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Processo n.º 784/09
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A 1ª Direcção de Finanças de Lisboa deduziu, no 1º Juízo Cível de Lisboa, um pedido de derrogação do sigilo bancário respeitante ao contribuinte A. que contestou o pedido invocando, entre o mais, a incompetência material do tribunal para conhecer do mesmo. O 1.º juízo cível de Lisboa julgou procedente a acção por decisão de 12 de Janeiro de 2005, e concluiu que a competência cabia aos tribunais comuns, nos termos do n.º 5 do artigo 63.º da Lei Geral Tributária (LGT) aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98 de 17 de Dezembro. Inconformado, o requerido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, suscitando desde logo a questão de inconstitucionalidade da norma do n.º5 do artigo 63.º da LGT, recurso esse cujo provimento foi negado, decidindo o Tribunal da Relação, para o que aqui releva, o seguinte:
“9. O ora recorrente suscitou desde a contestação a incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns para apreciar o pedido de suprimento de consentimento de consulta de contas bancárias por entender que se está face a um litígio emergente de relação jurídica fiscal.
10. Assim, para o ora recorrente nenhuma dúvida se suscitava quanto à competência da jurisdição fiscal para apreciar o pedido deduzido pelos Serviços da Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa.
11. Nas alegações de recurso é que pela primeira vez o recorrente suscita a questão de inconstitucionalidade do artigo 63º/5 da Lei Geral Tributária (Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro) por nele se permitir o levantamento do sigilo bancário dos contribuintes, dispositivo que carecia de prévia autorização legislativa que não consta da Lei nº 41/98, de 4 de Agosto.
12. Não está em causa, como é evidente, uma inconstitucionalidade traduzida no entendimento de que o sigilo bancário não pode ser objecto de levantamento; a ser assim, então, por força de uma tal inconstitucionalidade, o que estaria em causa seria sempre a inaplicabilidade daquele preceito (artigo 63º/5 da LGT) pelos tribunais fiscais, administrativos ou judiciais e não apenas uma questão de incompetência em razão da matéria, questão esta que foi a suscitada.
13. Uma tal inconstitucionalidade transportar-nos-ia para uma dimensão absoluta do sigilo bancário que não admitiria excepções; aquele preceito (artigo 63º/5 da LGT) introduziria excepção e seria, desde logo, por tal motivo desrespeitador de um direito absoluto.
14. No entanto, tal como o próprio recorrente afirma, citando jurisprudência constitucional, “o segredo bancário não é um direito absoluto, antes pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
15. Não sendo afinal o sigilo bancário um direito absoluto, então aquele preceito não pode ser visto como uma excepção que, pela via instrumental, iria desvirtuar a essência absoluta do direito ao sigilo – um direito sem excepções e, portanto, sem possibilidade de derrogação judicial – reduzindo-se àquilo que efectivamente é, ou seja, a atribuição ao tribunal de competência para conceder autorização para acesso à informação protegida pelo sigilo bancário.
16. Quando o recorrente questiona o entendimento de uma tal autorização caber aos tribunais judiciais em vez de competir aos tribunais fiscais, ele coloca-se numa outra perspectiva que flúi do entendimento segundo o qual existe, no caso vertente, um litígio fiscal e, por conseguinte, os tribunais fiscais são os competentes para apreciar a questão, não os tribunais comuns.
17. Assim, uma interpretação diversa levaria a que fosse atribuída competência a tribunais de outra ordem judicial.
18. A inconstitucionalidade pode dirigir-se (a) directamente à própria norma considerando que uma tal interpretação resulta claramente do preceito legal ou à (b) própria interpretação judicial incidente sobre o referido dispositivo.
19. No entanto, pelo teor das alegações, afigura-se que ao recorrente não se suscita dúvida quanto ao exacto alcance do aludido dispositivo: prescrever a atribuição de competência aos tribunais judiciais.
20. Certo é que a mera invocação da incompetência em razão da matéria pode resultar do (c) entendimento de que se verifica uma incorrecta subsunção do caso concreto à norma, hipótese em que não se discute a norma em si; pode também resultar (d) de uma subsunção que leva em linha de conta uma certa interpretação da norma.
21. No caso assinalado em (d) se a interpretação que se fizer da norma ofender a Constituição a incompetência em razão da matéria reconduz-se então a uma questão de inconstitucionalidade.
22. A expressa referência à inconstitucionalidade feita agora com as alegações de recurso, qualificação que se limitou à mera referência à excepção de incompetência em razão da matéria quando foi deduzida oposição, não constitui questão nova que escape aos poderes de cognição deste tribunal (artigo 660º do CPC)
23. Já no outro plano em que o recorrente situa a inconstitucionalidade daquele preceito - o do afrontamento do artigo 212º da Constituição (ver conclusão 2ª, segunda parte) - reconduz-se o caso à questão de saber se aquele preceito (artigo 63º/5 da LGT) atribui aos tribunais judiciais competência para a derrogação do dever de sigilo bancário e, assim sendo, se uma tal atribuição colide com o disposto no artigo 212º/3 da Constituição.
24. No entanto, para que assim fosse, impor-se-ia o entendimento de que a Constituição prescreve que as questões emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais só podem ser apreciadas pelos tribunais administrativos e fiscais.
25. O Tribunal Constitucional tem afirmado a inexistência de um princípio de reserva absoluta de competência dos tribunais administrativos para dirimir litígios administrativos ( ver Ac. nº 458/99 do Trib. Const. de 13-7-1999, DR,II Série, nº 55 de 6-3-2000, pág. 4454; ver também BMJ,Nº 489-26, Ac. nº 290/99 do Trib. Const. de 12-5-1999, DR,II Série, nº 264 de 15-11-2000, pág. 18529, Ac. nº 550/2000 do Trib. Const. de 13-12-2000, DR,II Série, nº 27 de 1-2-2001, pág. 2206. E, de facto, a resolução dos litígios atinentes a expropriações ou ao estatuto dos magistrados judiciais, e outras ainda, são da competência dos tribunais judiciais e não dos tribunais administrativos. não obstante a natureza das matérias.
26. Não se afigura ousado considerar que este entendimento vale mutatis mutandis para os litígios fiscais. Nada obsta em princípio a que um litígio emergente de uma relação fiscal possa ser dirimido pelos tribunais judiciais conquanto haja uma razão plausível que justifique a opção legal.
27. Assim sendo, ainda que o entendimento fosse no sentido de que a situação em causa se reconduz a um litígio emergente de uma relação fiscal, a mera constatação de uma opção legal atribuindo a resolução de tal conflito a tribunal judicial não impõe um imediato juízo de inconstitucionalidade como aconteceria se a Constituição proibisse em absoluto que litígios de natureza administrativa ou fiscal pudessem ser apreciados por tribunais de outra ordem.
28. Um juízo de inconstitucionalidade obrigaria ao reconhecimento de que a atribuição, no caso, de competência aos tribunais judiciais não dispunha de qualquer suporte justificativo, alegação que não foi feita.
29. Referimos no Ac. da Relação de Lisboa de 1-2-2001 (P. 2669/2000 que “ a jurisdição cabe apenas aos tribunais e traduz uma das funções do Estado a par de outras como a função executiva ou legislativa; as várias ordens ou categorias de tribunais repartem entre si a jurisdição estando duas dessas ordens organizadas hierarquicamente: a judicial, que tem o Supremo Tribunal de Justiça como órgão superior e a administrativa/fiscal encimada pelo Supremo Tribunal Administrativo (artigos 202º, 209º, 210º e 212º da Constituição).
30. O princípio da reserva material de jurisdição dos tribunais, designadamente da jurisdição administrativa, é atingido quando algum órgão ou entidade se arroga poderes que cabem na jurisdição dos tribunais administrativos.
31. No entanto, quando um tribunal invade a competência do outro, ele não deixa de prosseguir o exercício da função jurisdicional; trata-se de uma situação bem diversa daquela em que um órgão ou entidade que não pode exercer função jurisdicional, porque não é tribunal, passa a actuar no campo que constitucionalmente está reservado aos tribunais e é precisamente por isso que a decisão sobre incompetência absoluta do tribunal, embora transite em julgado (faz caso julgado formal) não tem valor algum fora do processo em que foi proferida, ressalvada a intervenção do Tribunal dos Conflitos (artigo 209º/3 da Constituição, artigos 106º, 107º e 116º do CPC, Decreto nº 19243. de 16 de Janeiro de 1931 e Decreto-Lei nº 23185, de 30 de Outubro de 1933 e 42º/1 do Código de Procedimento Administrativo).
