os tribunais de recurso (Cfr. 715.º/3, 726.º do CPC), havendo que dar cumprimento ao disposto na parte final do n.º 3 do art.º 3.º do CPC, quando o juiz se proponha alterar enquadramento jurídico da questão.
8) Tendo o Alto Tribunal sido chamado a decidir sobre a subsistência do acto de doação de bens imóveis ocorrido após o óbito do doador em face de um testamento anterior não revogado incidindo sobre os mesmos bens, alterou a causa de julgar, aplicando o instituto de revogação do testamento, considerando que o testamento havia sido revogado tacitamente através da procuração.
9) O Tribunal só é livre na qualificação jurídica dos factos desde que não altere a causa de pedir e a liberdade do juiz no tocante à indagação, interpretação e aplicação do direito (art. 664 CPC) – deve ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa – art. 3/3 CPC, tendo sido negado aos Recorrentes um processo justo e equitativo e ao exercício de um contraditório pleno, que, face ao atrás exposto assume, igualmente, dignidade constitucional, merecendo o conhecimento das inconstitucionalidades invocadas nas dimensões interpretativas apontadas.
10) A norma contida no art.º 2313.º do Código Civil, conjugada com as normas contidas nos art.ºs 2179.º, 2182.º, 2187.º. 2204.º 2205.º, é inconstitucional interpretadas no sentido : “ Existe ainda disposição revogatória tácita do testamento, se através de válida disposição de vontade pela via do contrato de mandato que pretende que não caduque com a sua morte e através de procuração irrevogável a ele associada onde confere ao mandatário e procurador poderes para dispor dos seus bens, o autor do testamento, estando em causa como está, a sucessão testamentária onde foi feita uma liberalidade, conceder poderes que autorizam o mandatário e procurador a dispor dos seus bens sem restrições, advenientes do prévio testamento, em favor de um herdeiro legitimário.”
11) Interpretação que se tem por ilegal, por atentar contra a sua letra e espírito, a feitura do testamento e sua revogação obedece a regras especiais, é intrinsecamente pessoal, singular e não receptício, em que a sua revogabilidade é irrenunciável, dando-se por não escrita qualquer cláusula que contrarie a sua livre revogabilidade, proibindo-se o arbítrio, designadamente, no que respeita ao cumprimento ou não cumprimento do testamento não comportando, assim, a possibilidade de ser revogado um testamento por pessoa a pedido do testador ou com procuração para o efeito, e em que a revogação tácita de um testamento só pode lugar por meio de testamento posterior total ou parcialmente incompatível com o primeiro, afora dos demais formalismos ou exigências formais que supra se expôs.
12) A aludida norma na interpretação que foi feita, ou seja, que uma procuração irrevogável constitui válida disposição revogatória tácita do testamento, viola, normas imperativas (art.ºs 2179.º, 2182, 2187.º, 2204, 2205.º e 217.º/2 do CC) e os princípios de protecção do interesse público da confiança e segurança das pessoas e dos negócios jurídicos, e que gozam de garantia constitucional, o sentido ou dimensão normativa atribuída à norma contida no art.º2313.º do CC, viola ainda o principio da separação de poderes e de independência impostos na Constituição (Cfr. art.ºs 111.º /1 e 112.º/5), por com essa interpretação se ter alterado o conteúdo da lei, exercendo o Juiz funções de legislador, o que constitui exclusivo do poder legislativo, bem como os princípios da função jurisdicional e da independência, consagrados nos art.ºs 202.º e 203.º da CRP, por não ter feito aplicação estrita da norma imperativa do art.º 2313.º, pelo que uma tal interpretação é desconforme com a Constituição.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Foi dada oportunidade para as partes se pronunciarem sobre a possibilidade do mérito do recurso não ser apreciado relativamente a todas as questões colocadas, tendo os Recorrentes defendido que o mérito do recurso devia ser apreciado na sua totalidade.
