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Processo n.º 293/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. instaurou acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra o Centro Nacional de Pensões, actualmente Instituto de Segurança Social, I.P., e a Herança de B., pedindo que lhe seja reconhecido o direito a alimentos sobre a referida herança e que se declare que a Autora é titular das prestações por morte, no âmbito do regime de segurança social previsto no Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro.
Após realização de audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu os Réus do pedido.
Inconformada, a Autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 23 de Março de 2010, julgou o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
A Autora recorreu então para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 2 de Dezembro de 2010, negou provimento ao recurso.
Deste acórdão, a Autora recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, nos seguintes termos:
“Pretende-se que este Tribunal se digne apreciar a inconstitucionalidade das seguintes normas à situação de facto da autora:
- Arts. 7º, n. 1, al. a), 9º, n.º 1 e 8º, n.º 1 do DL 322/90 de 18-10; 2020º, n.º 1, e 2009º do Código Civil, aplicadas com a interpretação de que a autora, casada com o falecido há menos de 1 ano, mas com ele convivente, em condições análogas às dos cônjuges há mais de 2 anos, tenha que demonstrar a necessidade de alimentos e a impossibilidade de os obter das pessoas a elencadas nos artigos 2020º e 2009º do Código Civil, suscitada, sucessivamente, nas alegações de recurso para os Tribunais da Relação e Supremo.
Por violação do art. 13º da C.R.P.
Deverá, assim, ser apreciada a violação do princípio constitucional da igualdade de direitos, previsto no art. 13 da CRP, com a aplicação à autora das referidas normas, com a citada interpretação.”
A Recorrente apresentou as respectivas alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
«I – A autora era casada à data da morte do beneficiário.
II – A situação da autora, casada com o falecido há menos de um ano, mas com ele convivente há mais de 2 anos, em situação análoga aos casados, merece a tutela legal prevista no art. 9º, n. 1, do DL 322/90, de 18-10;
III – Para esse efeito, a lacuna legal deve ser integrada por forma a que ao período de casamento deve somar-se o período que, ininterruptamente, a autora viveu com o falecido em união de facto.
IV – Esta é a única interpretação conforme com a lei ordinária em causa, e com a Constituição.
V – A interpretação de que à autora, casada à data da morte com o beneficiário, deve aplicar-se o regime legal previsto para os unidos de facto é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, previsto no art. 13º, n. 2, da Constituição da República Portuguesa,
VI – porque coloca autora, casada, em manifesta inferioridade legal com os restantes cidadãos casados ou unidos de facto.
VII – A única interpretação conforme à Constituição, e à Justiça, é, pois, e salvo o devido respeito pela opinião contrária, a de que o tempo vivido em união de facto soma-se, para estes efeitos, ao tempo de casamento.
VIII – Interpretação esta reforçada com a entrada em vigor da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto.
Pelo exposto, e com o sempre mui douto suprimento,
- declarando inconstitucional a interpretação do douto Acórdão no sentido de se exigir à autora casada e que convivia com o beneficiário falecido há mais de 2 anos a prova da necessidade dos alimentos e a impossibilidade de os obter das pessoas elencadas no art. 2009º do Código Civil; e, em consequência,
- determinando que o douto Acórdão seja substituído por outro conforme à Constituição da República Portuguesa,
Os Recorridos não apresentaram contra-alegações.
Fundamentação
A Recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos 7.º, n.º 1, alínea a), 8.º, n.º 1, e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, e dos artigos 2020.º, n.º 1, e 2009.º, do Código Civil, na interpretação segundo a qual o direito à atribuição da pensão de sobrevivência, por morte do beneficiário do regime geral da segurança social, a quem tiver casado com o referido beneficiário há menos de um ano, mas com ele convivia em união de facto há mais de dois anos, depende de o interessado estar nas condições do artigo 2020.º do Código Civil, isto é, carecer de alimentos e não os poder obter nem da herança deixada pelo beneficiário falecido, nem das pessoas legalmente vinculadas nos termos das alíneas a) a d) do art. 2009.º do Código Civil.
