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Processo n.º 487/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório:
A. foi condenado no 1.º Juízo do Tribunal de Marco de Canavezes, no processo n.º 403/04.1GAMCN, por sentença proferida em 15 de Abril de 2010, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €20,00, pela prática de um crime de incêndio, previsto e punível à data da sua prática, pelo artigo 272.º, nº 1, alínea b), e nº 3, do Código Penal, e hoje pelo artigo 274.º, n.º 1 e n.º 4, do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/9.
O arguido foi, ainda, condenado a pagar a pagar aos demandantes civis a quantia de €4.013,58, acrescida de juros de mora desde o trânsito em julgado da sentença, à taxa legal em vigor a cada momento.
Inconformado o arguido recorreu da sentença para o Tribunal da Relação do Porto que, por decisão sumária da Desembargadora Relatora, proferida em 9 de Fevereiro de 2011, rejeitou o recurso por manifesta improcedência.
O arguido reclamou desta decisão para a conferência, tendo sido proferido Acórdão em 30 de Março de 2011 que julgou improcedente a reclamação.
O arguido recorreu então para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“Recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do nº 1, als. b) e f), art. 70º, da Lei do Tribunal Constitucional.
Com efeito,
O douto Acórdão em recurso viola os princípios da presunção de inocência, inscrito no art. 32º da Constituição da República Portuguesa, da igualdade, garantido sob o art. 13º da Lei Fundamental, da tipicidade, estatuído sob o art. 29º do mesmo diploma e o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, previsto no art. 20º da Constituição. Em boa verdade,
O ora recorrente suscitou as ditas inconstitucionalidades na motivação do recurso interposto e respectivas conclusões e, relativamente ao princípio de tipicidade e à violação do direito a uma tutela jurisdicional efectiva, na reclamação para a conferência.
O presente recurso funda-se ainda na al. g) do nº 1 do art. 70º da referida Lei do Tribunal Constitucional, uma vez que a interpretação sustentada por este Tribunal da Relação do dispositivo do art. 412º do Código de Processo Penal foi já julgada definitivamente inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 2/2003, de 16 de Janeiro (DR, Série A, de 30.01.2003) e no Acórdão do T.C. nº 604/2004, de 2 de Junho (DR, II Série, de 23.07.2004).
Notificado para esclarecer qual a interpretação normativa sustentada pela decisão recorrida cuja constitucionalidade pretendia ver fiscalizada, o arguido apresentou novo requerimento com o seguinte teor:
“O recorrente pretende ver fiscalizada a interpretação, perfilhada pelo Tribunal recorrido e constante da fundamentação da decisão impugnada, do artigo 412º, nº 4 do Código de Processo Penal, nos termos da qual “... a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, das especificações nele exigidas tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente se tenha que dar a oportunidade de suprir tais deficiências” (citação do Acórdão recorrido, a fls. 455 dos autos).
De forma talvez ainda mais clara, o entendimento do Tribunal da Relação do Porto cuja constitucionalidade se pretende ver fiscalizada, resulta da transcrição da seguinte passagem da decisão sumária, confirmada em conferência, datada de 2011.02.09, a fls. 436 dos autos:
“Em caso de prova oral o recorrente terá, então, que individualizar as concretas passagens de cada um dos depoimentos apontados relativas ao ponto impugnado e que, no seu entendimento, imponham, como diz a lei, decisão diversa da recorrida.
Ou seja, terá que indicar o conteúdo específico do excerto do depoimento que seja relevante para demonstrar a sua tese e terá, ainda, que proceder à sua localização no suporte respectivo.
Portanto, e no que às provas respeita, o ónus legal não foi cumprido, pelo que não pode este Tribunal sindicar as provas produzidas no que respeita aos factos impugnados”.
E, acrescentamos nós, o Tribunal recorrido considera que deve recusar, liminarmente a sindicância das provas produzidas quanto aos factos impugnados, sem dar qualquer oportunidade ao recorrente para suprir tal deficiência.
O Tribunal da Relação do Porto não se pronunciou sobre as demais inconstitucionalidades suscitadas, por as considerar prejudicadas face à invocada violação do normativo do artigo 412º do Código de Processo Penal, pelo que, e em concreto, só esta lhe pode ser, nesta sede, imputada.
