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Processo n.º 505/2011
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso com os seguintes fundamentos:
2. Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), entende-se não se poder conhecer do objecto do mesmo, sendo caso de proferir decisão sumária, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo diploma.
Importa começar por observar que o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade é deficiente, pois nele não vem expressamente enunciada qual a interpretação dada aos preceitos nele referidos cuja conformidade com a Constituição o requerente pretende ver apreciada, o que seria exigível nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC.
Simplesmente, não é de promover o seu aperfeiçoamento, nos termos do disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 75.º-A da LTC, por, independentemente da inobservância dos requisitos específicos – e supríveis – do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, o recurso ser inadmissível por se não verificarem os pressupostos de admissibilidade do mesmo.
Quando interpostos ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, os recursos de constitucionalidade têm de respeitar um conjunto de pressupostos processuais, sem os quais deles se não poderá tomar conhecimento.
Em primeiro lugar, é necessário que o objecto do recurso seja uma norma (em si mesma ou numa sua interpretação), tal como que tal norma (ou dimensão interpretativa questionada) tenha sido aplicada na decisão recorrida.
Em segundo lugar, torna-se necessário que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, de forma que a intervenção do Tribunal Constitucional se possa fazer, verdadeiramente, em via de recurso.
E, em terceiro lugar, é mister que tenha havido o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
Independentemente de outros possíveis fundamentos de inadmissibilidade do recurso de constitucionalidade – nomeadamente o ter ele como objecto, não uma norma ou interpretação normativa, mas uma decisão judicial, em si mesma considerada (do que decorre a incompetência do Tribunal Constitucional para o seu conhecimento, uma vez que este Tribunal, conforme preceituado nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, apenas aprecia normas ou interpretações normativas) – compulsados os autos, verifica-se que em lugar algum o recorrente suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida em termos de, como dispõe o n.º 2 do artigo 72.º da LTC, este estar obrigado a dela conhecer.
Com efeito, e ao contrário do que afirma o requerente no requerimento de interposição do presente recurso, em lugar algum das Conclusões 16-24 das alegações do recurso por si interposto para o Tribunal a quo se pode considerar ter sido aí suscitada, de modo processualmente adequado, qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Senão vejamos.
Na Conclusão 16 imputa-se à decisão da primeira instância o vício de esta ter violado, por errada interpretação e aplicação, os artigos 185.º do Código Penal e 124.º do Código de Processo Penal. É certo que também aí se refere ter sido violado, por errada interpretação e aplicação, o artigo 32.º, n.º 2 da Constituição. Simplesmente tal afirmação não pode, de todo em todo, considerar-se como satisfazendo o pressuposto processual de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, de uma questão de constitucionalidade normativa. Não pode, pela simples razão de que, ao assim se proceder, se não estar a questionar a validade de uma norma ou de uma dimensão normativa enquanto tal, mas a pretender controverter a correcção da própria decisão judicial em si mesma considerada. Se dúvidas houvesse, a correcção de tal leitura torna-se clara com a parte final da Conclusão 16 em que se pede ao Tribunal de recurso que este proceda à reapreciação da prova e subsequente revogação da sentença. Com isso fica demonstrado que o que aí se pretende controverter é, não uma norma ou dimensão normativa, mas a correcção do juízo sobre a valoração da prova concretamente efectuado na primeira instância.
Ora, segundo jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, “[s]uscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido” (Ac. n.º 269/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Como se afirma no Ac. n.º 367/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, “[a]o questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição”.
Nas Conclusões 17-21 não vem sequer indicado um preceito legal, aí se fazendo considerações sobre a alegada incorrecção do juízo relativa à valoração da prova concretamente efectuado pelo tribunal da primeira instância, sendo manifesto que, ao assim proceder, se não se está a suscitar qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Na Conclusão 22 afirma-se que o tribunal de primeira instância violou os artigos 13.º, 14.º, 15.º e 185.º, todos do Código Penal, não sendo questionada aí qualquer questão de constitucionalidade muito menos uma questão de constitucionalidade normativa.