Como expressão de um Estado-Providência este assegura, desde há muito, no nosso sistema, a protecção por morte dos beneficiários abrangidos pelo regime geral de segurança social, mediante a concessão aos familiares próximos do falecido de prestações continuadas, embora não necessariamente vitalícias - as pensões de sobrevivência e os subsídios de assistência - e de uma prestação única - o subsídio por morte.
Contudo, as relações de comunhão de vida não formalizadas, não foram sempre reconhecidas para este efeito.
Em Portugal, até à profunda reforma do Direito de Família operada pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, aprovada na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974, essas situações apenas eram consideradas, excepcionalmente, para a consagração de efeitos completamente alheios ao reconhecimento de qualquer estatuto jurídico a essa realidade (v.g. os artigos 1860.º, alínea c), e 1862.º, do C.C. que incluíam como uma das situações em que se admitia a acção de investigação de paternidade, a existência duma comunhão duradoura de vida em condições análogas às dos cônjuges).
Contudo, a crise do casamento que se manifestou nas últimas décadas do século passado, acompanhada duma crescente opção pelo estabelecimento de relações de união de facto, deu força a uma realidade social cuja importância não podia mais deixar de suscitar a intervenção do Direito.
E foi esse reconhecimento jurídico, normalmente obtido através da extensão aos membros destas uniões dos mais diversos direitos atribuídos pela ordem jurídica aos cônjuges, que começou a ser reclamado, em nome de uma visão alargada do direito à protecção da família.
O referido Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, iniciou um movimento legislativo de atribuição de efeitos jurídicos às relações de união de facto, com a consagração no artigo 2020º, do C.C., de um direito a alimentos por morte de um dos seus membros ao companheiro sobrevivo, a satisfazer pela herança daquele.
Na sequência desta inovação legislativa, e após o pagamento de pensões de sobrevivência às pessoas que vivam com o falecido, em condições análogas às dos cônjuges, mas não eram casadas, ter sido introduzido pelo Decreto-Lei n.º 191-B/79, de 25 de Junho, que alterou a redacção dos artigo 40º e 41º, do Decreto-Lei n.º 142/73, de 31 de Março, no âmbito do funcionalismo público, o Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, que uniformizou as regras relativas às mencionadas prestações por morte no âmbito do regime geral da segurança social, veio reconhecer aos unidos de facto, que reunissem determinadas condições, o direito de também beneficiarem dessas prestações.
Na verdade, o artigo 8º, n.º 1, deste diploma, estendeu o direito às prestações por morte de beneficiário do regime geral da segurança social às pessoas que se encontrassem na situação prevista no artigo 2020º, do C. Civil, remetendo o n.º 2, do mesmo artigo, para regulamento posterior, o processo de prova dessas situações e a definição das condições de atribuição das prestações.
A situação prevista no art.º 2020º, do C. Civil, é a daqueles que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, viviam com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, e necessitando de alimentos, não os podiam obter dos familiares referidos nas alíneas a) a d), do artigo 2009º, do C. Civil, sendo-lhes reconhecido o direito a exigi-los da herança do falecido.
A regulamentação do direito reconhecido no artigo 8º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, foi efectuada pelo Decreto Regulamentar nº 1/94, de 18 de Janeiro, que no seu artigo 3º, estabeleceu que o direito às referidas prestações ficava dependente do reconhecimento judicial da qualidade de titular daquelas, obtido mediante acção declarativa interposta, com essa finalidade, contra a instituição de segurança social competente para a sua atribuição.
A Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, posteriormente revogada e substituída pela Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, veio a enunciar num só diploma os diversos direitos atribuídos por lei às pessoas que vivam em união de facto, tendo previsto este último diploma, no artigo 3º, alínea e), o direito à protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social, estabelecendo o artigo 6º que beneficiava desse direito quem reunisse as condições constantes no art.º 2020º, do C. Civil, devendo o mesmo efectivar-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição.
Foi neste quadro legislativo que foi proposta a presente acção.
