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Processo n.º 509/11
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos termos do número 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), decidiu sumariamente o relator, por aplicação do Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 216/2010, não julgar inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, quando interpretada no sentido de que abrange toda e qualquer acção da pessoa colectiva com fins lucrativos, mesmo aquelas que não tenham a ver com o agir societário ou com qualquer relação ou transacção comercial (decisão sumária n.º 449/2011).
A recorrida A., Lda. reclamou para a conferência da decisão sumária, invocando, em conclusão, que esta viola o artigo 6.º, n.º 1 (direito a um processo equitativo), e 14.º (proibição da discriminação) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e os artigos 8.º, 13.º e 20.º da CRP, pois que, na leitura jurisprudencial do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tais normas convencionais aplicam-se a pessoas singulares e colectivas, pelo que idêntico alcance interpretativo devem ter as normas constitucionais que consagram idênticos direitos e princípios, atento o primado da Convenção sobre o direito nacional e sua aplicabilidade directa.
O Ministério Pública pugna, em resposta, pela manutenção do julgado pois que nada se invocou em fundamento da reclamação que comprometa a bondade do juízo de não inconstitucionalidade nele formulado.
2. Cumpre apreciar e decidir.
As invocadas normas dos artigos 6.º e 14.º da Convenção Europeia consagram, respectivamente, o direito a um processo equitativo e o princípio da proibição de discriminação, nos seguintes termos:
«Artigo 6.º
(…)
Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.»
Artigo 14.º
(…)
O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurada sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação».
Ora, contrariamente ao invocado pela reclamante, não se afigura que a modelação convencional dos correspondentes direitos e princípios fundamentais, em particular no que respeita ao direito de acesso ao direito e aos tribunais, lhes confira diferente ou mais exigente conteúdo axiológico do que o que resulta dos termos em que estão constitucionalmente consagrados.
Com efeito, a afirmação de princípio de que toda a pessoa tem direito a um tribunal, independente e imparcial, «estabelecido pela lei», constante do invocado artigo 6.º da CEDH, assenta e projecta o seu âmbito primordial de acção tutelar na dignidade da pessoa humana, sendo legítimo que a lei, na margem de conformação normativa que lhe é expressamente reconhecida pela Convenção, regule a essa luz os termos e pressupostos de que depende a concessão de protecção jurídica às pessoas colectivas.
E foi precisamente no conforto dessa ideia essencial que o Acórdão n.º 216/2010, para cujas razões remete a decisão sumária ora em reclamação, sublinhou:
«(…) a verdade é que o artigo 20.º nºs. 1 e 2 da Constituição se inscreve no âmbito dos direitos fundamentais irradiantes do valor que é conferido à dignidade da pessoa humana. O acesso ao direito e à justiça é, aliás, um direito consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o que levou o Conselho da Europa a aprovar a Resolução e a Recomendação (n.º (78)8 e n.º (93)1, respectivamente) no sentido de assegurar o acesso efectivo ao direito e à justiça das pessoas em situação de “grande pobreza”.
«Ora, como é sabido, os direitos fundamentais são primordialmente direitos das pessoas singulares, não sendo legítimo equiparar, a estas, as pessoas colectivas, como titulares de tais direitos.” (…)
«O direito de acesso aos tribunais como direito fundamental radica essencialmente na dignidade humana como princípio estruturante da República (artigo 1.º da Constituição), reconhecido no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e igualmente acolhido no artigo 6.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Não são comparáveis as situações concessão de apoio a pessoas singulares e colectivas, pelo que a promoção das condições positivas de acesso aos tribunais nos casos de insuficiência económica não tem o mesmo significado quanto a pessoas singulares e quanto a pessoas colectivas com fim lucrativo, que devem, por imposição legal, integrar na sua actividade económica ao custos com a litigância judiciária que desenvolvem, assim assegurando a protecção dos interesses patrimoniais da universalidade dos credores e do próprio interesse geral no desenvolvimento saudável da economia.»
Por outro lado, da vasta jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem citada pelo reclamante, de que o Tribunal Constitucional estava ciente aquando da prolação em plenário do referido Acórdão n.º 216/2010, não resulta consagrado qualquer entendimento com atinência específica à questão de inconstitucionalidade nele resolvida que impusesse diferente conclusão decisória.
Aliás, e como sublinhou o Ministério Público na sua resposta, já no Acórdão n.º 279/09 se destacou a severa crítica que da doutrina mereceu a solução legal pretérita de conceder o benefício de apoio judiciário às pessoas colectivas com fim lucrativo, por não se vislumbrar «no Direito Comparado de âmbito Europeu um regime de protecção jurídico tão favorável às pessoas colectivas com fins lucrativos».
Assim, não resultando nem das normas da Convenção Europeia dos Direitos do Homem invocadas pela reclamante, nem da leitura jurisprudencial que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem delas tem feito, qualquer solução normativa que, em matéria de protecção jurídica das pessoas colectivas, imponha solução inversa àquela que, no seu conhecimento, foi consagrada no Acórdão n.º 216/2010, impõe-se, sem necessidade de mais considerações, o indeferimento da presente reclamação.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 16 de Novembro de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.