Imprimir acórdão
Processo n.º 751/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o relator proferiu a Decisão Sumária n.º 573/2011, que decidiu não conhecer do objecto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«(…) 2. O recurso foi admitido no tribunal recorrido, embora expressando-se dúvidas quanto à respectiva admissibilidade (cfr. despacho de fls. 64).
3. Na verdade, o presente recurso não reúne os pressupostos necessários ao conhecimento do seu objecto.
Desde logo porque o recorrente não suscitou, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa idónea a constituir objecto de um recurso de inconstitucionalidade.
Vindo o presente recurso interposto da decisão do Presidente da Relação de Guimarães que julgou improcedente a reclamação do arguido, aqui recorrente, contra o despacho que decidiu pela inadmissibilidade do recurso apresentado por si apresentado, o momento próprio para suscitar a questão de constitucionalidade era o requerimento de reclamação.
Ora, nessa reclamação o recorrente não enunciou qualquer norma ou interpretação normativa para depois lhe imputar o vício de inconstitucionalidade. Limitou-se a afirmar que «a interpretação da lei ordinária realizada pelo Tribunal a quo, no despacho judicial em crise, viola o art.º 32.º, n.º 1, da Constituição». Não tento enunciado qual a interpretação normativa que reputava inconstitucional e que, alegadamente, teria sido aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida – norma essa que, aliás, continua a não enunciar no requerimento de interposição do presente recurso – o recorrente incumpriu o ónus de suscitação que lhe incumbia (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
4. Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não conhecer do objecto do recurso. (…)»
2. Notificado da decisão, o recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«(…) Por decisão sumária n.° 573/2011, proferida ao abrigo do disposto no artigo 78.°-A, n.° 1 da L.O.F.P.T.C., o Exmo Senhor Juiz Conselheiro Relator decidiu não conhecer do objecto do recurso apresentado pelo Recorrente porque, sustenta, o mesmo não reúne os pressupostos necessários ao conhecimento do seu objecto.
Entende aquela decisão sumária, no essencial, que o Recorrente “não suscitou, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa idónea a constituir objecto de um recurso de inconstitucionalidade” — Cfr. Decisão Sumaria n.° 573/2011.
Cremos, porem, ressalvado o devido respeito que Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator nos merece, que o entendimento prolatado naquela decisão sumária não pode proceder, porque, na verdade, resulta da motivação constante da reclamação do despacho que considerou inadmissível o recurso apresentado pelo Arguido no tribunal de 1.ª instancia, apresentado ao Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, que foi suscitada, de forma processualmente adequada e atempadamente, a questão da inconstitucionalidade.
E, assim sendo, entendemos, que a suscitada questão de inconstitucionalidade objecto do recurso apresentado pelo Recorrido nesta instância não poderia deixar de ser alvo de uma análise crítica, jurídica e jurisprudencial, por relevante, por parte do Tribunal Constitucional.
Senão vejamos:
Na referida reclamação apresentada perante o Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães refere o Recorrente que “o despacho judicial proferido pela Mmo(a). Juiz do 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães... conhecendo as invalidades processuais alegadas pelo Recorrente, A., decidiu-se pela inexistência da invocada nulidade, indeferindo, em consequência, o requerido “.
Não se conformando com aquela decisão judicial, “por ter legitimidade, ser admissível e estar em tempo, apresentou o Reclamante (ora Recorrido,) recurso daquela decisão juntando para o efeito a necessária motivação ”.
Perante o requerido, “decidiu a Mmo(a) Juiz “a quo” , não admitir o supra referido recurso interposto do despacho judicial”, decisão que, saliente-se, incidiu sobre a verificação da invocada nulidade insanável.
E desse despacho judicial que não admitiu o recurso interposto o Recorrente reclamou, então, para o Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães.
Em seguida, nessa reclamação apresentada, refere-se que o despacho judicial em questão (isto é, aquele que não admitiu o recurso interposto pelo Arguido na 1ª instância), julgou inadmissível o recurso por força da aplicação, numa interpretação absoluta e restrita, da norma contida no artigo 391.° do Código de Processo Penal.
Fundamentando que “o despacho de fls. 49 (lª parte) foi proferido nos autos quando os mesmos seguiam a tramitação de processo sumario, sendo que de acordo com o artigo 391.º do Código de Processo Penal, em processo sumario só é admissível recurso da sentença ou do despacho que puser termo ao processo — o que não é o caso”.
Ora, da reclamação ressalta também que “a interpretação aduzida e a conclusão constante do aludido despacho judicial não pode proceder pois viola frontalmente os mais elementares princípios constitucionais, mormente, o artigo 32.º n.°1, da Constituição da Republica Portuguesa ”.
Apesar do supra aludido, refere a decisão sumaria n.° 573/2011 que “o recorrente não enunciou qualquer norma ou interpretação normativa para depois lhe imputar o vício de inconstitucionalidade ”.
Consideramos, porem, ao contrário da decisão sob escrutínio, que a norma está claramente enunciada tanto na reclamação apresentada perante o Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães como no requerimento de interposição do recurso constitucional: trata-se, expressamente, das disposições constantes do artigo 391.° e 399.° do Código de Processo Penal.
Por outro lado, assinala-se, declaradamente, na reclamação apresentada perante o Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães a interpretação normativa em questão: em processo sumário só é admissível o recurso da sentença ou do despacho que puser termo ao processo, não sendo recorrível qualquer outro despacho proferido pelo tribunal, incluindo, um despacho que julgue inexistente uma nulidade insanável prevista no artigo 119.°, alínea e) do Código de Processo Penal, invocada oportunamente pelo Arguido.