Nesta provou-se que a Autora vivia com beneficiário do regime geral da segurança social, em condições análogas às dos cônjuges, há mais de dois anos, mas não se provou que se encontra numa situação de carência económica e que não pudesse obter alimentos dos familiares referidos nas alíneas a) a d), do artigo 2009.º, do Código Civil.
Entretanto, na pendência da acção, entrou em vigor a Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, que, no que aqui interessa, alterou o regime jurídico das uniões de facto consagrado na Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, no Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, no Código Civil (designadamente o artigo 2020°) e no Decreto-Lei n.º 142/73, de 31 de Março, e revogou, de forma tácita, vários dispositivos do Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro.
Em resumo, estas alterações legislativas acabaram com dois dos grandes obstáculos legais que até aqui se colocavam à pretensão da pessoa que vivia em união de facto de receber as prestações por morte do outro membro da união entretanto falecido:
- um de ordem substantiva, que consistia no facto de serem elementos constitutivos deste direito, a necessidade de alimentos e a impossibilidade de os obter dos familiares referidos nas alíneas a) a d), do artigo 2009º.
- outro de ordem procedimental, que residia na necessidade de instaurar uma acção judicial para ser reconhecido que se encontrava em condições de beneficiar dessas prestações.
Contudo, o Tribunal recorrido considerou que estas alterações não são aplicáveis à situação dos presentes autos, tendo interpretado e aplicado as normas do artigo 8.,º do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, e 2020.º, n.º 1, do Código Civil, na sua redacção anterior, sendo, pois, nesta redacção que tais normas integram o objecto do presente recurso, uma vez que o Tribunal Constitucional não tem competência para controlar a boa aplicação do direito infra-constitucional.
Vejamos, antes de mais, o teor dos preceitos sobre os quais recai a interpretação impugnada.
Sob a epígrafe “Titulares do direito às prestações”, o artigo 7.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro (diploma que definiu e regulamentou a protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social), dispõe o seguinte:
«1 – A titularidade do direito às prestações é reconhecida às seguintes pessoas:
a) Cônjuges e ex-cônjuges;
(…)»
Por sua vez, o artigo 8.º do referido Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro (na redacção anterior à introduzida pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto), tem o seguinte teor:
«Situação de facto análoga à dos cônjuges
1 – O direito às prestações previstas neste diploma e o respectivo regime jurídico são tornados extensivos às pessoas que se encontrem na situação prevista no n.º 1 do artigo 2020.º do Código Civil.
2 – O processo de prova das situações a que se refere o n.º 1, bem como a definição das condições de atribuição das prestações, consta de decreto regulamentar».
O artigo 9.º deste diploma legal, sob a epígrafe “Situações especiais dos cônjuges e ex-cônjuges”, estabelece no seu n.º 1 que “Não havendo filhos do casamento, ainda que nascituros, o cônjuge sobrevivo só tem direito às prestações se tiver casado com o beneficiário pelo menos um ano antes da data do falecimento deste, salvo se a morte tiver resultado de acidente ou de doença contraída ou manifestada depois do casamento.”
Segundo o n.º 1 do artigo 2020.º do Código Civil (na redacção do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro), «Aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009º.»
E, por seu turno, o artigo 2009.º, n.º 1, do Código Civil, estabelece quais a as “pessoas obrigadas a alimentos”, dispondo que:
«1 – Estão vinculados à prestação de alimentos, pela ordem indicada:
a) O cônjuge ou o ex-cônjuge;
b) Os descendentes;
c) Os ascendentes;
d) Os irmãos;
(…).»
No caso dos autos, a Recorrente encontrava-se casada, há cerca de um mês, com um beneficiário do regime geral de segurança social, à data da morte deste, tendo, no entanto, antes do casamento, vivido com o dito beneficiário em regime de união de facto por um período superior a dois anos.