Fundamentação
Os recorrentes requereram a fiscalização de constitucionalidade das seguintes normas:
1) Da norma contida no artigo 2313.º, conjugada com as normas contidas nos artigos 2179.º, 2182.º, 2187.º, 2204.º e 2205.º, todos do Código Civil, interpretadas no sentido de que existe ainda disposição revogatória tácita do testamento, se através de válida disposição de vontade pela via do contrato de mandato que pretende que não caduque com a sua morte e através de procuração irrevogável a ele associada onde confere ao mandatário e procurador poderes para dispor dos seus bens, o autor do testamento, estando em causa como está, a sucessão testamentária onde foi feita uma liberalidade, conceder poderes que autorizam o mandatário e procurador a dispor dos seus bens sem restrições, advenientes do prévio testamento, em favor de um herdeiro legitimário.
2) Das normas contidas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 732.º- A, do Código de Processo Civil, quando interpretadas no sentido:
a) de não imporem a audição prévia das partes, quando o Supremo se proponha tomar uma decisão que não integrando o thema decidendum, nem foi objecto de discussão jurídica da causa, colida com a sua própria jurisprudência; e/ou
b) de não imporem que o relator, qualquer dos adjuntos ou os presidentes das secções cíveis, sugiram que o julgamento do recurso se faça com a intervenção do plenário das secções cíveis quando o Supremo se proponha a tomar uma decisão que colida com a sua própria jurisprudência; e/ou
c) de que o requerimento das partes a que se refere o n.º 2 do artigo 732.º- A, apenas pode ser apresentado até à prolação do acórdão que julga a revista, e não, depois deste acórdão, ainda que se trate de uma decisão surpresa.
3) Das normas contidas nos artigos 660.º, n.º 2, 661.º, n.º 1 e 664.º, conjugadas com as normas dos artigos, 715.º, n.º 2 e 3, 722.º, 726.º, e 729.º, todas do Código de Processo Civil, quando interpretadas no sentido:
a) de admitir que as conclusões de recurso não limitem o seu objecto, podendo o Tribunal conhecer em objecto diverso do pedido e da causa de pedir;
b) de caber ao Tribunal de Revista conhecer da vontade real do testador de revogar um testamento, não tendo as partes discutido e/ou interpretado a vontade do testador quanto a essa questão;
c) de poder o julgador, sem prévia comunicação às partes do novo enquadramento jurídico, (revogação tácita do testamento) julgar a acção com fundamento diverso, equiparando a procuração/mandato ao testamento, sem que alguma das partes tenha abordado tal questão.
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade concreta, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge?se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço, com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a própria aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando?se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
A primeira questão colocada reporta-se à conclusão retirada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 13 de Julho de 2010 de que, na hipótese sob julgamento, se tinha verificado uma revogação tácita do testamento. Essa conclusão resultou duma operação subsuntiva das particularidades do caso concreto aos requisitos de uma declaração negocial revogatória tácita, isto é retirada de factos que, com toda a probabilidade, revelam essa manifestação de vontade.
A questão de constitucionalidade colocada não incide, pois, sobre uma qualquer regra abstracta susceptível de uma aplicação potencialmente genérica, mas sim sobre um juízo subsuntivo efectuado pelo tribunal recorrido.
É verdade que pode admitir-se a hipótese de se encontrar outro caso idêntico ao descrito pela Recorrente, mas essa hipótese não retira o cariz casuístico à interpretação enunciada. Esta só se mostraria apta a abarcar outro caso por este ser idêntico no planos dos factos e não por a interpretação, em si, ter um carácter de generalidade e abstracção que a vocacionasse a reger situações diversas.
Por este motivo não deve ser conhecido o recurso nesta parte.
Relativamente às interpretações normativas acima transcritas sob o ponto 2), da leitura dos acórdãos recorridos não se vislumbra que tenha sido sustentada qualquer uma das interpretações apontadas pelos Recorrentes, desde logo porque o tribunal recorrido não assumiu sequer que se estivesse perante uma situação de contradição de julgados.