Já na Conclusão 23 é afirmado que o tribunal de primeira instância terá feito uma interpretação inconstitucional desses preceitos – supõe-se que o então recorrente se está a referir aos que vêm indicados na Conclusão 22 –, invertendo o sentido que está subjacente com base no princípio da presunção de inocência do n.º 2 do artigo 32.º da Constituição “[…] pois, optou, sem prova clara, pela graduação e enquadramento em termos de culpa mais grave de entre os possíveis, isto depois de expressamente admitir [considerações a que o recorrente se refere na Conclusão 14]”. Ora, a delimitação da interpretação normativa dada aos preceitos em questão não contém uma vocação de generalidade e abstracção na enunciação dos critérios normativos que lhe estão subjacentes, autonomizáveis da pura actividade subsuntiva, ligada irremediavelmente a particularidades específicas do caso concreto e, portanto, passíveis de controlo jurídico-constitucional, sendo manifesto que o que o recorrente realmente pretende controverter é, em substância, o próprio juízo concretamente efectuado sobre a graduação da culpa do arguido efectuada pelo tribunal da primeira instância. Porque aí o vício é imputado à própria decisão do tribunal da primeira instância, a afirmação constante da Conclusão 23 não pode, de todo em todo, considerar-se como satisfazendo o pressuposto processual de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, de uma questão de constitucionalidade normativa.
Na Conclusão 24 afirma-se que o tribunal de primeira instância deixou violados uma série de preceitos do Código Penal, do Código Civil e do Código de Processo Civil, e, por via dessa violação, os artigos 202.º, n.º 2 e 203.º da Constituição. A referência feita a estes preceitos da Constituição não pode, de todo em todo, considerar-se como satisfazendo o pressuposto processual de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, de uma questão de constitucionalidade normativa. É que com ela o recorrente está a imputar a violação desses preceitos da Constituição ao próprio tribunal de primeira instância e não a uma norma ou dimensão normativa que houvesse servido de critério para a decisão.
Tanto basta para que se não possa conhecer do presente recurso de constitucionalidade.
2. Notificado dessa decisão, A. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), com os seguintes fundamentos:
A., recorrente nos autos acima identificados, não se conformando com a decisão sumária, douta, proferida pela Exma. Senhora Conselheira Relatora vem dela
Reclamar
Nos termos do nº 3 do artº 78º-A da L.T.C. para a Conferência.
I. Da decisão reclamada:
1. Entendeu o Tribunal Constitucional por via da decisão sumária em crise que o recorrente não cumpriu o pressuposto processual da “suscitação prévia da inconstitucionalidade” de forma adequada.
2. Com efeito, diz a douta Decisão de que se reclama – e na esteira de muitas outras que infelizmente este Digno Tribunal vem fazendo ao invés de tornar mais abrangente o seu acesso por via, por exemplo, de um maior uso do expediente do artº 75º-A, nº 6 – o recorrente imputa ao Tribunal recorrido a violação de preceitos da constituição “tout court” e não a uma norma ou dimensão normativa que houvesse servido de critério para a decisão.
II. Da reclamação:
3. É desta conclusão que o recorrente discorda pois, apesar de admitir que, até por deficiência do escriba que o patrocina, o preenchimento do requisito de admissibilidade do Recurso em causa que o que se questiona – obviamente afectando a decisão da Relação – é precisamente a interpretação feita de normas (a do crime porque foi condenado e as atinentes à culpa) em Oposição à matriz axiológica que decorre dos princípios constitucionais da “liberdade de expressão”, “presunção de inocência”, “in dubio pró réu”, “contraditório” e “independência dos Tribunais”.
4. A exaustão que se reconhece ao Tribunal Constitucional no objectivo de demonstrar a “falta” do recorrente no que toca à necessidade deste suscitar processualmente a questão da constitucionalidade perante o Tribunal não se compreende face ao facto de tal ter sido feito no primeiro momento em que tal foi factualmente e processualmente possível: As Alegações de Recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
5. Ao não se por em causa a constitucionalidade da norma cuja aplicação se reputa inconstitucional pode ser apenas reportada à interpretação que o Tribunal “a quo” faz dessa norma, isto é:
6. O recorrente não está a questionar a validade de uma norma “tout court” mas está a questionar a validade de uma dimensão normativa com que o Tribunal “a quo” enquadrou uma decisão.