32. Está fora do controlo de constitucionalidade a decisão jurisdicional que reconheça um tribunal competente em razão da matéria por se entender que de jure o tribunal competente seria afinal tribunal integrado noutra ordem judicial, pois o recurso para o Tribunal Constitucional não tem por objecto a decisão judicial em si mesma, mas a norma que foi aplicada cuja inconstitucionalidade se pretende ver declarada (artigos 277º e 280º da Constituição) sob pena de o Tribunal Constitucional ser necessariamente chamado em última instância a apreciar todas as decisões proferidas em sede competência em razão da matéria sempre que se considerasse que a competência para a questão cabia afinal a outro tribunal inserido numa outra ordem jurisdicional.
33. Não é admissível declarar inconstitucional uma decisão judicial que definitivamente haja reconhecido um tribunal competente em razão da matéria, nem tão pouco a decisão final a proferir por esse tribunal poderá ser, por essa razão, inválida e ineficaz (artigo 205º/2 da Constituição)”.
34. Estamos face a situações que se subsumem ao que referimos em 20 supra: hipótese (c).
35. Dir-se-á, porém, que o aludido preceito prescreve competências em razão da matéria a determinados tribunais e, muito embora a Constituição não proíba que matérias administrativas e fiscais sejam apreciadas por tribunais não administrativos, a verdade é que a organização e competência dos tribunais constitui reserva relativa da Assembleia da República e, assim sendo, tal reserva, para ser afastada, carece de lei de autorização legislativa (artigo 165º/1 p) e nº 2 da Constituição).
36. A colisão não se daria com o disposto no artigo 212º/3 da CRP pois este preceito, como se disse, não prescreve uma coincidência absoluta entre a natureza do litígio e a natureza da jurisdição que o vai apreciar.
37. É, pois, naquela (35, supra) perspectiva, mais limitada, que se posiciona o recorrente.
38. Ou seja, o recorrente aceita que o pedido de dispensa de autorização para consulta de elementos abrangidos pelo segredo bancário possa ser deferido aos tribunais judiciais.
39. Considera, porém, que a atribuição de competência aos tribunais judiciais carecia de autorização legislativa por se tratar de matéria relativa à organização e competência dos tribunais.
40. Certo é que a aludida norma não pode nem está a atribuir competência aos tribunais judiciais visto que a regra, no que toca aos tribunais judiciais, é a de que são da sua competência as causas que não sejam atribuídas a outra ordem judicial: competência residual, portanto (artigo 18º/1 da LOFTL - Lei 3/99, de 13 de Janeiro e artigo 66º do C.P.C.).
41. Pode, no entanto, dar-se o caso de a lei ter atribuído aos tribunais fiscais competência para a dispensa do sigilo bancário quando esteja em causa a averiguação da situação fiscal de um contribuinte.
42. Do ETAF consta, a este respeito, a norma do artigo 62º-B que atribui aos tribunais tributários de 1ª instância competência para conhecer do processo especial de derrogação do dever de sigilo bancário, previsto nos artigos 146º-A a 146º-D do Código do Procedimento e de Processo Tributário, bem como do recurso previsto no artigo 89º-A da Lei Geral Tributária.
43. Se a referida norma (artigo 63º/5 da LGT) tivesse atribuído competência a tribunal tributário, nesse caso estaríamos efectivamente face a uma norma que introduzia uma nova competência em matéria de tribunais tributários.
44. Mas isso não aconteceu.
45. A lei ao referir que a diligência referenciada naquele preceito “ só poderá ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente” não está a atribuir competência que o tribunal de comarca não disponha, pois, dada a sua competência residual, cabe-lhe dirimir os litígios que não sejam atribuídos a outra ordem judicial.
46. Se a LGT tivesse atribuído aos tribunais tributários competência para proferir tais autorizações, fora de qualquer autorização legislativa, poderia então dizer-se que a lei tinha regulado matéria da competência dos tribunais tributários.
47. O recorrente considera que há uma atribuição indevida aos tribunais judiciais porque parte de um duplo pressuposto, a nosso ver incorrecto: que o litígio em causa é um litígio emergente de uma relação fiscal e que é constitucionalmente inadmissível que um tal litígio possa em determinadas circunstâncias ser decidido pelos tribunais judiciais.
48. Tal como foi sublinhado pelo Ministério Público “ o réu confunde a relação jurídica tributária que tem com o Estado, entendida esta como a que emerge da resolução de interesses no quadro das suas obrigações tributárias para com a administração, com o pedido de autorização judicial formulado para aceder à sua situação bancária.
49. Na verdade, o pedido formulado nos autos para aceder à informação bancária do réu foi efectuado fora de qualquer processo de contencioso fiscal, no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, a quem são atribuídas as tarefas de suprimento do consentimento recusado - cf. artigos 1409º e seguintes e 1425º e seguintes do CPC”.
50. O facto de a administração fiscal estar interessada no levantamento do sigilo bancário para aceder às contas bancárias do recorrente tendo em vista averiguar a sua situação tributária não envolve nenhum litígio, que não existe, emergente de relação tributária do recorrente face à administração fiscal.
51. O litígio que importa resolver é aquele que se prende com a necessidade de se manter ou não o sigilo bancário face a uma tal pretensão.
52. Há, com efeito, um litígio entre a administração fiscal e o recorrente. Mas esse litígio não tem a ver com as obrigações fiscais do recorrente emergentes da sua relação tributária com o Estado, mas do direito à protecção e salvaguarda do sigilo bancário que é ,em regra, oponível a todas as entidades.
(…)
Concluindo:
I- A diligência de acesso à informação do contribuinte protegida pelo sigilo bancário que, nos termos do artigo 63º/5 da Lei Geral Tributária, só pode ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente, não traduz litígio emergente de relação jurídica tributária.
II- O litígio a resolver não tem a ver com as obrigações fiscais do recorrente emergentes da sua relação tributária com o Estado, mas do direito à protecção e salvaguarda do sigilo bancário que é, em princípio, oponível a todas as entidades.
III- São, por isso, os tribunais judiciais os competentes à luz da aludida norma que está em conformidade com o disposto nos artigos 18º/1 da LOFTJ (Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro) e artigo 66º do C.P.C. não estando atribuída competência para um tal litígio aos tribunais tributários.
IV- Por isso, o aludido preceito não ofende nenhuma disposição constitucional, designadamente os artigos 168º/1q) e 212º/3 da Constituição, visto que não interfere em matéria de competência dos tribunais nem tem por objecto dirimir litígio emergente de relação jurídica fiscal.”
Inconformado, o requerido interpôs recurso desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por Acórdão datado de 18/06/2009, negou provimento ao mesmo, remetendo para os fundamentos da decisão do Tribunal da Relação nos termos do disposto no n.º5 do artigo 713.º do CPC.
2. É desta decisão que A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, em requerimento do seguinte teor:
O presente recurso fundamenta-se na inconstitucionalidade do art. 63º/5 da Lei Geral Tributária, aprovada pelo DL 398/98, de 17 de Dezembro, face às normas e princípios constitucionais consagrados, além do mais, nos arts. 26º, l03º/2, 112º e 168º/1/b), i), p) e s) e 212º da CRP.
A inconstitucionalidade da norma em análise foi suscitada, além do mais, nos números 1 a 7 e conclusões 1.ª a 9.ª das alegações apresentadas pelo ora recorrente, em 2005.04.08 e 2006.12.12, tendo sido expressamente apreciada no douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2006.09.21, cuja fundamentação foi inteiramente adoptada pelo douto aresto objecto do presente recurso, nos termos da “faculdade do disposto no nº 5 do artigo 713º do CPC”.
O recurso segue os termos do recurso de apelação em processo civil, com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo, ex vi dos arts. 69º e 78º/3 da Lei 28/82 e dos arts. 734º/l/a), 736º e 740.º/1 do CPC.
E, porque está em tempo (v. arts. 75º e 76º da Lei 28/82, na redacção que lhe foi dada pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro), requer a sua admissão”.