Em 6 de Setembro de 2011 foi proferida decisão sumária que não julgou inconstitucional a norma constante do artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, com o sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da indicação das passagens da gravação da prova oral que na perspectiva do recorrente impunham uma decisão diversa da recorrida, tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente se tenha que dar a oportunidade de suprir tal deficiência, tendo, em consequência, negado provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação:
“1. Delimitação do tipo e objecto do recurso
No requerimento de esclarecimento o Recorrente começa por dizer que pretende ver apreciada a constitucionalidade “da interpretação, perfilhada pelo Tribunal recorrido e constante da fundamentação da decisão impugnada, do artigo 412º, nº 4 do Código de Processo Penal, nos termos da qual “... a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, das especificações nele exigidas tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente se tenha que dar a oportunidade de suprir tais deficiências”.
Contudo, em seguida, esclarece que a especificação a que se reportou esta afirmação foi a não indicação das passagens da gravação da prova oral que impunham uma decisão diversa da recorrida.
Assim, a enunciação da interpretação normativa cuja fiscalização de constitucionalidade se pretende deve ser precisada nos seguintes termos: a norma constante do artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, com o sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da indicação das passagens da gravação da prova oral que na perspectiva do recorrente impunham uma decisão diversa da recorrida, tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente se tenha que dar a oportunidade de suprir tal deficiência.
O Recorrente refere que este recurso é interposto ao abrigo das alíneas b) e f), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, e ainda da alínea g), do mesmo artigo, uma vez que esta interpretação “já foi julgada definitivamente inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2003, de 16 de Janeiro, e no Acórdão n.º 604/2004, de 2 de Junho.”
A alínea f) refere-se aos recursos em que é questionada a legalidade de uma norma que conste de diploma regional (alínea d), ou que tenha o seu fundamento em violação de lei com valor reforçado (alínea c), ou em violação de estatuto de região autónoma (alínea e), pelo que não abrange o presente recurso.
Por sua vez a alínea g) abrange os recursos que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional.
Para que um recurso se enquadre nesta alínea tem que existir uma identidade entre a norma já declarada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional e a norma que é objecto do presente recurso.
O Acórdão de Fixação de Jurisprudência indicado pelo Recorrente não é da autoria do Tribunal Constitucional, mas sim do Supremo Tribunal de Justiça.
O Recorrente, por lapso de identificação numérica, refere-se também ao Acórdão n.º 604/2004 do Tribunal Constitucional, quando se queria referir ao Acórdão n.º 405/2004, que se encontra publicado no Diário da República que refere (DR, II Série, de 23.07.2004).
Neste acórdão decidiu-se:
“- Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, a norma dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugna a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas na alínea a) e, pela forma prevista no n.º 4, nas alíneas b) e c) daquele n.º 3, tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência;
b) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 4 do mesmo artigo 412º, quando interpretada no sentido de que incumbe ao recorrente o ónus de transcrição ali previsto;
c) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, a norma do n.º 4 do mesmo artigo 412º, interpretada no sentido de que a falta de transcrição, pelo arguido recorrente, das gravações constantes dos suportes técnicos a que se referem as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do mesmo artigo tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao mesmo seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência”.
Ora, a norma cuja fiscalização é peticionada neste recurso não se reporta a uma falta de transcrição das gravações na impugnação da decisão da matéria de facto em recurso, a que se reporta a declaração de inconstitucionalidade acima referida na alínea c), mas sim a uma falta da indicação das passagens da gravação da prova oral que na perspectiva do Recorrente impunham uma decisão diversa da recorrida, tal como sucede relativamente à norma declarada inconstitucional na alínea a). Contudo, enquanto esta apenas se reporta a essa falta nas conclusões da motivação do recurso, na norma agora em apreço essa falta de indicação ocorre em toda a motivação do recurso, incluindo a motivação, em sentido estrito, e as conclusões, pelo que não estamos perante conteúdos normativos idênticos.
Não se verificando que a interpretação normativa cuja fiscalização de constitucionalidade é pedida neste recurso seja idêntica à que foi declarada inconstitucional no acórdão indicado pelo Recorrente, este recurso não pode ser enquadrado na alínea g), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC., pelo que apenas se encontra abrangido pela alínea b), do mesmo preceito, uma vez que se verifica que essa norma foi aplicada pelo tribunal recorrido, tendo a sua inconstitucionalidade sido invocada previamente pelo Recorrente perante esse tribunal.