Essa “dimensão normativa” era aqui vista na perspectiva da interpretação que o Tribunal fez da norma, essa sim violando-a.
7. Esta consideração surge perfeitamente indicada e identificada quando na conclusão 22 do dito recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa se refere a interpretação substantiva inconstitucional dos artºs 13º, 14º, 15º do Cód. Penal em violação do artº 32º, nº 2 da Constituição.
8. A admissibilidade do presente Recurso, sendo certo e aceite que só a arguição da inconstitucionalidade de normas – que não de decisões judiciais – abre o Recurso para o Tribunal Constitucional, nesse Recurso pode impugnar-se simplesmente uma certa interpretação de determinada norma (ou, o que vale o mesmo, esta última enquanto interpretada num certo sentido ou com uma certa dimensão), pois então não se estará já a arguir (apenas) a inconstitucionalidade duma decisão judicial, mas ainda, verdadeiramente, o seu suporte normativo, a norma que ela aplicou.
9. Mais do que discutir o formalismo processual incito à decisão de que se reclama importa precisar que o recorrente persiste e insiste no interesse em ver apreciado o recurso que interpôs porque entende, verdadeiramente, que a decisão que o condenou e depois foi confirmada na Relação de Lisboa, enferma de vícios de Lei que, em última análise, a tornam inconstitucional pois os Meritíssimos Juízes recorridos (Comarca e Relação) assentaram as suas decisões em interpretações de Lei que são contrárias a princípios (vários) da Constituição e, nessa medida, possíveis de implicar um recurso até este Areópago conformador de constitucionalidade.
10. Ao não admitir esta sindicância pela decisão ora reclamada o recorrente sente-se privado de um direito – o de recurso – por um motivo lateral (formal que não de substância) o que lhe aumenta a sensação de injustiça que, de todo, não deve ser o resultado do recurso tempestivo e de acordo com as regras, aos Tribunais.
Nesta conformidade vem solicitar a Vossas Excelências que, reapreciando a decisão sumária ora reclamada e feita uma melhor apreciação quer dos recurso interpostos quer da própria Lei do Tribunal Constitucional seja o presente Recurso admitido o que representa uma decisão em prol da que se pede e espera
JUSTIÇA.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. Na reclamação apresentada, o reclamante pretende controverter o fundamento oferecido na decisão sumária reclamada para o não conhecimento do recurso de constitucionalidade – o de falta de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, de qualquer questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, tal como é exigido pelo n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
Embora admitindo deficiência na forma como formulou a questão de constitucionalidade nas alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa (ponto 3 da reclamação), o reclamante discorda do entendimento de que aí se imputa a violação de preceitos da Constituição à própria decisão judicial e não a uma norma ou sua dimensão normativa.
Entende o reclamante que se retira dessa peça processual, designadamente da Conclusão 22, que aí se refere a interpretação substantiva inconstitucional dos artigos 13.º, 14.º e 15.º do Código Penal, em violação do artigo 32.º, n.º 2 da Constituição.
Não tem razão o reclamante.
Em lugar algum das alegações do recurso para o Tribunal a quo, o reclamante procedeu à delimitação de uma questão de constitucionalidade em termos normativos, dando-se aqui por integralmente reproduzida a exaustiva análise que é feita na decisão sumária relativamente às passagens dessa peça processual que poderiam suscitar dúvidas. No que especificamente se refere à Conclusão 22, complementada pela Conclusão 23, não é aí suscitada, de modo processualmente adequado – tal como tal requisito, estabelecido no n.º 2 do artigo 72.º da LTC, tem sido entendido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, citada na decisão sumária reclamada –, qualquer questão de constitucionalidade normativa, sendo, aliás, manifesto, como é dito na decisão sumária reclamada, que o que o aí recorrente, ora reclamante, realmente pretende controverter é, em substância, o próprio juízo concretamente efectuado sobre a graduação da culpa do arguido efectuada pelo tribunal da primeira instância.
III – Decisão
4. Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Outubro de 2011.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.