3. Admitido o recurso, alegou o recorrente e concluiu:
“1.º A Lei Geral Tributária – em que se insere o normativo em análise – foi aprovada pelo DL 398/98, de 17 de Dezembro, ao abrigo de autorização legislativa concedido pela Lei n.º 41/98, de 4 de Agosto, que não satisfaz, neste particular, as exigências constitucionalmente fixadas, pois não define claramente “o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização” (v. art. 165º/2 da CRP; cfr. arts. 103º/2, 112º/2 e 165º/1/b), i), p) e s) da CRP) – cfr. texto n. º s 1 a 3;
2º A Lei n.º 41/98, de 4 de Agosto, não conferiu poderes ao Governo para regular a organização e competências dos Tribunais, nos termos estabelecidos pelos arts. 165º/1/p) e 166º/2 da CRP – cfr. texto n.º 3;
3º A referida Lei de Autorização Legislativa da Assembleia da República também não conferiu poderes ao Governo para regulamentar os termos em que o levantamento do sigilo bancário dos contribuintes podia ser autorizado, para efeitos de permitir à Administração Fiscal a devassa das suas contas bancárias, para apurar a sua real situação contributiva (v. arts. 26º, 103º/2 e 212º da CRP), conforme é imposto pelos arts. 165º/1/b i) e s) da CRP – cfr. texto n.º s 4 e 5;
4º No caso em análise estão em causa matérias intrinsecamente relacionadas com a relação jurídico-fiscal do contribuinte com a Administração Tributário (v. art. 103º/2 da CRP), pelo que a competência para a sua apreciação e decisão pertencia exclusivamente aos Tribunais Administrativos e Fiscais, conforme resulta directamente do art. 212º da CRP – cfr. texto n.º 6;
5º A simples republicação da Lei Geral Tributária, operada pela Lei 15/200 1, de 5 de Junho, sem manifestação pela Assembleia da República de vontade política ou intenção legislativa de novação de todo aquele diploma nunca determinaria a ratificação implícita ou sanação da inconstitucionalidade orgânica de que enferma o art. 63º/5 da LGT, unicamente aprovado pelo Governo, através do DL 398/98 (cfr.art. 169º da CRP) - cfr. texto n.º s 7 e 8;
6º O art. 63º/5 da LGT integra assim uma norma claramente inconstitucional (v. arts. 26º, 103º/2, 112º, 165º/1/b), i), p)e s)e 212º da CRP) – cfr. texto n.ºs 1 a 8.
Nestes termos,
Deverá ser dado provimento ao presente recurso, julgando-se inconstitucional a norma do art. 63º/5 da LGT face às normas e princípios constitucionais consagrados nos arts. 26º, 103º/2, 112º, 165º/1/b), i), p) e s) e 212.º da CRP,com as legais consequências”.
4. O Ministério Público apresentou a seguinte alegação:
2. Apreciação do mérito do recurso
2.1. A constitucionalidade da norma que constitui objecto do recurso, já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, que a não julgou inconstitucional (Acórdão n.º 602/05).
Não só a dimensão normativa corresponde à então apreciada, como são os mesmos, num caso e no outro, os preceitos constitucionais que os recorrentes consideravam violados: os artigos 26.º, 103.º, n.º 2, 112.º, 168.º, n.º 1, alíneas b), i), p) e s) e 212.º, todos da Constituição (vd. requerimento de interposição do recurso).
Naqueles autos, o Ministério Público, sustentou a não inconstitucionalidade da norma, tendo, nas Contra-Alegações então apresentadas, concluído da seguinte forma:
“1 - A possibilidade de a Administração Fiscal aceder a informação protegida pelo sigilo bancário, mediante autorização judicial, nos casos em que o contribuinte se oponha a tal acesso, denegando o necessário consentimento (fora dos casos em que é possível a derrogação pela própria administração tributária do sigilo bancário) decorre inteiramente do preceituado nos nºs 2 e 4, alínea b) do artigo 63º da Lei Geral Tributária, na versão resultante da Lei nº 30-G/2000, de 29 de Dezembro, sendo pois impossível questionar tal regime legal na óptica da respectiva inconstitucionalidade ‘orgânica’.
2 - O regime constante do nº 5 do artigo 63º da Lei Geral Tributária, visando regular a forma processual idónea para a Administração Fiscal obter o acesso aos dados cobertos pelo sigilo, nos casos de recusa de consentimento do contribuinte, tem uma dimensão exclusivamente procedimental e adjectiva, em nada inovando, aliás, relativamente às possibilidades já contidas no processo de suprimento do consentimento, no caso de recusa, e da admissibilidade de compressão, mediante decisão judicial, do princípio da reserva da vida privada, nela se incluindo o segredo bancário, já decorrentes da lei de processo civil.
3 - O mecanismo de tal quebra ou compressão do segredo bancário não se situa no âmbito da relação jurídico-fiscal, respeitando antes aos direitos de personalidade do visado, pelo que não ofende o princípio da reserva material de competência dos tribunais administrativos e fiscais a atribuição – em termos manifestamente não inovatórios – da competência decisória aos tribunais judiciais.”
2.2. O artigo 63.º, da LGT foi objecto de diversas alterações (cfr. Lei n.º 30- G/2000, de 29 de Dezembro, Lei n.º 55/B/2004, de 30 de Dezembro e Lei n.º 94/2009, de 1 de Setembro), mantendo, no entanto, o n.º 5 a redacção inicial.
De salientar que uma dessas alterações atrás referidas – a operada pela Lei n.º 30-G/2000 que também introduziu o artigo 63.º-B – foi importante para formulação do juízo de não inconstitucionalidade, constante do Acórdão n.º 602/2005.
Atendendo à data do pedido, nos presentes autos foi também a versão saída das alterações introduzidas pela Lei n.º 30-G/2000, a aplicada
Por tudo o exposto, resta-nos remeter para os fundamentos daquele aresto, nada mais tendo a acrescentar.
3. Conclusão
1. A norma do n.º 5 do artigo 63.º da LGT, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, ao estabelecer que “em caso de oposição do contribuinte com fundamento nalgumas circunstâncias referidas no número anterior, a diligência só poderá ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente com base em pedido fundamentado da administração tributária “, não é inconstitucional, não violando, designadamente, os artigos 26.º, 103.º, n.º 2, 112.º, 168.º, n.º 1, alíneas b), i), p) e s) e 212.º, todos da Constituição.
2. Deve, pois, negar-se provimento ao recurso.
II. Fundamentação
5. O objecto do presente recurso é a norma do n.º 5 do artigo 63.º da LGT, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98 de 17 de Dezembro. O artigo 63.º da LGT foi objecto de diversas alterações, tendo sido a versão resultante das introduzidas pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro a aplicada no presente caso. Não obstante, o n.º 5, aqui em causa, manteve a redacção inicial, que é a seguinte:
Artigo 63.º
Inspecção
1 – (…)
2 – (…)
3 – (…)
4 – (…)
5 - Em caso de oposição do contribuinte com fundamento nalgumas circunstâncias referidas no número anterior, a diligência só poderá ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente com base em pedido fundamentado da administração tributária.
6. São duas as questões de inconstitucionalidade suscitadas em relação à norma objecto do presente recurso. Em primeiro lugar, alega o recorrente que a atribuição de competência aos tribunais judiciais sobre o pedido de dispensa de autorização para consulta de elementos abrangidos pelo segredo bancário carece de autorização legislativa, nos termos estabelecidos pelos artigos 165.º, n.º1, alínea p), por se tratar de matéria relativa à organização e competência dos tribunais. Tal atribuição de competência violaria ainda o artigo 212.º da CRP, que consagra a existência de tribunais administrativos e fiscais e assim, um sistema de dualidade de jurisdições.
Em segundo lugar, invoca o recorrente que a referida norma padece de uma outra inconstitucionalidade, já que o Governo carecia de poderes para regulamentar os termos em que o levantamento do sigilo bancário dos contribuintes podia ser autorizado. Essa matéria faria parte da reserva relativa de competência da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º, n.º1, alíneas b), i) e s) da CRP. Por esse efeito, seriam também violados os artigos 26.º, 103.º, n.º2 e 212.º da CRP.
Cumpre decidir.
