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Processo n.º 191/2011
1ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
(Conselheiro Borges Soeiro)
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal Judicial de Santo Tirso foi julgada improcedente a oposição, deduzida pela executada A., Lda. (ora Recorrente), à execução que lhe havia sido movida pela exequente B., Lda. (ora Recorrida). A executada interpôs então recurso para o Tribunal da Relação do Porto o qual, atento o disposto no artigo 685.º-C, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, foi indeferido, já que as alegações apresentadas eram totalmente omissas de conclusões. A executada reclamou deste despacho, suscitando a inconstitucionalidade da interpretação daquele preceito, reclamação todavia indeferida por acórdão da conferência, de 24 de Janeiro de 2011, que manteve o anteriormente decidido.
2. É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 70.°, n.º 1, alínea b), da LTC, para apreciação do artigo 685.º-C, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil (por lapso manifesto, no requerimento é feita referência ao artigo 650.º-A, n.º 3), quando 'interpretado no sentido de que a falta de conclusões implica a não apreciação do recurso sem previamente o Juiz Relator proceder em conformidade com o disposto no artigo 650.º-A, n.º 3, violando assim o artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa.'
3. Notificada para produzir alegações, concluiu a Recorrente nos seguintes termos:
'1.ª O recurso da decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância foi liminarmente indeferido pelo Tribunal da Relação por não conter conclusões ao abrigo do estatuído no artigo 685°-C nº 2 alínea b) do C.P.C.
2.ª Dessa decisão reclamou a Recorrente para o Presidente do Tribunal da Relação do Porto, reclamação que também não foi atendida por aplicação do supra citado normativo processual.
3.ª A recorrente discorda da referida interpretação feita da norma do artigo 685.°-C n.º 2 alínea b) do Código de Processo Civil por duas ordens de razão: a) O recurso interposto continha apenas cinco páginas de sintéticas alegações, pelo que o bom senso inculca que as conclusões seriam a sua reprodução 'fiel'; b) Apesar da revogação do artigo 690.º do C.P.C., o legis1ador salvaguardou no artigo 685.°-A nº 3 deste diploma legal o dever do juiz convidar o Recorrente a completar, esclarecer ou aclarar as conclusões deficientes, obscuras ou complexas.
4.ª O princípio da cooperação processual, actualmente consagrado como princípio angular e exponencial do processo civil, de forma a propiciar que juízes e mandatários cooperem entre si, de modo a alcançar-se, de uma feição expedita e eficaz, a justiça do caso concreto, deve ser aplicado ao caso dos autos como forma de concretização do mesmo.
5.ª Mesmo considerando-se que a Recorrente não cumpriu adequadamente ónus de formular e sintetizar conclusões, essa irregularidade não pode acarretar necessariamente o não conhecimento do recurso.
6.ª No caso sub judice o não conhecimento do recurso configura uma sanção desproporcionada à irregularidade cometida, materialmente desajustada ao direito constitucional do recurso (art.20.º C.R.P.).
7.ª O não conhecimento do recurso deve ser usado com parcimónia e moderação, devendo ser utilizado tão só quando não for de todo possível, ou muito difícil, determinar as questões submetidas à apreciação do tribunal superior.
8.ª Do cotejo das alegações de recurso apresentadas nos autos, extrai-se com clareza e perceptibilidade o objecto do recurso, proporcionando a concretização do contraditório (que foi inclusive exercido) e balizando a decisão.
9.ª No caso vertente, o objecto do recurso foi apreendido pela parte contrária (vide contra-alegações) e a decisão poderá ser demarcada, porque as questões colocadas são claras, não devendo ser feito uso da radical determinação de não conhecer o recurso.