De acordo com a decisão recorrida, a Recorrente não pode beneficiar do direitos às prestações por morte na qualidade de cônjuge do beneficiário falecido, uma vez que, não havendo filhos do casal, o casamento só durou cerca de um mês e a morte do beneficiário não resultou de acidente, nem se provou que tenha resultado de doença contraída ou manifestada depois desse casamento - cfr. artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro. Entendeu, por isso, ser de aplicar a norma do artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 7/2001, na parte em que remete para o artigo 2020.º do Código Civil, no sentido de estender o direito de protecção por morte de beneficiário do regime geral da segurança social aos casos em que tenha havido, há mais de dois anos à data da morte do beneficiário, união de facto logo seguida de casamento, mas em que o cônjuge sobrevivo não possa beneficiar das prestações sociais pela circunstância de o casamento não ter durado pelo menos um ano.
Essa tem sido a orientação seguida pela jurisprudência (vide os Acórdãos do S. T. J., de 27.5.03 e de 16.6.2011, da Relação de Lisboa de 4.5.2010, da Relação de Coimbra de 7.6.05, de 28.2.09, e de 24.3.2009, acessíveis em www.dgsi.pt).
Assim, e segundo a decisão recorrida, caberia à Recorrente alegar e provar a carência de alimentos, bem como a circunstância de não os poder obter nem da herança deixada pelo falecido, nem das pessoas legalmente vinculadas nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009.º do Código Civil, sendo que a falta de prova destes factos determinou a improcedência da acção.
A Recorrente alega que a interpretação segundo a qual deve aplicar-se à Recorrente, casada com o beneficiário à data da morte deste, o regime legal previsto para os unidos de facto, é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, porque a coloca em manifesta inferioridade legal com os restantes cidadãos casados ou unidos de facto.
Argumenta que, em relação aos restantes cidadãos casados, a Lei contenta-se com um único ano de convívio, porventura iniciado com o casamento, e para a situação da Recorrente não chegam dois anos de convívio marital, selado pelo casamento, sendo ainda onerada com a prova dos requisitos exigidos unicamente para os unidos de facto; e em relação a estes, porque exige às pessoas que se encontrem na situação da Recorrente a prova de todos os requisitos legais exigíveis aos unidos, olvidando o facto essencial de que casou com o falecido.
A Recorrente não questiona a diferença de tratamento, no que respeita ao acesso a prestações por morte, entre pessoas casadas e pessoas que à data da morte do beneficiário viviam com este em união de facto (questão já por diversas vezes colocada a este Tribunal e que no Acórdão n.º 651/2009, aprovado em Plenário, foi objecto de julgamento de não inconstitucionalidade). Questiona, sim, o facto de a decisão recorrida ter entendido não lhe ser aplicável o regime previsto para o cônjuge sobrevivo do beneficiário, casado há mais de um ano, mas antes o regime aplicável a quem tenha vivido em união de facto com o beneficiário durante mais de dois anos, sem que tenha chegado a contrair casamento, sustentando que tal interpretação normativa é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade.
O âmbito de protecção do princípio da igualdade abrange, na ordem constitucional portuguesa, a dimensão da proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais. O princípio da igualdade, nesta perspectiva, obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, sem fundamento material bastante.
A proibição do arbítrio constitui, assim, um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo. Realce-se, no entanto, que a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só existirá infracção ao princípio da igualdade quando os limites externos da discricionariedade legislativa sejam violados, isto é, quando a medida legislativa adoptada não tenha adequado suporte material.
Ora, sendo certo que a situação da Recorrente não é totalmente idêntica a quem viva em união de facto com o beneficiário falecido, também é certo que não se equipara completamente à situação de quem, sendo casado, o seja há pelo menos um ano à data da morte do beneficiário.
Como se disse no Acórdão n.º 651/2009 do Tribunal Constitucional, “em relação aos cônjuges (tal como em relação aos descendentes menores de 18 anos) a lei presumiu, sem mais, que eram reais e efectivos os elos de dependência económica que pressupunham a necessidade de compensação. Fê-lo tendo em conta os deveres dos cônjuges previstos pela lei civil, entre os quais se contam os deveres de assistência (artigo 1675.º do Código Civil) e o dever de contribuir para os encargos familiares (artigo 1676.º). Em relação à união de facto o legislador não podia naturalmente partir da mesma presunção; por isso, exigiu um requisito adicional, tendente à obtenção da prova da existência do elo de dependência económica que, no desenho do sistema normativo que concebeu, é pressuposto da concessão da prestação social.” (acessível em www.tribunalconstitucional.pt).
