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Processo n.º 525/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso obrigatório de constitucionalidade, da decisão daquele Tribunal que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma do artigo 112.º da Lei Geral Tributária (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, adiante designada LGT), na parte em que “presume a culpa dos gerentes e administradores no não pagamento das coimas”.
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«1. O presente recurso foi interposto, pelo Ministério Público, como recurso obrigatório, “nos termos do estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 280.º, n.º 1, al. a) e nº 3 da C.R.P., 70.º, nº 1, al. a) e 72º, nº 3” da LOFTC (fls. 143).
2. Vem impugnada a douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, de 9 de Março de 2009, proferida nos autos de “Oposição”, Proc. n.º 885/06.7BEALM, em que é oponente A. e exequente a Fazenda Pública (Serviço de Finanças do Barreiro) (fls. 112 a 118).
3. Objecto do recurso é a norma formulada no art. 112.º, n.º 1, al. a), da LGT, e seus motivos a alegada violação do “princípio constitucional da intransmissibilidade das penas, enunciado no art. 30º, n.º 3, da CRP” e, bem assim, do “princípio da presunção de inocência previsto no art. 32.º, n.º 2, da CRP”.
4. A norma formulada no art. 112.º, n.º 1, al. a), da LGT não infringe a proibição de insusceptibilidade de “transmissão” da “responsabilidade penal” consagrada no art. 30.º, n.º 3, da CRP, pois que não é caso nem de “responsabilidade penal”, nem de “transmissão de penas”.
5. Por uma parte, a norma em causa estabelece “uma forma de responsabilidade civil subsidiária”.
6. Mesmo a entender que tal norma consagra “responsabilidade por contra-ordenação”, também não aqui haverá violação da norma constitucional pois que o âmbito de protecção do art. 30.º, n.º 3, da CRP está circunscrito à “responsabilidade penal”.
7. Por outra parte, a dita a norma institui um mecanismo de “representação” e não já qualquer forma “transmissão” de responsabilidade sancionatória, seja de “coimas” ou, muito menos, de “penas”.
8. Finalmente, mesmo que a norma fiscalizada previsse uma forma de “transmissão de coimas”, nem mesmo assim estaria fulminada de inconstitucionalidade, pois a proibição constitucional da “intransmissibilidade da responsabilidade penal”, em particular das “penas”, como já declarou este Tribunal Constitucional, “não tem de implicar, por analogia ou identidade de razão – que não existe – a intransmissibilidade de uma acusação ou condenação por desrespeito de normas sem ressonância ética, de ordenação administrativa”.
9. Por outra parte, a norma fiscalizada não viola o princípio constitucional da presunção de inocência (CRP, art. 32.º, n.º 2).
10. Pois a previsão da norma em apreço exige como pressuposto da imputação do dever prestar a demonstração positiva pelo credor da existência de culpa do devedor subsidiário, o que é precisamente o oposto da “presunção de culpa”.
11. Admitindo, por cautela e subsidiariamente, que a norma recorrida vem formulada no art. 112.º, n.º 1, al. b), da LGT, sempre dirá que a mesma não infringe a proibição de insusceptibilidade de “transmissão” da “responsabilidade penal” (CRP, art. 30.º, n.º 3), mutatis mutandis pelas razões aduzidas a propósito do alcance da al. a) do mesmo preceito (n.ºs 5 a 8, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos).
12. Quanto ao mais, a letra do preceito em apreço assaca responsabilidade subsidiária aos administradores (lato sensu) pelo pagamento das coimas vencidas no período do seu mandato (1.ª parte), “salvo quando provarem que a falta de pagamento lhes não foi imputável” (2.ª parte).
13. Da formulação legal parece resultar uma presunção de “culpa” (1.ª parte), com a consequente inversão do ónus da prova (2.ª parte)
14. Para quem entenda, como nós, como que a al. b) consagra uma “forma de responsabilidade civil (subsidiária) este regime da presunção de “culpa” com inversão do ónus da prova (CC, art. 344.º) não é constitucionalmente ilegítimo.
15. Já o será, todavia, para quem, diversamente, configurar a responsabilidade subsidiária emergente da al. b) do n.º 1 do art. 112.º da LGT, como sendo “por contra-ordenação”, pois a garantia constitucional de “defesa” nos processos de contra-ordenação envolverá a “presunção de inocência” (CRP, art. 32.º, n.º 10).
Nestes termos, no entender deste Ministério Público, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, assim, revogada a decisão recorrida para ser reformada quanto à questão de constitucionalidade, em conformidade com o juízo de constitucionalidade acabado de formular.»
3. O recorrido não contra-alegou.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II ? Fundamentação
4. Delimitação do objecto do pedido
O quadro decisório que a sentença sob recurso, a respectiva fundamentação e a posterior aclaração nos transmite é tudo menos claro, pois nele detectam-se elementos contraditórios.