10.ª Em última instância, e como manifestação da justiça equitativa, o pedido de revogação da douta sentença recorrida constitui conclusão, ainda que sintética, pelo que a recorrente devia ter sido convidada a completar as conclusões.
l1.ª A norma em apreço, na interpretação que lhe foi dada pelo Venerando Tribunal da Relação, não tem fundamento material bastante que tal justifique, antes afecta, de um modo particularmente oneroso e de forma irreversível, os direitos de quem pretende aceder à justiça, violando o direito constitucional garantido da recorrente de ver novamente apreciada uma decisão humana que, como tal, é sempre passível de erro, sendo essa uma das primeiras razões da existência e da longa persistência dos recursos processuais, pois a percepção dos homens sofre a forte influência de factores internos e externos, uns de ordem intelectual, outros de natureza emocional, pelo que, o direito de recurso tem a indiscutível vantagem de conhecer a decisão anterior, a ser ratificada ou não, mas, de todo o modo, é sempre uma apreciação mais reflectida da questão.
Termos em que, declarando-se inconstitucional a norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 685.°-C do Código de Processo Civil, na interpretação de que a falta de conclusões implica a não apreciação do recurso sem previamente o Juiz Relator proceder em conformidade com o disposto no art.685-A n.° 3 do C.P.C., será feita JUSTIÇA.”
4. A Recorrida não contra-alegou. Não tendo obtido vencimento o projecto de acórdão apresentado pelo relator originário, cumpre formular a decisão em conformidade com o entendimento que prevaleceu.
II - Fundamentação
5. O recurso interposto da decisão proferida em 1.ª Instância foi liminarmente indeferido pelo Tribunal da Relação do Porto, por a respectiva alegação de recurso não conter as 'conclusões', em violação directa do disposto no artigo 685.º-C, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil (CPC). Dessa decisão, reclamou a ora Recorrente, reclamação essa que também não foi deferida, com base na mesma disposição legal. A Recorrente discorda da interpretação dada ao aludido preceito legal, porquanto sustenta que, apesar da revogação do artigo 690.° do CPC, o legislador salvaguardou no novo artigo 685°?A, n.º 3, introduzido na reforma dos recursos em processo cível operada em 2007, o dever de o juiz convidar o recorrente a completar, esclarecer ou aclarar as conclusões deficientes, obscuras ou complexas. Assim, mesmo a considerar-se que a Recorrente não cumpriu o ónus de formular as conclusões na minuta de recurso, esse facto não poderia acarretar o não conhecimento do recurso, já que essa consequência configuraria uma sanção desproporcionada à irregularidade cometida, pelo que colidiria com o princípio constitucional do acesso ao direito consignado no artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa. Vejamos.
6. A reforma do regime dos recursos em processo civil efectivada pelo Decreto?Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, tendo revogado o artigo 690.° do CPC, veio, simultaneamente, aprovar o artigo 685º-C, n.º 2, alínea b), onde se considera que a falta de alegações ou de conclusões constitui fundamento de rejeição de recurso. Assim, onde anteriormente se admitia o convite ao recorrente para suprimento daquela falta de conclusões, agora tal convite só ocorre quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou quando nelas se não tenha procedido às especificações previstas no n.º 2 do artigo 685.º-A. O que, no dizer de Armindo Ribeiro Mendes (Recursos em Processo Civil - Reforma de 2007, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pag. 108), é uma solução mais drástica - e diversa da acolhida no processo penal, onde se prevê um despacho de aperfeiçoamento (artigo 417.° n.° 3) - concluindo aquele Autor que é de 'prever que se venham a suscitar questões de inconstitucionalidade nesta matéria.' Já Amâncio Ferreira (Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª.ed., Coimbra, Almedina, 2009, pag. 171) sustenta que em boa hora o legislador optou pela tese do indeferimento do recurso na situação de falta de conclusões, como vinha defendendo face à vetustez da norma que impõe a formulação de conclusões, advinda do Código de 1939, concluindo que não compreende a afirmação de Ribeiro Mendes, relativamente ao citado enfoque constitucional. Por outro lado, Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil - novo regime, Coimbra, Almedina, 2007, pag. 151) refere que, quando faltem conclusões, não se admite a prolação de despacho de aperfeiçoamento, tendo em conta os antecedentes históricos do que agora se encontra previsto no artigo 685.º-A, em comparação do que constava do artigo 690.º-A, já que a falta de conclusões foi excluída do leque de situações que, em face do anterior preceito, admitiam despacho de aperfeiçoamento. Pode, assim, afirmar-se que o legislador pretendeu que, na situação de falta de conclusões na alegação de recurso em processo civil, não houvesse lugar ao despacho convite, optando pela rejeição imediata do recurso.