Na lógica do regime de atribuição das prestações sociais aqui em causa anterior à aprovação da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, o legislador presumiu a necessidade de atribuição dessas prestações ao cônjuge sobrevivo, tendo em conta os referidos deveres conjugais de solidariedade, dispensando-o, ao contrário do que acontecia com os unidos de facto, de provar essa carência e a impossibilidade de obter alimentos dos familiares mais próximos.
Contudo, para que esta presunção opere, é ainda necessário que o casamento tenha uma duração de, pelo menos, um ano, conforme exige o artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro. Esta espécie de “período de carência” destina-se a desincentivar situações em que o casamento seja feito, tendo em vista apenas a obtenção destas prestações (situação que está excluída nos casos em que a morte do beneficiário tiver resultado de acidente ou de doença contraída ou manifestada depois do casamento).
Ora, para o preenchimento deste requisito, no regime anterior à aprovação da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, não se podem considerar equiparáveis ao casamento, as situações de união de facto, pois o que é relevante para efeitos do disposto naquela norma não é a simples convivência entre duas pessoas, mas essa convivência enquanto casados, com os efeitos jurídicos resultantes do casamento, designadamente, no que respeita aos deveres de solidariedade patrimonial já referidos, uma vez que só a situação de casado é que permitia o funcionamento da referida presunção.
Daí que a circunstância de, anteriormente à celebração do casamento existir já uma relação de união de facto entre os cônjuges, não exclui a possibilidade dessa alteração ter visado apenas a obtenção das prestações sociais em causa, nas situações em que não se verificavam os requisitos então exigidos para a sua atribuição aos unidos de facto, e de, portanto, continuar a fazer sentido a exigência que o casamento tenha uma duração superior a um ano.
E a equiparação destas situações a quem tenha vivido em união de facto com o beneficiário durante mais de dois anos, sem que tenha chegado a contrair casamento, como fez a decisão recorrida, também tem um suporte material inteligível, uma vez que os unidos de facto por período superior a dois anos com o casamento não perdem o elo que justificava a atribuição das referidas prestações sociais, pelo que a manutenção desse direito, fundamentado na situação de união de facto anterior ao casamento, tem uma justificação suficiente.
Do exposto se conclui que existiam razões fundantes, na lógica do regime anterior à aprovação da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, por um lado, para que o tempo de convivência em união de facto, seguido de casamento, não fosse contabilizado para preenchimento do período de um ano exigido pelo artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, e, por outro lado, para que a celebração de casamento não retirasse aos unidos de facto o direito às prestações sociais que essa situação lhes conferia.
O critério normativo aqui sob fiscalização releva a diferença que existia entre os pressupostos de acesso às prestações sociais por morte do cônjuge e do unido de facto e desvaloriza a circunstância dos unidos de facto se terem casado no ano anterior à morte de um deles, não configurando uma discriminação em razão de meras categorias subjectivas, antes se apoiando numa justificação coerente e suficiente, pelo que não viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, da Constituição.
Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 7.º, n.º 1, alínea a), 8.º, n.º 1, e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, e dos artigos 2020.º, n.º 1, e 2009.º, do Código Civil, na interpretação segundo a qual o direito à atribuição da pensão de sobrevivência, por morte do beneficiário do regime geral da segurança social, a quem tiver casado com o referido beneficiário há menos de um ano, mas com ele convivia em união de facto há mais de dois anos, depende de o interessado estar nas condições do artigo 2020.º do Código Civil, isto é, carecer de alimentos e não os poder obter nem da herança deixada pelo beneficiário falecido, nem das pessoas legalmente vinculadas nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009.º do Código Civil.
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 31 de Outubro de 2011.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.