Na verdade, a sentença, depois de referir as normas dos artigos 7.º-A do RJIFNA e 8.º do RGIT, sem expressamente aludir às questões de constitucionalidade que elas suscitaram, concentra-se no regime de culpa, fixado no artigo 112.º da LGT, fundamentando o juízo de inconstitucionalidade do seguinte modo:
«No caso da LGT, aplicável ao período entre 1999 e Julho de 2001, muito embora aquele diploma pareça quer[er] considerar presumida a culpa dos gerentes e administradores no não pagamento das coimas (cfr. art. 112.º da LGT) a verdade é que tal interpretação enferma de inconstitucionalidade conforme defendido no Acórdão do STA de 04-02-2009, no recurso n.º 0829/08, in www.dgsi/jsta.pt.»
Acontece que o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo citado nesta escassa fundamentação trata de norma diversa – o artigo 8.º do RGIT, cuja inconstitucionalidade discute – e apenas menciona o artigo 112.º da LGT como obiter dictum.
A imprecisão da sentença recorrida, na parte relativa ao vício de inconstitucionalidade, motivou um pedido de aclaração por parte do representante do Ministério Público junto do tribunal recorrido.
Na resposta a esse pedido de aclaração, o tribunal recorrido começa por reconhecer que o Acórdão citado na sentença não faz “uma referência explícita à situação concreta dos presentes autos”, ainda que tenha a ver com a reversão das coimas, “à qual se aplica o regime jurídico constante do art. 112.º, n.º 1, alínea b) da LGT”. Seguidamente exprime o entendimento de que “a responsabilidade subsidiária em matéria de coimas é materialmente inconstitucional, por ser incompaginável com o princípio constitucional da intransmissibilidade das penas, enunciado no art. 30.º, n.º 3, da CRP”. Por último, lavra-se o juízo de que “enferma também [itálico nosso] de inconstitucionalidade por violação do princípio da presunção de inocência previsto no artigo 32.º, n.º 2 da CRP” [ao que se supõe, este juízo é predicado à única norma referida na aclaração: a do artigo 112.º, n.º 1, alínea b) da LGT].
Em remate destas considerações, o tribunal recorrido manteve, “na íntegra”, a decisão.
Como bem salienta o Ministério Público nas suas alegações, a primeira questão que cumpre resolver, em face destes dados, é a da identificação da norma efectivamente recusada aplicar pela sentença recorrida.
Nesta sentença, para além de inexistir uma recusa expressa de aplicação de uma norma determinada, o juízo de inconstitucionalidade nela emitido, reportado genericamente ao artigo 112.º da LGT, apoia-se num Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que aplicou norma diversa, como vimos.
Além desta incongruência, a fundamentação da sentença não identifica, de forma inequívoca, a que norma do artigo 112.º da LGT respeita o juízo de inconstitucionalidade. Desde logo, fica por saber se a norma recusada aplicar é a da alínea a) do n.º 1 do artigo 112.º da LGT ou a da alínea b) desse mesmo preceito.
Já o despacho de aclaração aponta aparentemente como objecto do juízo de inconstitucionalidade a alínea b) do n.º 1 do artigo 112.º da LGT, na medida em que é esse o único referente normativo indicado. Todavia, o primeiro dos dois fundamentos de inconstitucionalidade aí invocados não tem directamente a ver com o específico regime de prova da culpa constante dessa norma, mas, in radice, com a própria imputação de responsabilidade subsidiária às pessoas físicas nomeadas no corpo do n.º 1 do referido artigo.
A incerteza deste modo suscitada levou a que o representante do Ministério Público junto deste Tribunal, embora se tenha inclinado para considerar que a norma recusada era a da alínea a) do n.º 1 do artigo 112.º, tenha, à cautela, produzido alegações quanto a ambas as normas.
O Tribunal Constitucional não pode, porém, prevalecer-se desse (compreensível, no caso) expediente ou emitir decisões com base em conjecturas sobre qual a norma ou normas que, por vício de inconstitucionalidade, a sentença recorrida recusou aplicar. A impossibilidade de identificar, com um mínimo de certeza, essa(s) norma(s) traduzir-se-á inevitavelmente numa impossibilidade de conhecer do objecto do recurso.
Cremos, todavia, que, não obstante as dificuldades apontadas, é possível, numa ponderação global, chegar a uma conclusão suficientemente segura quanto ao alcance da interpretação tida por inconstitucional.
Note-se que todas as considerações da sentença atinentes ao “caso dos autos” se cingem ao regime probatório. Começando por referir que a Administração Tributária nem sequer alegou a insuficiência do património da sociedade para pagamento das coimas, por culpa dos gerentes ? pelo que, acrescentamos nós, não pode prevalecer-se da alínea a) do n.º 1 do artigo 112.º da LGT ?, acaba por decidir (implicitamente) que não é aplicável a presunção de culpa estabelecida na alínea b), porque a norma enferma de inconstitucionalidade. É sobre esta norma, e apenas sobre ela, que recai o juízo de inconstitucionalidade.