2. Do mérito do recurso
Quando a falta da indicação a que se refere o artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, ocorre em toda a motivação do recurso, abrangendo a parte da motivação, em sentido estrito, e as conclusões do recurso, o critério normativo que entende que nessas situações não se justifica que se dê oportunidade ao recorrente para suprir essa omissão, não se conhecendo o mérito do recurso nessa parte, não tem sido considerado inconstitucional por este tribunal.
Assim fez o Acórdão n.º 259/02 (em A.T.C., 53.º vol., pág. 415), em que estava em causa um recurso interposto pelo assistente, e o Acórdão n.º 140/04 (pub. em A.T.C., 58.º vol., pág. 633), o qual se reportou a recurso interposto pelo arguido.
Perfilhando idêntica orientação também se pronunciaram os Acórdãos 488/04 e 342/06, proferidos em reclamação a decisões sumárias (acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
A jurisprudência sustentada em todos estes acórdãos, com a qual se concorda, é inteiramente transponível para o presente caso, pelo que, remetendo-se para a respectiva fundamentação, mantém-se a posição de não julgar inconstitucional a interpretação normativa impugnada, proferindo-se decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.”
O Recorrente reclamou nos seguintes termos:
“Pretende o recorrente, em primeiro lugar, ressalvar o lapso da identificação da peça Jurisprudencial deste mesmo Tribunal invocada como um dos fundamentos do recurso, uma vez que se trata, como o Ex.mo Conselheiro Relator bem sublinhou, do Acórdão nº 405/2004, e não 604/2004, de 2 de Junho.
Relativamente à douta decisão em impugnação, vem a mesma fundamentada, de forma exemplarmente lúcida e cristalina, na falta de indicação, nas conclusões ou na própria motivação do recurso, das especificações previstas nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, feitas por referência ao consignado na acta, nos precisos termos do nº 2 do artigo 364º do mesmo diploma.
Acontece,
Que o recorrente, reconhecendo embora que não efectuou as mencionadas especificações, permite-se alegar em defesa da sua actuação que apenas não cumpriu esse ónus pela simples razão do próprio Tribunal recorrido lhe haver esvaziado toda e qualquer possibilidade de o fazer.
Com efeito,
Nos precisos termos do normativo do artigo 412º, nº 4, do Código de Processo Penal, as ditas especificações “... fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º”.
Ora,
Este último dispositivo estatui que “... deve ser consignado na acta o início e o termo da gravação de cada declaração.”
No entanto,
Se consultarmos as actas da audiência de julgamento dos presentes autos, realizada nos dias 1 de Março, 17 de Março e 7 de Abril de 2010, de fls. 313 a 315, 331 a 333 e 336 a 338, verificamos que após a identificação de cada uma das testemunhas inquiridas foi reproduzido na acta o seguinte texto: “Prestou juramento legal, foi advertido das consequências criminais em que incorre se a ele faltar e o seu depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal.”
E, acerca do início ou termo da gravação de cada declaração, nada, absolutamente nada.
Consequentemente,
Afigura-se ao recorrente, sempre salvo o devido respeito por melhor opinião, que não poderia apresentar, na motivação ou conclusões do recurso, as especificações que ora lhe foram exigidas, nem pode ser pela sua falta penalizado, sob pena de completo esvaziamento das suas garantias de defesa constitucional e legalmente consagradas.”
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
Fundamentação
O Tribunal Constitucional tem apenas competência para julgar da constitucionalidade de normas aplicadas pelos tribunais comuns, não podendo controlar o sentido das decisões, nem a aplicação do direito infra-constitucional.
O Recorrente vem alegar que não cumpriu o ónus da indicação das passagens da gravação da prova oral que na perspectiva do Recorrente impunham uma decisão diversa da recorrida, porque não tinha possibilidades de o fazer por facto imputável ao tribunal da 1.ª instância.
O Recorrente não põe, pois, em causa o juízo de constitucionalidade perfilhado na decisão sumária reclamada, mas questiona a boa aplicação da norma em causa pela instância recorrida.
Esse é um domínio em que o Tribunal Constitucional não pode intervir, pelo que não tendo sido questionado o juízo de constitucionalidade efectuado pela decisão reclamada e encontrando-se o mesmo na linha da jurisprudência deste Tribunal, deve a reclamação ser indeferida.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A. da decisão sumária proferida nestes autos em 6 de Setembro de 2011.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 11 de Outubro de 2011.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.