7. A constitucionalidade da norma que constitui objecto do recurso foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional nos Acórdãos n.º 602/05 (publicado no DR, IIª Série, de 21-12-2005) e n.º 672/2006 (disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Não só a dimensão normativa corresponde à então apreciada, como são os mesmos, num caso e no outro, os preceitos constitucionais que os recorrentes consideravam violados: os artigos 26.º, 103.º, n.º 2, 112.º, 165.º, n.º 1, alíneas b), i), p) e s) e 212.º, todos da Constituição. Os referidos arestos não julgaram a norma inconstitucional nas dimensões apreciadas.
8. Há que começar por analisar a primeira questão suscitada. Invoca o recorrente que a atribuição de competência aos tribunais judiciais sobre o pedido de dispensa de autorização para consulta de elementos abrangidos pelo segredo bancário carecia de autorização legislativa, por se tratar de matéria relativa à organização e competência dos tribunais, nos termos estabelecidos pelos art. 165.º, n.º1, alínea p) da CRP. Tal atribuição de competência violaria ainda o artigo 212.º da CRP, que garante a existência de tribunais administrativos e fiscais.
8.1. Comecemos pelo primeiro aspecto. A LGT, em que se insere o normativo imputado de inconstitucional, foi aprovada pelo DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro, ao abrigo de autorização legislativa concedida pela Lei n.º 41/98, de 4 de Agosto. Rezam assim os artigos 1.º e 2.º da referida Lei n.º 41/98.
Artigo 1.º
Objecto
1 — Fica o Governo autorizado a publicar uma lei geral tributária donde constem os grandes princípios substantivos que regem o direito fiscal português e a articulação dos poderes da Administração e das garantias dos contribuintes.
2 — A lei geral tributária visará aprofundar as normas constitucionais tributárias e com relevância em direito tributário, nomeadamente no que se refere à relação tributária, ao procedimento e ao processo, com reforço das garantias dos contribuintes, da participação destes no procedimento, da igualdade das partes no processo e da luta contra a evasão fiscal, definindo os princípios fundamentais em sede de crimes e contra-ordenações tributárias.
Artigo 2.º
Sentido e extensão
Para a prossecução dos fins indicados nos artigos anteriores, o Governo fica autorizado a:
1) Definir os grandes princípios substantivos que regem o direito fiscal, incluindo os relativos à tributação do agregado familiar, às situações de incapacidade para o trabalho e de velhice e à isenção do necessário para uma existência em condições económicas dignas;
2) Estabelecer a tributação dos bens e rendimentos obtidos, detidos ou utilizados com carácter ilícito ou contrário aos bons costumes, com excepção dos que venham a ser perdidos a favor do Estado em termos correspondentes àqueles a que estão sujeitos actualmente os restantes bens e rendimentos;
3) Estabelecer limites aos impostos, quando estritamente necessários para salvaguardar o exercício de qualquer profissão ou actividade, ou a prática de actos legítimos de carácter pessoal, sem prejuízo dos agravamentos ou benefícios excepcionais determinados por finalidades económicas, sociais, ambientais ou outras;
4) Garantir a irretroactividade dos impostos, nos termos da Constituição;
5) Regular a recorribilidade e a impugnabilidade dos actos em matéria tributária lesivos para o contribuinte, por modo a garantir-se sempre a obtenção, no domínio tributário, de uma tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos;
6) Concretizar o princípio constitucional da legalidade tributária, proibindo a integração por
analogia das normas sujeitas ao princípio da reserva de lei da Assembleia da República;
7) Regular o período de vigência dos benefícios fiscais, em termos de assegurar a sua previsibilidade, em obediência ao princípio da segurança jurídica, e a avaliação periódica dos respectivos resultados;
8) Fazer abranger pela lei geral tributária os impostos, nomeadamente os impostos alfandegários, e as taxas, em tudo o que não exigir um regime especial, nomeadamente ditado pelo direito comunitário;
9) Definir a ineficácia em matéria tributária dos actos ou negócios que pretendam alterar os elementos constitutivos da obrigação tributária;
10) Prever a substituição tributária, em termos do cumprimento da obrigação de imposto poder ser exigido de um sujeito diferente do seu sujeito passivo, sempre que razões de conexão com o facto tributário ou de praticabilidade fiscal a justifiquem;
11) Regular a simulação tributária, consagrando a norma de que o facto tributário é aquele que foi efectivamente realizado pelas partes;
12) Regular a relevância tributária dos actos e negócios inválidos nos termos máximos de equivalência à dos negócios e actos válidos;
13) Prever as obrigações dos sujeitos passivos e consagrar a possibilidade de serem exigidas entregas antecipadas no período de formação do facto tributário, bem como retenções na fonte;
14) Regular a responsabilidade tributária dos representantes legais e dos que dispõem de bens alheios pelo cumprimento dos deveres que a estes incumbam;
15) Estabelecer os princípios gerais sobre responsabilidade tributária, solidária e subsidiária, por forma a:
a) Prever que a mesma seja, em princípio, subsidiária e possa abranger a totalidade
da dívida tributária, incluindo juros e demais encargos;
b) Regular a responsabilidade solidária, prevendo-a quanto aos sujeitos passivos do imposto, sócios e liquidatários;
c) Regulamentar a responsabilidade subsidiária, nomeadamente fixando os pressupostos de responsabilidade, o elenco dos responsáveis, prevendo-a em relação aos gerentes, administradores e titulares de funções semelhantes, incluindo o titular do estabelecimento individual de responsabilidade limitada, assentando-a na distinção entre as dívidas tributárias vencidas no período do exercício dos respectivos cargos e as dívidas tributárias vencidas anterior ou posteriormente, cabendo, no primeiro caso, aos administradores ou gerentes e titulares de funções semelhantes o ónus da prova da ausência de culpa na falta do pagamento e, no segundo caso, à administração fiscal o ónus da prova de culpa dos agentes mencionados na insuficiência do património para o pagamento das dívidas tributárias;
d) Fazer depender a responsabilidade subsidiária da existência de acto fundamentado de reversão e de prévia audiência do responsável e fixar as providências cautelares adequadas;
e) Estender a responsabilidade, nos mesmos termos, aos membros dos órgãos de fiscalização e aos revisores oficiais de contas, nos casos em que a administração tributária demonstre que a inobservância dos deveres tributários dos contribuintes resultou do incumprimento das funções de fiscalização, e aos técnicos oficiais de contas nos casos em que aquela inobservância resulte de violação dolosa dos deveres de assunção de responsabilidade pela regularização técnica nas áreas contabilísticas e fiscal ou de assinatura de declarações fiscais, demonstrações financeiras e seus anexos;
16) Definir os princípios do cumprimento das obrigações tributárias, fixando, nomeadamente, normas quanto ao modo de cumprimento, à compensação, ao pagamento em prestações ou relativamente a qualquer outra forma de cumprimento;
17) Rever os prazos de caducidade do direito de liquidar os tributos e de prescrição das obrigações, harmonizando-os com o prazo de reporte ou podendo-os encurtar de modo consentâneo com as possibilidades e o aumento de eficiência da Administração;
18) Rever os pressupostos da suspensão do prazo de caducidade e da interrupção da prescrição, podendo o primeiro ser dilatado nos casos de contratos fiscais no período a que os respectivos benefícios se aplicam e o segundo ser encurtado de modo consentâneo com as possibilidades e o aumento de eficiência da Administração;
19) Rever o regime dos juros compensatórios, de mora e indemnizatórios, promovendo uma maior justiça fiscal entre a Administração e os contribuintes, nomeadamente prevendo o direito dos contribuintes a juros indemnizatórios em casos de procedência de pedido de revisão, quando se prove erro imputável aos serviços, não cumprimento de prazos de restituição oficiosa ou execução de anulação de acto tributário e, ainda, nos casos de revisão quando haja demora na apreciação por período superior a um ano após a sua apresentação, podendo prever-se uma taxa igual para juros compensatórios e indemnizatórios;
20) Rever o regime jurídico da garantia dos créditos do Estado, prevendo, nomeadamente, a hipoteca legal e o penhor legal e revendo a prestação de garantias no caso de execução, para garantir a igualdade no acesso ao direito e para salvaguardar os interesses do contribuinte perante delongas dos procedimentos e processos;