É certo que a presunção de culpa não é uma solução a se stante, inserindo-se num determinado regime de imputação de responsabilidade, como resulta do proémio do n.º 1 do artigo em causa. E, no despacho de aclaração, a inconstitucionalidade é alargada à própria imposição dessa responsabilidade, por violação do n.º 3 do artigo 30.º da CRP, não se circunscrevendo a um ponto específico do seu regime, respeitante ao ónus da prova de um pressuposto de responsabilização.
Mas há que ter presente que o poder jurisdicional do tribunal recorrido se esgotou com a prolação da sentença. O despacho de aclaração, como o nome indica, destina-se a esclarecer qualquer elemento constante da sentença, não a adicionar inovatoriamente um elemento que dela não faça parte.
Ora, nada há na sentença recorrida que permita objectivamente sustentar que nela também foi recusada aplicação à própria sujeição a responsabilidade, em si mesma considerada. A vaga alusão ao Acórdão do STA de 4 de Fevereiro de 2009 é insuficiente, para o efeito. E, de resto, se assim fosse, se tal decisão fosse inferível da sentença, tornava-se incompreensível (por inteiramente desnecessária) a apreciação da constitucionalidade do regime de presunção de culpa. Na verdade, a inconstitucionalidade da responsabilidade subsidiária prejudicaria, como é evidente, a apreciação (sempre subsequente) de um ponto concreto do seu regime.
Em face do exposto, decide-se conhecer do presente recurso, considerando que ele tem por objecto a norma, constante do artigo 112.º, n.º 1, alínea b) da LGT, que faz recair sobre os responsáveis subsidiários o ónus da prova de que a falta de pagamento de multas ou coimas vencidas no período do seu mandato lhes não foi imputável.
5. Apreciação do mérito do recurso
O artigo 112.º da LGT (na redacção do Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro), entretanto revogado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, estabelecia o seguinte:
«Artigo 112.º
Responsabilidade solidária e subsidiária
1 - Os administradores, directores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são responsáveis subsidiários:
a) Pelas multas ou coimas cujo facto constitutivo tenha ocorrido no período do exercício do seu cargo ou vencidas antes do início deste quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas vencidas no período do seu mandato, salvo quando provarem que a falta de pagamento lhes não foi imputável.
2 - A responsabilidade subsidiária prevista neste artigo é solidária se forem várias as pessoas a praticar os actos ou omissões culposos de que resulte a insuficiência do património das entidades em causa.
3 - Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelo pagamento das multas e coimas aplicadas ao agente principal da infracção.»
Como resulta do proémio do preceito, a presunção de culpa aqui questionada insere-se num regime de “responsabilidade subsidiária” dos “administradores, directores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados”.
O Tribunal Constitucional pronunciou-se recentemente sobre idêntico regime de responsabilidade, ainda que constante de norma diversa, no Acórdão n.º 437/2011, de 03.10.2011, que decidiu não julgar inconstitucional o artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), quando interpretado no sentido de que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efectiva pelo mecanismo da reversão da execução fiscal, contra gerentes ou administradores da sociedade devedora.
Chamado a qualificar a “responsabilidade” prevista no artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, o aresto citado concluiu que «a responsabilidade dos gerentes ou administradores consagrada no artigo 8.º, n.º 1 do RGIT é titulada pelo instituto da responsabilidade civil delitual ou aquiliana: aqueles sujeitos são chamados, a título subsidiário, na exacta medida do dano que produziram à Administração Fiscal ao terem impossibilitado, pela sua administração, a realização do pagamento das coimas devidas».
Como é sabido, o regime de responsabilidade do artigo 8.º do RGIT tem como antecedentes os artigos 112.º da LGT, 7.º-A do RJIFNA e 8.º do RJIFA. Pelo que se impõe aplicar mutatis mutandis a jurisprudência fixada, por maioria do Plenário do Tribunal Constitucional, no citado Acórdão n.º 437/2011, da qual se extrai a qualificação da responsabilidade contemplada no artigo 112.º da LGT como responsabilidade civil.
Ora, a previsão de uma presunção de culpa no âmbito da responsabilidade civil contemplada no artigo 112.º, n.º 1, alínea b), da LGT, não pode contender com os princípios materiais do processo criminal vertidos no artigo 32.º da Constituição, designadamente, com a proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido, decorrente do princípio da presunção de inocência (n.º 2 do artigo 32.º). Na responsabilidade civil não estão presentes os valores que justificam essa «dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2007, 519).
III ? Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Não julgar inconstitucional a norma, constante do artigo 112.º, n.º 1, alínea b) da Lei Geral Tributária (na redacção do Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro), que faz recair sobre os responsáveis subsidiários o ónus da prova de que a falta de pagamento de multas ou coimas vencidas no período do seu mandato lhes não foi imputável.
Consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a sentença recorrida ser reformulada em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 31 de Outubro de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.