7. Diversa é a situação em processo penal e contra-ordenacional. Com efeito, na área penal e contra-ordenacional, existe variada jurisprudência (vejam-se os Acórdãos n.°s 66/2000, 265/2001, 320/2002, 140/2004 e 459/2010, todos disponíveis na página Internet do Tribunal, em www.tribunalconstitucional.pt), onde foi sempre decidido - na consideração de que o direito a um duplo grau de jurisdição se identifica como verdadeira garantia de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição) - que enfermava de inconstitucionalidade uma interpretação normativa que, na falta de conclusões na motivação do recurso ou na presença de qualquer deficiência ou obscuridade, conduzisse à imediata rejeição do recurso sem convite ao recorrente.
Porém, como se salientou no Acórdão n.º 40/2000 (que se reportou à aplicação do disposto no artigo 690.º, n.º 3 do CPC em contencioso administrativo), “enquanto naqueles arestos estava em causa o direito ao recurso do arguido em processo penal ou contra-ordenacional, constitucionalmente garantido pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, no presente processo está em causa um recurso interposto em processo administrativo. Com efeito, naquelas decisões considerou-se que seriam inconstitucionais os artigos 412.º, n.º 1 e 420.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (acórdãos 193/97, 43/99 e 417/99) e 63.º, n.º 1 e 59.º, n.º 3 do Regime Geral das Contra-ordenações (acórdãos n.ºs 303/99 e 319/99) quando interpretados no sentido supra referido, 'por essa interpretação afectar desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa, o direito ao recurso, garantido no que se refere ao processo penal e contra-ordenacional pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição'. Pois bem, o artigo 32.º, n. 1 da Constituição apenas trata das garantias de defesa do arguido, entre as quais hoje se inclui expressamente o direito ao recurso, em processo criminal - e contra-ordenacional, ex vi do n.º 10 do mesmo preceito - não sendo consequentemente invocável no momento de determinar as garantias dos administrados no âmbito do contencioso administrativo”. Nas palavras do Acórdão n.º 488/03, é “a diferença de parâmetros constitucionais convocáveis em processo penal (ou contra-ordenacional) e em outros ramos de direito processual que impede uma simples transposição de soluções obtidas em matéria de processo criminal e contra-ordenacional – por confronto com o artigo 32.º da Constituição – para o exterior do âmbito de aplicação desta norma”.
E o mesmo se impõe concluir quando, como é o caso presente, se discutem as garantias das partes no âmbito do processo civil, onde não tem aplicabilidade o citado artigo 32.º da Constituição. A questão que se coloca, pois, é a de saber se a falta de convite de aperfeiçoamento, quando o recorrente não formule conclusões, configura uma violação do direito de acesso à justiça e aos tribunais.