Finalmente, refere-se, o vício da inconstitucionalidade que a norma assim interpretada gerou, violando o artigo 32.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, na qual ressalta que o processo criminal deve assegurar todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, bem como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Ao não admitir o recurso apresentado pelo Recorrente junto do tribunal da 1ª instancia, argumentando que o despacho judicial não é recorrível pela interpretação discorrida da disposição constante do artigo 391.° do Código de Processo Penal, além de manifestamente ilegal, trata-se de uma decisão inconstitucional, porque radica numa interpretação normativa que restringe irremediavelmente, as garantias de defesa do Arguido.
Em conclusão, a questão colocada perante o Tribunal Constitucional, e que já havia sido invocada também perante o Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, é, afinal, verificar se é inconstitucional, como argumenta o Recorrente, a norma contida no artigo 391.° Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de que em processo sumario só é admissível o recurso da sentença ou do despacho que puser termo ao processo, não sendo recorrível, portanto, qualquer outro despacho judicial proferido pelo tribunal, incluindo, um despacho que julgue inexistente uma nulidade insanável prevista no artigo 119.°, alínea e) do Código de Processo Penal, invocada oportunamente pelo Arguido.
Termos em que, invocando-se o Douto suprimento do Venerando Tribunal, deverá a presente reclamação ser julgada procedente nos termos alegados, admitindo-se a questão de inconstitucionalidade, atempada e processualmente suscitas, para efeitos do disposto no artigo 72.°, n.º 2, da L.O.F.P.T.C.
Porém, V. Ex.ªs decidirão como for de JUSTIÇA (…).»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal apresentou a seguinte resposta:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 573/2011, não se conheceu do objecto do recurso porque o recorrente durante o processo não enunciara “qualquer norma ou interpretação normativa para depois lhe imputar o vício de inconstitucionalidade”.
2º
O momento processualmente adequado para suscitar a questão era a reclamação para o Senhor Presidente da Relação de Guimarães do despacho que não admitira o recurso interposto para aquela Relação.
3.º
Nessa reclamação o recorrente refere por diversas vezes os artigos 391.º, n.º 1, do CPP - pois fora esse o preceito aplicado pela decisão que não admitira o recurso -, e refere também a violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
4.º
No entanto, como resulta do afirmado pelo próprio recorrente, era uma determinada interpretação daquela norma que estaria em causa, mas que ele nunca identifica.
5.º
Efectivamente, após se referir às limitações constantes daquele artigo 391.º, na sua literalidade, o recorrente afirma:
“Pelo que, nas situações em que os despachos judiciais já não contendem com a celeridade processual que se pretende impor com este normativo não tem qualquer sentido manter-se a restrição ali consagrada.
E, de facto, é o que sucede nos presentes autos, pois, note-se, o presente processo já não decorre, sequer, sob a forma de processo sumário, tendo, em momento anterior à invocada nulidade processual, sido remetido aos serviços do Ministério Público em ordem à abertura de inquérito criminal contra o Arguido.”
6.º
Não tem pois, razão, o recorrente quando, na reclamação agora apresentada, pretende fazer crer que era o artigo 391.º, n.º 1, do CPP, na sua literalidade, que devia constituir objecto do recurso e que tinha adequadamente suscitado a questão da sua constitucionalidade.
7.º
Aliás, nem na reclamação identifica a pertinente dimensão normativa.
8.º
Por outro lado, a decisão recorrida não aplicou aquela norma, como ratio decidendi.
9.º
A reclamação foi indeferida porque “coincidindo o Ministério Público e o Juiz de Instrução, na situação em apreço, quanto à inadequação, em concreto, da suspensão provisória do processo, sempre o recurso interposto pelo arguido se consubstanciaria num acto inútil, que a lei proíbe” (fls. 58).
10.º
Assim, a apreciação de constitucionalidade requerida não se revestiria de qualquer efeito útil, pelo que, tendo em atenção a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, nunca poderia conhecer-se do seu objecto.
11.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A decisão sumária ora reclamada pronunciou-se pelo não conhecimento do objecto do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, com fundamento na falta de suscitação de uma questão de constitucionalidade normativa, idónea a constituir objecto de um recurso de constitucionalidade.
A presente reclamação em nada abala esta conclusão.
Na reclamação para o Presidente da Relação de Guimarães do despacho que não admitira o recurso interposto para aquela Relação – que, como refere a decisão reclamada, era o momento próprio para suscitar a questão de constitucionalidade – o reclamante não cumpriu o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade. O que o reclamante fez foi enunciar o teor literal de certas normas (designadamente do artigo 391.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), para depois concluir que «a decisão judicial proferida a fls. 72 dos presentes autos faz uma errada interpretação e aplicação das disposições constantes dos artigos 391.º, n.º 1, e 399.º do Código de Processo Penal» (cfr. fls. 42 dos autos).
Mas o reclamante não esclarece – nem perante o tribunal recorrido, nem no requerimento de interposição do recurso – qual é a interpretação daquelas normas, supostamente adoptada pela decisão recorrida, que reputa inconstitucional. Omissão que, aliás, resulta também do teor da presente reclamação e das transcrições aí feitas.
Como este Tribunal Constitucional tem reiteradamente salientado, incumbe ao recorrente identificar com precisão o sentido da norma que considera inconstitucional e que pretende submeter a julgamento, de modo a que o Tribunal a possa enunciar na sua decisão, assim permitindo, caso a venha a julgar inconstitucional, que os destinatários saibam qual o sentido da norma que não pode ser utilizado por ser incompatível com a Constituição.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, sem prejuízo do apoio judiciário, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 30 de Novembro de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.