21) Estabelecer normas que permitam aos contribuintes desencadear procedimentos no sentido da definição das suas obrigações tributárias e da sua situação jurídica tributária;
22) Consagrar expressamente e aprofundar, em sede de procedimento, os princípios da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, da celeridade, da decisão e do inquisitório, da colaboração, da boa fé e da tutela da confiança, da eficácia dos actos, da audiência dos cidadãos, do dever de fundamentação, da confidencialidade, da iniciativa da Administração e da cooperação dos particulares;
23) Estabelecer normas, de acordo com a Constituição e em atenção ao disposto no Código do Procedimento Administrativo, sobre competência, delegação e substituição, legitimidade, prazos, notificações, direito de informação, direito de acesso, instrução do procedimento, meios de prova e seu valor, ónus da prova, liquidação, revisão e liquidação adicional, modalidades de cobrança, pagamentos por conta, fiscalização, direito de petição, reclamação e recurso hierárquico, prazos e revogação das decisões da Administração;
24) Regular o procedimento da determinação da matéria colectável em vista do apuramento da matéria colectável real e do combate à evasão fiscal, com possibilidade de recurso a métodos indirectos de avaliação quando se verifiquem os pressupostos de impossibilidade de determinação do valor real, e com respeito do princípio da audiência do contribuinte;
25) Fixar os pressupostos da determinação indirecta da matéria colectável, descrevendo as situações em que, nomeadamente por falta de declaração, elementos de contabilidade ou outros, e por indícios de carácter técnico-científico sobre a inveracidade da matéria colectável declarada ou resultante da contabilidade, a Administração tenha a faculdade de determinar indirectamente a matéria colectável;
26) Determinar os pressupostos do exercício da faculdade de o contribuinte optar pela tributação por regime simplificado, com procedimentos mais simples e expeditos quanto à fixação da matéria colectável, tendo em consideração as garantias procedimentais e processuais previstas na lei;
27) Introduzir no procedimento da determinação indirecta da matéria colectável a figura do perito independente;
28) Regular o processo tributário com vista não só a uma maior igualdade entre as partes, mas também, e nomeadamente, ao acesso ao direito, à faculdade de impugnar ou de recorrer, ao inquisitório e da colaboração processual e do aprofundamento dos princípios constitucionais nesta matéria, regulando os efeitos da decisão judicial favorável ao contribuinte e da execução de sentença, e alçada dos tribunais;
29) Clarificar a natureza judicial do processo de execução fiscal e consagrar o direito dos particulares de solicitar a intervenção do juiz no processo;
30) Introduzir na lei geral tributária um título sobre infracções tributárias visando a unificação dos regimes jurídicos das infracções fiscais aduaneiras e não aduaneiras e contendo os princípios fundamentais relativos àquelas infracções, especialmente quanto às espécies de infracções, penas aplicáveis, responsabilidade e processo de contra-ordenação, ficando para proposta de lei, a elaborar, os tipos de crimes e contra-ordenações fiscais e aduaneiros, sanções e regras de procedimento e de processo, em obediência aos princípios gerais contidos na Constituição e na lei geral tributária, com a tipificação e estabilização das modalidades de crimes e contra-ordenações com relevo em matéria tributária;
31) Estabelecer que as infracções tributárias podem ser punidas a título de dolo ou negligência e que as infracções tributárias negligentes só podem ser punidas nos casos expressamente previstos na norma que ao caso for aplicável;
32) Prever que os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparáveis são responsáveis subsidiários pelas coimas aplicadas àquelas entidades referentes às infracções praticadas no decurso do seu mandato, e que este tipo de responsabilidade subsidiária depende da verificação cumulativa dos requisitos de insuficiência do património das pessoas colectivas ou entes fiscalmente equiparáveis e que essa insuficiência deve resultar directamente dos actos ou omissões praticados com culpa pelos administradores ou gerentes daquelas entidades, sendo esta responsabilidade subsidiária solidária se forem várias as pessoas a praticar os actos ou omissões culposos de que resulte a insuficiência de património das entidades em causa, podendo a lei, igualmente, estabelecer regras de responsabilidade solidária nos casos em que tenha havido colaboração dolosa na prática de qualquer infracção;
33) Estabelecer que as pessoas colectivas e equiparadas são responsáveis pelas contra-ordenações fiscais quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo, sendo a responsabilidade da pessoa colectiva excluída quando o agente da infracção tiver comprovadamente actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito e referir que a responsabilidade das entidades referidas pode não excluir a responsabilidade individual dos respectivos agentes, quando se trate de contra-ordenações dolosas e tal resulte directamente da norma aplicável;
34) Estabelecer que, para efeitos das sanções aplicáveis, as contra-ordenações fiscais podem ser qualificadas como simples ou graves, devendo ser consideradas contra-ordenações fiscais graves as que sejam puníveis com coimas superiores a um determinado limite, sendo simplesmente estas as que podem ser sancionadas a título principal e acessório;
35) Prever a aplicabilidade, como sanção contra-ordenacional acessória, para além das sanções acessórias previstas no regime geral, da suspensão de benefícios fiscais ou inibição de os obter, podendo ser cumulativamente aplicadas nos casos de infracção fiscal grave e desde que a coima seja superior a um determinado limite;
36) Estabelecer o princípio geral de aplicação das sanções acessórias previstas segundo o qual as mesmas só podem recair sobre atribuições patrimoniais concedidas ao infractor que sejam directamente relacionadas com os deveres fiscais cuja violação foi punida, sobre arrematações e concursos relativos a actividade em que teve lugar a violação dos deveres tributários como tal punidos e sobre incentivos concedidos pelo Estado;
37) Estabelecer que, sem prejuízo dos limites máximos, a determinação da medida da coima deverá obedecer aos requisitos da aferição objectiva da gravidade da infracção; da graduação da culpa do agente, a apreciação da situação económica do agente, devendo ter em conta o benefício económico que o agente retirou da prática da infracção, tendo, porém, em consideração o princípio da proporcionalidade;
38) Estabelecer que pode não haver lugar a responsabilidade por contra-ordenação e não ser, em consequência, aplicada qualquer coima desde que a prática da infracção não ocasione prejuízo efectivo à Fazenda Nacional, se mostre regularizada a falta cometida, ou se possa claramente considerar que a falta foi de carácter puramente acidental e simples. Poderão estabelecer-se outras circunstâncias de afastamento excepcional de coimas desde que esta medida se mostre absolutamente necessária a finalidades públicas de carácter conjuntural;
39) Prever, em conformidade com a relação de subsidiariedade entre o direito de mera ordenação social e o direito penal, casos de dispensa da coima;
40) Prever a existência de uma comissão de infracções tributárias, com funções de sancionamento de contra-ordenações graves e de uniformização dos critérios utilizados na aplicação de sanções contra-ordenacionais;
41) Prever expressamente a subsistência da dívida de imposto mesmo tendo sido cumpridas integralmente as sanções principais e acessórias das contra-ordenações fiscais;
42) Estabelecer o prazo geral de cinco anos de prescrição do procedimento por infracções tributárias, bem como da prescrição das sanções nele aplicadas.
Dos normativos referidos não consta expressamente autorização para o Governo regular a competência dos tribunais. Mas nem por isso assiste razão ao recorrente.
De facto, embora a Constituição prescreva que a organização e competência dos tribunais constitui reserva relativa da Assembleia da República, a verdade é que o n.º 5 do artigo 63.º da LGT não está a atribuir ex novo uma competência específica aos tribunais judiciais. Senão vejamos. A regra, nos termos do artigo 18.º, n.º1 da Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro e artigo 66.º do CPC é a de que são da competência desses tribunais as causas que não seja atribuídas a outra ordem judicial, pertencendo assim a estes tribunais a chamada competência residual. Ora, o n.º 5 do artigo 63.º diz respeito precisamente a uma matéria que cai no âmbito dessa competência residual.