8. Ora, neste particular, o Tribunal Constitucional tem salientado a inexistência, no âmbito do processo civil, de um genérico direito ao aperfeiçoamento. Conforme se frisou no Acórdão n.º 259/02, “no domínio não penal (ou contra-ordenacional), o Tribunal Constitucional tem entendido que do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição não decorre um genérico direito à obtenção de um despacho de aperfeiçoamento. Ao analisar os vários preceitos legais que consagram ónus processuais, tem o Tribunal Constitucional procurado averiguar se, por um lado, a consagração desses ónus se reveste de alguma utilidade, não redundando em mero formalismo, e se, por outro lado, o cumprimento de tais ónus se não reveste de excessiva dificuldade para as partes. Estando verificadas as duas condições, não resultaria violado o direito de acesso aos tribunais ou o princípio da proporcionalidade. Particularmente nítidos, a este se propósito, se revelam os acórdãos n.º s 403/2000, de 27 de Setembro, e 122/2002, de 14 de Março, que não consideram constitucionalmente exigível proferir um despacho de aperfeiçoamento quando o recorrente não tenha, respectivamente, arguido nulidades da sentença no próprio requerimento de interposição do recurso ou apresentado, em separado da alegação que produz, a transcrição dactilografada das passagens da gravação em que funda o erro na apreciação das provas: não só porque a consagração de tais ónus prossegue uma finalidade atendível, como também porque dela não decorrem especiais dificuldades para o recorrente. Uma outra situação parece justificar ainda que não seja proferido despacho de aperfeiçoamento, a ela se aludindo no acórdão n.º 374/2000, de 13 de Julho: aquela em que, da análise da peça processual oferecida pelo recorrente, decorre que se não está perante o deficiente cumprimento de um ónus (no caso, perante uma deficiente identificação do objecto do recurso), mas perante um pedido que não pode deixar de improceder. O despacho de aperfeiçoamento, na linha de pensamento deste acórdão, não serviria para o tribunal se substituir à vontade do recorrente, convidando-o a submeter à sua apreciação um objecto diverso”.
Aliás, são várias as decisões deste Tribunal que não julgaram violadoras da Constituição diversas normas contendo ónus processuais, cujo incumprimento conduz à rejeição de recursos, como, por exemplo, o Acórdão n.º 403/2000 (também disponível na página Internet do Tribunal, em www.tribunalconstitucional.pt e publicado no Diário da República, II Série, n.º 286, de 13 de Dezembro de 2000) - em que se apreciou a conformidade constitucional da exigência, constante do artigo 72.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho de 1981, de arguição de nulidades da sentença no próprio requerimento de interposição do recurso, sob pena de extemporaneidade – ou o Acórdão n.º 122/2002 (igualmente disponível em www.tribunalconstitucional.pt) – no qual o Tribunal não julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 690.°-A do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de o recorrente, sob pena de rejeição do recurso tocante à matéria de facto, dever apresentar, em separado da alegação, a transcrição dactilografada das passagens da gravação em que funda o erro na apreciação das provas.
9. Por outro lado, a formulação de conclusões é necessária, na medida em que – como se adverte no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Junho de 1992 (DR, I Série, de 06.08.92) -, em resultado do disposto no n.º 3 do artigo 684.º do Código de Processo Civil, elas delimitam o próprio objecto do recurso, constituindo um momento em que, como se afirma no Acórdão n.º 715/96 (do Tribunal Constitucional, a lei impõe uma colaboração do recorrente na melhor formulação do problema jurídico, assegurando, em última instância, a defesa de direitos e a objectividade da sua realização. Neste mesmo Acórdão, o Tribunal afirmou que normas como a do artigo 690.º do Código de Processo Civil desempenham “uma função importante não apenas na perspectiva, mais geral, da realização da justiça, mas inclusive na perspectiva da própria garantia de defesa dos direitos do recorrente. E, é essa função que as conclusões são aptas a realizar – tida como um valor, quer na perspectiva da realização da justiça quer na perspectiva das garantias de defesa do arguido – que, em última análise, legitima do ponto de vista constitucional a existência de normas processuais que as exijam, sob a cominação de não se poder conhecer do objecto do recurso”.
Assim, constatada a inegável utilidade da formulação de conclusões, resta referir, como se fez no citado Acórdão n.º 488/03, que “o cumprimento de tal ónus não implica excessiva dificuldade para o recorrente, dotado de patrocínio especializado”. Pelo contrário, a omissão da apresentação de conclusões, expressamente requeridas sob cominação de não se poder conhecer do objecto do recurso, não pode deixar de revelar um elevado grau de negligência processual, não só pelo desrespeito de norma expressa, mas também pela desconsideração da função daquelas conclusões.