Sobre esse assunto o Acórdão proferido em 30 de Novembro de 2010 limitou-se a dizer o seguinte:
“Respeitando a discordância dos recorrentes, só o apego a um rigorismo formal passadista e contrário ao princípio da prevalência da justiça material e ao seu desígnio - o fundo deve prevalecer sobre a forma - autoriza sustentar que o Acórdão se pronunciou sobre questão de facto e que não fundamentou a sua decisão, violando ainda o princípio processual do contraditório, com incidência na violação dos princípios constitucionais da igualdade, acesso ao direito e à tutela efectiva e ao dever de fundamentação das decisões judiciais - arts. 13.º, 20.º e 205.° da Lei Fundamental. A questão decidenda postulava a apreciação de questão de direito, a partir dos factos provados - saber das implicações da execução do contrato de mandato e utilização da procuração na disposição testamentária.
Em ponto algum do Acórdão se alterou a matéria de facto ou se procedeu ao seu julgamento, ao contrário do alegado pelos requerentes.
Descabida é a consideração de que o Relator teria de suscitar a intervenção do Pleno por a decisão contida no Acórdão violar jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça em arestos anteriores — cfr. itens 37) e 40) da reclamação.
Não só não referem os requerentes, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça em que idêntica questão de direito tivesse sido suscitada, como a existir a possibilidade de contradição de Acórdãos, a omissão de intervenção do plenário da secções (que poderia então ter sido requerida pelos requerentes), não acarreta qualquer nulidade, nem viola os princípios constitucionais indicados da igualdade, e da confiança, como vem assinalado a fis. 660 da reclamação.”
Deste excerto, relativamente à interpretação transcrita sob a alínea a), não se assumiu que se tivesse proferido decisão estranha ao thema decidendum e que a mesma fosse contraditória com anterior julgamento do mesmo tribunal. Quanto à interpretação constante da alínea b), a decisão recorrida não aceitou que se verificasse uma contradição de julgados, pelo que a negação de que o Relator tenha a obrigação de suscitar a intervenção do plenário das secções apenas é feita a título hipotético. E no que respeita à interpretação referida na alínea c) a mesma encontra-se totalmente ausente das considerações efectuadas pelo acórdão recorrido.
Assim, não tendo nenhuma das interpretações normativas reportadas aos n.ºs 1 e 2 do artigo 732.º- A, do Código de Processo Civil, constituído ratio decidendi de qualquer um dos Acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça neste processo, não tem a apreciação da sua constitucionalidade qualquer possibilidade de ter um efeito útil nestes autos, pelo que o recurso não deve ser conhecido nesta parte.
Relativamente às alegadas interpretações normativas acima transcritas sob o ponto 3), constata-se, relativamente à interpretação normativa enunciada na alínea a), que a mesma não foi assumida pelos Acórdãos recorridos.
Do excerto acima transcrito resulta, com clareza, que não se entendeu que se tenha conhecido de objecto diverso do recurso, pelo que tal critério normativo também não integrou a ratio decidendi das decisões recorridas.
Quanto às enunciações contidas nas alíneas b) e c) elas nem sequer têm um conteúdo normativo, por carecerem de um carácter geral e abstracto, uma vez que se reportam à verificação de um conjunto muito específico de circunstâncias que as tornam incidíveis do caso concreto. Sendo patente a estruturação das referidas questões em torno das particularidades do caso, reproduzindo uma série de elementos especificamente caracterizadores de uma dada situação processual, não se vê que delas se destaque, com um mínimo de “distanciamento” uma dimensão normativa, como seria indispensável para as pretensas interpretações não se fundirem com o acto de aplicação.
Assim, por não integrarem a ratio decidendi (alínea a) e por não incidirem sobre um verdadeiro critério normativo (alíneas b) e c), também não devem ser conhecidas as questões de constitucionalidade acima referidas sob o ponto 3).
Pela soma destas razões não deve ser conhecido o mérito do recurso na sua totalidade.
Decisão
Pelo exposto não se conhece do mérito do recurso interposto para o Tribunal Constitucional por A. e B..
Custas do recurso pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 12 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Lisboa, 31 Outubro de 2011.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.