E assim é porque, contrariamente ao que o recorrente invoca, o suprimento de consentimento para levantamento do sigilo bancário não constitui verdadeiramente um litígio fiscal. Uma coisa é a relação jurídica tributária que o recorrente tem com o Estado; outra o pedido de autorização judicial formulado para aceder à sua situação bancária. Ora, este último foi efectuado no âmbito de um processo de jurisdição voluntária de suprimento do consentimento recusado, nos termos dos artigos 1409.º e ss. e 1425.º e ss. do CPC. O litígio aqui concretamente em causa diz respeito não às obrigações ficais do recorrente em si, mas sim ao direito à protecção e salvaguarda do sigilo bancário. Assim, estarão em causa mais propriamente questões respeitantes aos direitos de personalidade do visado, que cairão no âmbito de competência residual dos tribunais judiciais.
No mesmo sentido se pronunciou, de resto, o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 602/2005:
“De facto, não nos situamos ainda numa situação em que se depara a existência de um litígio emergente de uma relação jurídico-fiscal.
A norma em apreço cura de um dos princípios do procedimento tributário – o da inspecção – com vista, como no caso sucedeu, a apurar a situação tributária do contribuinte (uma dada empresa e o seu representante). Nessa fase, ainda não está, sequer, determinada qual seja essa situação e qual a projecção que poderá ter na determinação da matéria sobre a qual virá a incidir a relação jurídico-tributária.
Pode, pois, dizer-se que o suprimento de autorização previsto ainda se situa a montante do estabelecimento daquela relação e, por isso, não será convocável o artigo 212º da Constituição (indicada versão), já que a referida relação ainda se não encontra desenhada e, consequente e logicamente, ainda não surgiu qualquer litígio que eventualmente reclame, por via daquele artigo, a intervenção dos tribunais fiscais.
Se conflito existe na fase em presença, tem ele a ver com possíveis direitos, liberdades ou garantias pessoais, conflito esse para cuja resolução são competentes, em regra, os tribunais judiciais.
Não procede, pois o vício que, repete-se, parece ser caracterizado pelo recorrente como de inconstitucionalidade orgânica, por falta de autorização legislativa para cometer aos tribunais judiciais a competência para suprimento da autorização para consulta de elementos abrangidos pelo sigilo bancário”.
Não dizendo respeito a litígio fiscal propriamente dito, mas sim, mais especificamente, a matéria de direitos, liberdades e garantias pessoais, não se pode considerar que a referida norma tenha atribuído uma competência inovatória aos tribunais judiciais, limitando-se apenas a confirmar a competência que aos mesmos já caberia por força da sua vocação de tribunais de competência residual. Assim, o Governo não invadiu a competência reservada à Assembleia da República pela alínea p) do n.º1 do artigo 165.º da CRP.
8.2. Invoca ainda o recorrente que a competência dos tribunais judiciais para apreciar a matéria em causa violaria ainda o artigo 212.º da Constituição, que consagra a existência de competência própria dos tribunais administrativos e fiscais, “já que em causa estão em causa matérias intrinsecamente relacionadas com a relação jurídico-fiscal do contribuinte com a Administração tributária, pelo que a competência para a sua apreciação e decisão pertencia exclusivamente aos Tribunais Administrativos e Fiscais, conforme resulta directamente do art. 212.º da CRP”.
Tratar-se-ia aqui, contrariamente ao ponto anterior, não de uma questão de inconstitucionalidade orgânica, mas sim de inconstitucionalidade material. Ora, também aqui não assiste razão ao recorrente. Desde logo, não é líquido que a Constituição prescreva que as questões emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais só possam ser apreciadas pelos tribunais administrativos e fiscais. De facto, o Tribunal Constitucional tem negado a existência de um princípio de reserva absoluta de competência dos tribunais administrativos para dirimir litígios administrativos (assim, os Acórdãos n.º 458/99, 550/2000, 284/03, disponíveis in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Como refere Jorge Miranda e Rui Medeiros, “o legislador dispõe, assim, de uma certa margem de liberdade de conformação, no respeito pelo núcleo essencial caracterizador do âmbito material de cada uma das jurisdições, pelo que pode proceder à atribuição pontual a uma das jurisdições do poder de dirimir litígios que, na ausência de tal determinação, corresponderiam à outra jurisdição” (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, p. 149). O legislador pode, assim, atribuir aos tribunais judiciais o poder para dirimir litígios administrativos ou fiscais, desde que haja um motivo razoável para tal. Assim o demonstra a competências dos tribunais comuns para a resolução dos litígios atinentes a indemnizações devidas por expropriações.
Mesmo que assim não se entenda, há que sublinhar que a tese do recorrente parte do pressuposto – que já atrás se viu errado – de que o n.º 5 do artigo 63.º da LGT diz respeito a um litígio fiscal. Ora, não se podendo qualificar verdadeiramente tal litígio como um litígio fiscal, em nada se abala uma suposta reserva de competência dos tribunais administrativos e fiscais.
9. Em segundo lugar, invoca o recorrente que a referida norma padece de uma outra inconstitucionalidade, também orgânica, já que a lei n.º 41/98, de 4 de Agosto não havia autorizado o Governo a regulamentar os termos em que o levantamento do sigilo bancário dos contribuintes podia ser autorizado, conforme seria imposto pelo artigo 165.º, n.º1, alíneas b), i) e s) da CRP. Por esse efeito, seriam também violados os artigos 26.º, 103.º, n.º2 e 212.º da CRP.
9.1. Também aqui não assiste razão ao recorrente.
Desde logo, da análise dos artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 41/98, de 4 de Agosto pode considerar-se que a matéria relativa à quebra do sigilo bancário se encontrava incluída na referida autorização legislativa. De facto, os objectivos referidos na lei de luta contra a evasão fiscal e a prossecução do interesse público, bem como o desenvolvimento dos princípios da igualdade, da imparcialidade, e da cooperação dos contribuintes pode implicar a eventual quebra do sigilo bancário quando a descoberta da verdade material das situações tributárias dos contribuintes inspeccionados imponha a consulta de elementos bancários e essas consultas não forem autorizadas pelos contribuintes. Assim se pronunciou, de resto, o Tribunal Constitucional no já citado Acórdão n.º 602/2005:
'(…) poderia sustentar-se que dos acima transcritos números do artº 2º da Lei nº 41/98 sempre resultaria que o legislador parlamentar previu que na lei geral tributária editanda pelo Governo se haveriam de gizar procedimentos de onde resultasse o apuramento da real situação tributária do contribuinte, o combate à simulação tributária e à evasão fiscal, a prossecução do interesse público e da igualdade equitativa nos encargos tributários e ao estabelecimento do princípio do inquisitório; e, desta sorte, não poderia deixar de ser cogitada por aquele legislador, em face da indesmentível dificuldade de se obter uma visão da realidade tributária sem o conhecimento dos dados resultantes das operações bancárias dos contribuintes, a possibilidade de, no diploma credenciado, entre os vários procedimentos a adoptar, se contarem os adequados à aquisição daquele conhecimento que, em caso de recusa do visado, só seriam cognoscíveis por determinação judicial”.
9.2. Mesmo que assim não se entenda, ainda assim não se concluiria pela inconstitucionalidade orgânica da norma impugnada. De facto, a LGT, aprovada pelo Decreto-lei n.º 398/98, veio a ser revista pela Lei n.º 30-G/2000 de 29 de Dezembro. Assim, a LGT passou a fazer parte integrante dessa mesma Lei. As normas porventura organicamente inconstitucionais que da LGT constassem teriam assim sido confirmadas – e ratificadas – pela Assembleia da República, deixando, assim, de poder ser invocada tal inconstitucionalidade. De contrário, poderia ter-se por inconstitucional por falta de autorização legislativa da Assembleia da República determinado preceito de um diploma integrante de uma Lei da própria Assembleia da República.
Assim o afirmou já o Tribunal Constitucional, entre outros, no Acórdão n.º 368/2002 (publicado no DR IIª Série, de 25 de Outubro de 2002):
“O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre os efeitos da aprovação de uma lei de emendas
(…)
Fê-lo nos Acórdãos n.ºs 415/89 e 786/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º vol., tomo I, pág. 507, e 34.º vol., pág. 23, respectivamente.