Tudo conjugado, e admitido um razoável grau de liberdade de conformação do legislador na matéria, encontram-se preenchidas duas condições - utilidade do ónus imposto e cumprimento não excessivamente oneroso para as partes – para que se possa concluir não estar violado nem o direito de acesso aos tribunais nem o princípio da proporcionalidade, não se justificando um qualquer juízo de inconstitucionalidade.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 15 de Novembro de 2011.- Gil Galvão – Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro (vencido, de harmonia com a declaração de voto que junto) – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Fiquei vencido, como Relator, tendo sufragado no projecto que apresentei, em síntese, que:
A reforma do regime dos recursos em processo civil efectivada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, tendo revogado o artigo 690.º do CPC, veio, ao mesmo tempo, aprovar o artigo 685.º-C, n.º 2, alínea b), considerando-se que a falta de alegações ou de conclusões constituiria fundamento de rejeição de recurso. Anteriormente, a falta de conclusões poderia ser suprida, após convite ao recorrente.
Agora, o mencionado convite só ocorre quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas não se tenha procedido às especificações previstas no n.º 2 do artigo 685.º-A, com vista a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las.
Relativamente à falta de conclusões na alegação, essa omissão podia ser suprida no tribunal ad quem, devendo, para o efeito, o relator proferir um despacho de aperfeiçoamento.
Assim, poder-se-á afirmar que o legislador pretendeu que, na situação de falta de conclusões na alegação de recurso, em processo civil, não houvesse lugar ao despacho convite com vista à sua enunciação, optando, antes, pela rejeição imediata do recurso.
Diversa é a situação em processo penal e contraordenacional.
Com efeito, na área penal e contraordenacional, existe variada jurisprudência (vejam-se os Acórdãos n.º 66/2000, 265/2001, 320/2002, 140/2004 e 459/2010, o primeiro e último disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt e os restantes publicados, respectivamente, no Diário da República, I Série-A de 16 de Julho e 7 de Outubro e II Série, de 17 de Abril), onde unanimemente foi decidido que haveria sempre lugar ao despacho-convite sempre que faltassem as conclusões na motivação do recurso ou qualquer deficiência, obscuridade de que as mesmas padeçam, sob pena, sob pena de, não o proferindo, e, ser, de imediato, rejeitado o recurso, tal decisão enfermaria de inconstitucionalidade.
Da referida jurisprudência resultam determinados pontos comuns que importa sintetizar.
Desde logo, o Tribunal Constitucional tem sublinhado não se poder «sufragar uma interpretação normativa assente numa rigidez formal que posterga, desrazoavelmente, as garantias constitucionais consagradas para o processo criminal» (Acórdão n.º 66/2000, já citado). Mas, se o Tribunal Constitucional condena a exigência de formalismos excessivos para o acesso ao recurso quando estes não tenham uma justificação razoável, já aceita que os requisitos essenciais para a delimitação do conteúdo do recurso, constituem exigências não irrazoáveis ou desproporcionais. Por outro lado, os referidos formalismos terão de ser tanto mais limitados quando, não tendo uma unívoca decorrência do texto legal, não se afiguram por isso imprescindíveis para a delimitação do âmbito do recurso.
Em processo civil, e antes da reforma dos recursos operada em 2007, encontramos, relativamente à revogada norma constante do artigo 690.º, n.º 3 jurisprudência, também firme, que considera inconstitucional a citada norma, quando interpretada no sentido de que a falta ou a falta de concisão das conclusões poderá levar à rejeição do recurso, sem que exista um convite ao recorrente para o seu aperfeiçoamento (vide, Acórdãos n.º 193/97 e 40/2000, disponíveis respectivamente, em www.tribunalconstitucional.pt e Diário da República, II Série, de 20 de Outubro).
Como o Tribunal já por diversas vezes afirmou, o legislador tem ampla liberdade de conformação no estabelecimento das regras sobre recursos em cada ramo processual. Necessário é, porém, que essas regras não signifiquem a imposição de ónus de tal forma injustificados ou desproporcionados que acabem por importar lesão da garantia de acesso à justiça e aos tribunais.
No presente recurso questiona-se se a omissão de conclusões na alegação de recurso, sem a prolação do despacho convite para as formular, sob pena de rejeição do recurso, é de considerar injustificado, desrazoável ou desproporcionado.
Conforme foi decidido no Acórdão n.º 102/2010 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
“Nestas particulares circunstâncias, a norma que conduz ao indeferimento do requerimento de interposição do recurso não se mostra compatível, nem com a ideia geral da proporcionalidade ínsita no princípio do Estado de Direito, nem com a garantia constitucional do processo equitativo, consagrados no artigo 2.º e no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, respectivamente.
Na verdade, o direito de agir em juízo deve efectivar-se através de um processo equitativo, cujo significado básico é o da exigência de conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela jurisdicional efectiva e que se densifica através de outros subprincípios, um dos quais é o da orientação do processo para a justiça material, sem demasiadas peias formalísticas (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., págs. 415 e segs). Os ónus processuais devem servir o fim para que são instituídos e a sanção para o seu incumprimento deve ser adequada a compelir ao respectivo cumprimento, mas sem exceder a justa medida, pondo em balança as consequências desvantajosas para o interessado e os efeitos da conduta incumpridora na frustração dos objectivos visados com a disciplina processual considerada”.
Assim, o direito à tutela jurisdicional ou o direito de acesso aos tribunais como direito de acesso a uma protecção jurídica individual adequada estabelece especial ênfase no facto de a via judiciária que se abre aos particulares possuir um grau acrescido de eficácia, no sentido da garantia judiciária não ser um mero «jogo formal»; mas que seja obtida uma decisão sobre o fundo da causa, fundada no direito.
Com efeito, como se afirmou, lapidarmente, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro:
“ (…) Os princípios gerais estruturantes do processo civil, em qualquer das suas fases, deverão essencialmente representar um desenvolvimento, concretização e densificação do princípio constitucional do acesso à justiça. Na verdade, tal princípio não se reduz à mera consagração constitucional do direito de acção judicial, da faculdade de qualquer cidadão propor acções em tribunal, implicando, desde logo, como, aliás, a doutrina vem referindo, que a todos seja assegurado, através dos tribunais, o direito a uma protecção jurídica eficaz e temporalmente adequada. (…) O direito de acesso aos tribunais envolverá identicamente a eliminação de todos os obstáculos injustificados à obtenção de uma decisão de mérito, que opere a justa e definitiva composição do litígio, privilegiando-se assim claramente a decisão de fundo sobre a mera decisão de forma. (…) Procura, por outro lado, obviar-se a que regras rígidas, de natureza estritamente procedimental, possam impedir a efectivação em juízo dos direitos e a plena discussão acerca da matéria relevante para propiciar a justa composição do litígio. (…) O incremento da tutela do direito de defesa implicará, por outro lado, a atenuação da excessiva rigidez de certos efeitos cominatórios ou preclusivos, sem prejuízo de se manter vigente o princípio da auto-responsabilidade das partes e sem que as soluções introduzidas venham contribuir, de modo significativo, para a quebra da celeridade processual.”
No dizer de Miguel Teixeira de Sousa (in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 2.ª edição, 1997, p. 27): “É clara a opção ideológica da reforma. No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95 explicitam-se as ‘ linhas mestras’ que presidiram à reforma agora realizada no processo civil nacional. Destacam-se as duas seguintes: “ a distinção entre os princípios estruturantes, que se referem aos valores fundamentais do processo civil, e as regras de natureza instrumental, que definem o funcionamento do sistema processual; a garantia da prevalência do fundo sobre a forma e, portanto, a orientação pela verdade material, que se procura alcançar através da concessão ao juiz de um papel mais interventor e da submissão da actuação do Tribunal e das partes a um princípio de cooperação. Trata-se do primeiro esforço de ruptura com algumas das tradições napoleónicas e liberais do processo civil nacional, em especial quanto ao âmbito da disponibilidade das partes sobre o processo e ao predomínio da discussão escrita sobre a oral, e de uma primeira actualização segundo as modernas ‘correntes do tempo e do espírito no processo.’ (Franz Klein).”