No primeiro, depois de se citar as diversas doutrinas defendidas sobre o estatuto da ratificação de decretos-leis (na versão originária da Constituição) na perspectiva do efeito da ratificação expressa de decretos-leis organicamente inconstitucionais por invasão governamental das matérias de exclusiva competência da Assembleia da República (Rui Machete, “Ratificação de decretos-leis organicamente inconstitucionais”, in Estudos sobre a Constituição, vol. I, pp. 281 e segs.; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 1980, pp. 347/348; Jorge Miranda, “A ratificação no direito constitucional português”, in Estudos sobre a Constituição, vol. III, pp. 547 e segs.; Luís Nunes de Almeida, “O problema da ratificação parlamentar de decretos-leis organicamente inconstitucionais”, in Estudos sobre a Constituição, vol. III, pp. 619 e segs.), bem como a jurisprudência produzida quer pela Comissão Constitucional (Parecer n.º 7/79, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 7.º, p. 308) quer pelo Tribunal Constitucional (Acórdãos n.ºs 174/87 e 266/87 in Diário da República, II Série, de 14 de Julho de 1987, e I Série, de 28 de Agosto de 1987, respectivamente) e de referidas as profundas alterações introduzidas nos artigos 172.º e 165.º, alínea c), da Constituição, com a revisão constitucional de 1982 – designadamente o facto de ter deixado de existir um acto positivo de ratificação, pois apenas se passou a prever a recusa de ratificação e a alteração do decreto-lei – dando lugar a uma orientação doutrinal dominante no sentido da não convalidação de decretos-leis organicamente inconstitucionais (Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4.ª ed., p. 654; Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, pp. 231/232; António Nadais, António Vitorino e Vitalino Canas, Constituição da República Portuguesa, p. 203; Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 222 e Jorge Simão, Da ratificação dos Decretos-Leis, p. 32), escreveu-se:
“Não se afigura indispensável para a solução do caso dos autos resolver expressamente questões como a de saber se, face ao texto constitucional saído da revisão de 1982, ainda se pode falar de ratificação expressa, ou, até, se no caso de ser aprovada uma lei de alteração ao decreto-lei ratificando, tal lei tem como efeito, genericamente, inviabilizar que, para o futuro possa ser invocada a eventual inconstitucionalidade orgânica de qualquer das suas normas.
Na verdade, ainda que se admita que a figura da ratificação expressa deixou de ter assento constitucional – como parece resultar do que se escreveu no citado Acórdão n.º 266/87 – e que a mera aprovação de uma lei de alterações, na sequência de um processo desencadeado ao abrigo do artigo 172.º da Constituição, não pode ter como efeito impedir a invocação, a partir da entrada em vigor dessa lei, de eventuais inconstitucionalidades orgânicas que afectassem originariamente normas do decreto-lei ratificando, a questão não fica inteiramente resolvida para todos os casos.
Com efeito, sempre será necessário ressalvar, pelo menos, a hipótese de a lei de alterações reproduzir as normas organicamente inconstitucionais do decreto-lei submetido à sua apreciação. Em tal caso, é inegável que a Assembleia da República assume ou adopta tais normas como suas ao mantê-las inalteradas de forma expressa e inequívoca. E, assim sendo, tais normas não podem mais ser arguidas de organicamente inconstitucionais, até porque se verifica, quanto a elas, uma novação da respectiva fonte».
(…)
“Da jurisprudência transcrita – que se não vê razão para inflectir e aqui se reitera – retira-se que, tendo em conta “a função de controlo parlamentar da decisão legislativa”, a aprovação de uma lei de emendas, ao abrigo do antigo artigo 172.º da Constituição, tem como efeito a ininvocabilidade futura da inconstitucionalidade orgânica de, pelo menos, as seguintes normas constantes do decreto-lei alterado por essa mesma lei de emendas:
a) As normas reproduzidas na lei parlamentar;
b) As normas que a Assembleia da República não pode ter deixado de querer manter inalteradas, porquanto constituem um pressuposto logicamente necessário e indispensável de todas as restantes normas contidas no decreto-lei originário e na própria lei de alteração;
c) As normas que, durante o especial processo legislativo parlamentar, foram objecto de propostas de alteração rejeitadas.
Ora, no que toca à norma em análise, há que ter presente que a Lei n.º 30-G/2000 de 29 de Dezembro revogou todo o título V da LGT e alterou o artigo 63º. O n.º 5 do artigo 63º não foi, porém, alterado, tendo sido substituído por ponteado. Ora, os números não alterados da referida norma devem ser tidos como confirmados e adoptados pela Assembleia da República.
Assim, se alguma inconstitucionalidade orgânica existia em relação a qualquer dos preceitos do Decreto-lei n.º 398/98 que não foram alterados, tal inconstitucionalidade desapareceu com a confirmação dos mesmos pela Assembleia da República.
Foi, esse, de resto, o juízo do Tribunal Constitucional no já referido Acórdão n.º 602/2005:
“depois da entrada em vigor da Lei nº 30-G/2000 – o eventual vício de inconstitucionalidade orgânica de que padeceria se terá de ter como ultrapassado.
Na verdade, a Assembleia da República, ao editar aquela Lei, não só alterou a redacção dos próprios números 2 e 4, alínea b) do artº 63º da Lei Geral Tributária, como lhe aditou os números 6 e 7, indubitavelmente ligados ao procedimento de suprimento judicial de autorização do contribuinte, como ainda introduziu o artº 63º-B.
Isto vale por dizer, sem que dúvidas a esse respeito se suscitem, que assumiu o competente órgão legislativo – o Parlamento – como válido aquele procedimento, pois manteve inalterado o nº 5 do aludido artº 63º (quando, com as alterações que em tal artigo introduziu, se entendesse que esse preceito se não justificava, bem o poderia alterar), o que revela, de forma inequívoca, uma intenção de novar a fonte legislativa que o consagrou.
Como se referiu no Acórdão deste Tribunal nº 321/2004 (in Diário da República, II Série, de 20 de Julho de 2004) se a lei de alteração e um decreto-lei vier a reproduzir normas organicamente inconstitucionais, “é inegável que a Assembleia da República assume ou adopta tais normas como suas ao mantê-las inalteradas de forma expressa e inequívoca. E, assim sendo, tais normas não podem mais ser arguidas de organicamente inconstitucionais, até porque se verifica, quanto a elas, uma novação da respectiva fonte”.
A doutrina extraível daquele aresto é aplicável ao caso agora em apreço, pois que, como resulta do seu próprio texto, no artº 13º da Lei nº 30-G/2000, que determinou, por entre outras, alteração ao artigo 63º da Lei Geral Tributária, consignou que este passaria a ter a seguinte redacção: –
Artigo 63.º
Inspecção
1 – ………………………………………………………………………………
2 – O acesso à informação protegida pelo sigilo profissional, bancário ou qualquer outro dever de sigilo legalmente regulado depende de autorização judicial, nos termos da legislação aplicável, excepto nos casos em que a lei admite a derrogação do dever de sigilo bancário pela administração tributária sem dependência daquela autorização.
3 – …………………………………………………………………………….
4 – …………………………………………………………………………….
a) ………………………………………………………………………………
b) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional, bancário ou qualquer outro dever de sigilo legalmente regulado, salvos os casos de consentimento do titular ou de derrogação do dever de sigilo bancário pela administração tributária legalmente admitidos;
c) ………………………………………………………………………………
d) ………………………………………………………………………………
5 – ………………………………………………………………………………
6 – A notificação das instituições de crédito e sociedades financeiras, para efeitos de permitirem o acesso elementos cobertos pelo sigilo bancário, nos casos em que exista a possibilidade legal de a administração tributária exigir a sua derrogação, deve ser instruído com os seguintes elementos:
a) Nos casos de acesso directo em que não é facultado ao contribuinte o direito a recurso com efeito suspensivo, cópia da notificação que lhe foi dirigida para o efeito de assegurar a sua audição prévia;
b) Nos casos de acesso directo em que o contribuinte disponha do direito a recurso com efeito suspensivo, cópia da notificação referida na alínea anterior e certidão emitida pelo director-geral dos Impostos ou pelo director-geral das Alfândegas e Impostos Especiais sobre o Consumo que ateste que o contribuinte não interpôs recurso no prazo legal;
c) Nos casos em que o contribuinte tenha recorrido ao tribunal com efeito suspensivo a ainda nos casos de acesso aos documentos relativos a familiares ou a terceiros, certidão da decisão judicial transitada em julgado ou pendente de recurso com efeito devolutivo.
7. As instituições de crédito e sociedades financeiras devem cumprir as obrigações relativas ao acesso a elementos cobertos pelo sigilo bancário nos termos e prazos previstos na legislação que regula o procedimento de inspecção tributária.
Vale isto por dizer que o órgão parlamentar, em face da forma como deu a nova redacção ao artº 63º, de forma inequívoca, «fez seu» (ou seja, assumiu como manutenção inalterada), no que agora importa, o nº 5, que, por isso, novou como vontade legislativa.
O raciocínio agora efectuado não se ancora, pois, na mera republicação da Lei Geral Tributária (a que o recorrente alude, mas visando a Lei nº 15/2005)”.
Esta mesma orientação foi seguida no também já citado Acórdão n.º 675/2006, que confirmou que o teor da norma impugnada foi expressamente recebido pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, “tendo-se verificado, assim, uma novação da respectiva fonte”.
Termos em que se considera que o n.º 5 do artigo 63.º da LGT, ao regulamentar os termos em que o levantamento do sigilo bancário dos contribuintes pode ser autorizado, não padece de inconstitucionalidade orgânica.
9.3. Invoca por fim o recorrente, embora sem o justificar cabalmente, que a referida norma, ao regulamentar os termos em que o levantamento do sigilo bancário dos contribuintes pode ser autorizado, viola ainda os artigos 26.º e 103.º da CRP. Ora, também aqui improcedem as suas alegações.
Desde logo, não se compreende em que dimensão – nem o recorrente logra explicar – é que o artigo 103.º da Constituição, que consagra os princípios gerais do sistema fiscal, é posto em causa por uma norma que visa regular a forma de suprimento do consentimento do contribuinte para levantamento do sigilo bancário.
Por outro lado, também a invocação de violação do artigo 26.º se mostra imprestável no presente caso. Desde logo, porque o n.º 5 do artigo 63.º tem uma dimensão puramente adjectiva, visando apenas regular a forma processual idónea para a Administração Fiscal obter o acesso aos dados cobertos pelo sigilo em caso de recusa de consentimento por parte do contribuinte. A norma em causa não diz respeito ao acesso em si à informação protegida pelo sigilo bancário pelos órgãos competentes da Administração Fiscal – caso em que se poderia discutir a relevância do direito à reserva pela vida privada. Sobre essa matéria regem o n.º 2 do artigo 63.º da LGT ou o artigo 63.º-B da mesma lei, que confere à Administração tributária o poder de aceder directamente aos documentos bancários nas situações de recusa da sua exibição ou de autorização para a sua consulta – normas que não constituem o objecto do presente recurso.
Mas ainda assim, sempre se dirá, com o Acórdão n.º 602/2005:
“(…) no tocante a este problema, de um primeiro passo, hipotiza-se que a matéria de sigilo bancário, no seu reflexo de apuramento da realidade tributária dos contribuintes (e não olvidando que a obtenção de dados por parte da administração fiscal também está coberta pelo dever de reserva), possa ser perspectivada como sendo respeitante a direitos, liberdades ou garantias, na medida em que, como tem sido sustentado por alguma doutrina, a situação económica dos cidadãos espelhada nas respectivas contas bancárias fará parte do âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada, constituindo o segredo bancário um corolário dessa reserva, por constituir uma súmula do relacionamento entre o banqueiro e o seu cliente e respectiva conta, através da qual, em geral, são processados dados de onde se pode retirar boa parte do giro económico do particular que, muitas vezes, reflecte dados relacionados com a sua vida privada [cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, pp. 181 e 182, ao analisarem em que consiste e como se deve analisar o direito à intimidade da vida privada; J. M. Serrano Alberca, Comentários a la Constituicion, Madrid, Civitas, 1985, p.353; Parecer n.º 138/83 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 342, p. 161; Alberto Luís, Direito Bancário, Coimbra, 1985; e, porventura com uma posição um tanto divergente, Saldanha Sanches, Segredo Bancário, segredo fiscal: uma perspectiva funcional, in Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira, Centro de Estudos Judiciários, 25 anos, 2004, p. 57 e seguintes, para quem, porque existe uma “proibição que incide sobre os membros da Administração fiscal de dar conhecimento a terceiros da situação fiscal (e por isso patrimonial)”, o fundamento do segredo bancário, para os efeitos em causa, residiria na esfera da privacidade e não da intimidade da vida privada, pelo que não estaríamos “e isto deve ser afirmado com muita clareza, perante uma norma destinada a tutelar a nossa intimidade: pela razão pura e simples que num Estado-de-Direito a devassa da intimidade (buscas domiciliárias, escutas telefónicas, filmagens ou gravações que registem todos os movimentos de uma certa pessoa) só pode ter lugar para investigação de crimes graves e mediante a devida decisão judicial (…). Se o segredo fiscal tutela a intimidade, então parece que os cidadãos se encontram obrigados a entregar periodicamente à Administração Fiscal e sempre que esta o exija – mediante qualquer acto administrativo tributário que pode ser produzido por qualquer funcionário – dados referentes à sua intimidade. Dados referentes à intimidade dos cidadãos que estes estariam obrigados a facultar à Administração fiscal e cujo conhecimento deveria ser confinado aos serviços de finanças e aos inúmeros funcionários da Administração fiscal mas que estes não poderiam – fraco consolo – partilhar com mais ninguém”, e que o “controlo da conta bancária como poder administrativo que constitui uma restrição ao direito do cidadão de manter longe de vistas e curiosidades externas toda a sua situação pessoal (e qualquer restrição a este direito exige uma específica legitimação) é uma decisão secundária. Decisão secundária no preciso sentido de ser resultado de uma outra: o dever das pessoas singulares de declarar anualmente os seus rendimentos e a obrigação das pessoas colectivas de franquear permanentemente os seus registos comerciais ao controlo da Administração fiscal.”]
De todo o modo, como este Tribunal já teve ocasião de discretear, tal como o sigilo profissional, a reserva do sigilo bancário não tem carácter absoluto, antes se admitindo excepções em situações em que avultam valores e interesses que devem ser reputados como relevantes como, verbi gratia, a salvaguarda dos interesses públicos ou colectivos (cfr. Acórdão n.º 278/95, publicado na II Série do Diário da República, de 28 de Julho de 1995, onde se disse que “o segredo bancário não é um direito absoluto, antes pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Na verdade, a tutela de certos valores constitucionalmente protegidos pode tornar necessário, em certos casos, o acesso aos dados e informações que os bancos possuem relativamente às suas relações com os clientes. Assim sucede com os artigos 135.º, 181.º e 182.º do actual Código de Processo Penal, os quais procuram consagrar uma articulação ponderada e harmoniosa do sigilo bancário com o interesse constitucionalmente protegido da investigação criminal, reservando ao juiz a competência para ordenar apreensões e exames em estabelecimentos bancários”.
Sendo o controlo administrativo das movimentações bancárias dos contribuintes, como método de avaliação da sua situação fiscal, uma realidade recente (ou, como diz Saldanha Sanches, ob. cit., que “são esses dados contidos nas contas bancárias e nos seus movimentos (ou na aquisição de um bem sujeito a registo como um prédio ou um automóvel) que permitem o controlo da declaração tributária do sujeito passivo e que constituem a condição sine qua non de um controlo eficaz, na fase actual da evolução da relação jurídico-tributária”), e postando-se como necessário – e, quantas vezes para tanto como imprescindível – o conhecimento das respectivas operações, não se poderá deixar de concluir que se torna justificada, para proteger o bem constitucionalmente protegido da distribuição equitativa da contribuição para os gastos públicos e do dever fundamental de pagar os impostos, a procura da consagração de uma articulação ponderada e harmoniosa da reserva (se não da intimidade da vida privada, ao menos da reserva de uma parte do acervo patrimonial) acarretada pelo sigilo bancário e dos interesses decorrentes dos citados dever e direito”.
Assim, mesmo que se considere que a presente norma interfere com o direito à reserva da vida privada, protegido pelo artigo 26.º da CRP, ainda assim se deve considerar existir justificação bastante para a limitação do referido direito em nome dos interesses públicos prosseguidos, tais como a distribuição equitativa da contribuição para os gastos públicos e o dever fundamental de pagar impostos.
III. Decisão
Em suma, o Tribunal decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta
Lisboa, 24 de Outubro de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Rui Manuel Moura Ramos.