Ora, da interpretação efectivamente adoptada pelo acórdão recorrido decorre que o recurso é rejeitado sempre que a motivação não seja acompanhada das respectivas conclusões, sem haver lugar à prolação do despacho de aperfeiçoamento, com vista à sua enunciação. Sanciona-se, no grau máximo, com a perda do direito de recorrer um desvio formal, considerando os fins para que a disciplina processual foi estabelecida, qual seja a de tornar a respectiva peça processual mais facilmente manuseável, pois que ganha, sem dúvida, um patamar sintético apreciável para as restantes partes e para o tribunal. No entanto, a gravidade das consequências processuais é totalmente desproporcionada à gravidade e relevância do desvio introduzido no modelo legalmente previsto, já que torna inviável o conhecimento do recurso, pelo facto de ser omitida uma formalidade facilmente colmatável, como é no processo penal e contraordenacional e o era no processo civil, tronco comum donde emergiu a disciplina para os restantes ramos do direito adjectivo.
É de reiterar, ainda, e conforme se disse no recente Acórdão n.º 434/2011 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
“Apesar de se reconhecer a importância de uma estrutura processual deliberadamente simplificada e célere (…), é imperioso garantir que o bem jurídico celeridade não comprometa, de forma desproporcional, o princípio do contraditório, sob pena de violação incomportável do acesso à tutela jurisdicional efectiva.
A propósito do equilíbrio necessário entre a celeridade processual e a justiça da decisão, em termos transponíveis para a presente situação, refere C. Lopes do Rego: ‘As exigências de simplificação e celeridade – assentes na necessidade de dirimição do litígio em tempo útil – terão, pois, necessariamente que implicar um delicado balanceamento ou ponderação de interesses por parte do legislador infraconstitucional – podendo nelas fundadamente basear-se o estabelecimento de certos efeitos cominatórios ou preclusivos para as partes ou a adopção de ‘mecanismos que desencorajem as partes de adoptar comportamentos capazes de conduzir ao protelamento indevido do processo’, sem, todavia, aniquilar ou restringir desproporcionadamente o núcleo fundamental do direito de acesso à justiça e os princípios e garantias de um processo equitativo e contraditório que lhe estão subjacentes, como instrumentos indispensáveis à obtenção de uma decisão jurisdicional – não apenas célere - mas também justa, adequada e ponderada’ (in ‘Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil’, Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2003, p. 855). Do exposto resulta que uma falha processual – maxime que não acarrete, de forma significativa, comprometimento da regularidade processual ou que não reflicta considerável grau de negligência - não poderá colocar em causa, de forma irremediável ou definitiva, os fins substantivos do processo, sendo de exigir que a arquitectura da tramitação processual sustente, de forma equilibrada e adequada, a efectividade da tutela jurisdicional, alicerçada na prevalência da justiça material sobre a justiça formal, afastando-se de soluções de desequilíbrio entre as falhas processuais – que deverão ser distinguidas, consoante a gravidade a e relevância - e as consequências incidentes sobre a substancial regulação das pretensões das partes.”
Nesta dimensão, a norma que decorre do artigo 685.º-C, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil, para além de estabelecer um manifesto retrocesso com os fins tidos em vista com a reforma do Processo Civil de 1995, que teve em vista, nomeadamente, colocar este texto legal em consonância com a Constituição da República, a nível dos seus princípios estruturantes, estabelece também, uma consequência desproporcionada e viola o princípio do processo equitativo consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição.
Pelo exposto, concederia provimento ao recurso, porquanto a decisão que fez vencimento põe em causa, face às razões que se adurizam, o processo equitativo consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição.
Com efeito, em meu juízo, a norma do artigo 685.º-C, n.º 2, alínea b) do CPC, na interpretação de que a falta de conclusões implica a não apreciação do recurso sem previamente proceder em conformidade com o disposto no artigo 685.º-A, n.º 3 do CPC, isto é, sem convidar o recorrente a completar a alegação de recurso com a inclusão das conclusões em falta, é inconstitucional.
Lisboa, 15 de Novembro de 2011.- José Borges Soeiro.