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Processo n.º 828-A/10
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente a sociedade A., Ld.ª e são recorridos a Massa Falida B., S.A. e demais Credores Reclamantes, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal, de 19 de Outubro de 2010.
2. Em 13 de Janeiro de 2011, foi proferida a Decisão Sumária n.º 29/2011, pela qual o Tribunal decidiu, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objecto do recurso.
3. Notificada desta decisão, a recorrente reclamou para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC. Pelo Acórdão n.º 134/2011, o Tribunal decidiu indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Tal decisão foi fundamentada nos seguintes termos:
«Nos presentes autos decidiu-se não tomar conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade, com fundamento na não verificação do requisito da suscitação prévia da questão de constitucionalidade posta no respectivo requerimento de interposição.
Conclui-se que a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações do recurso de revista não coincide com a norma indicado no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade. Durante o processo a recorrente questionou a conformidade constitucional da “interpretação da norma constante na al. b) do n.º 1 do art. 377º do Código do Trabalho, segundo a qual, em conjugação com o art.º 751.º do Código Civil, o privilégio imobiliário especial nela conferido - sobre os imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade - aos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, gerados após a entrada em vigor da referida norma, prefere à hipoteca voluntária, independentemente da data de constituição e registo desta”; no requerimento de interposição de recurso pede a apreciação da “inconstitucionalidade material da norma constante da alínea b) do nº1 do art. 377.º do Código de Trabalho, na interpretação segundo a qual os créditos laborais garantidos por privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade prevalecem sobre os créditos garantidos por hipoteca constituída sobre esses bens em data anterior à data da entrada em vigor do Código de Trabalho – Lei nº 99/2003 de 27 de Agosto”.
1. A reclamante contraria a decisão sumária, sustentando que a norma indicada no requerimento de interposição de recurso foi por si questionada do ponto de vista jurídico-constitucional perante o tribunal recorrido. Destaca, para o efeito, as passagens das alegações de recurso e das respectivas conclusões que fazem referência expressa ao artigo 377.º do Código do Trabalho.
Sucede, porém, que todas elas têm a ver com advertências da recorrente no sentido de esta disposição legal não dever ser interpretada, face às leis que se sucederam no tempo, por forma a fazer prevalecer o privilégio creditório aí previsto sobre garantia real de hipoteca, constituída e registada em data muito anterior ao início de vigência do artigo 377.º, por forma a conferir eficácia retroactiva a esta disposição. E é esta interpretação, que a recorrente não chega a identificar, que é questionada à luz dos princípios da confiança e da certeza e segurança jurídicas, plasmados no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
No contexto dos requisitos do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o acabado de dizer significa que a constitucionalidade do artigo 377.º do Código de Trabalho não foi questionada de forma adequada, tal como é imposto pelo n.º 2 do artigo 72.º daquela lei. Este Tribunal tem dito, reiteradamente, que quando “se suscita a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação de certa (ou de certas) normas jurídicas, necessário é que se identifique essa interpretação em termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os destinatários delas e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa (ou essas) normas não podem ser aplicadas com um tal sentido” (Acórdão n.º 106/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Acresce que daquelas passagens não decorre claramente que a disposição legal em causa é a alínea b) do n.º 1 do artigo 377.º daquele Código, não se especificando, de todo, que estão em causa bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador presta a sua actividade. Além de ser dado relevo ao registo da hipoteca a par da constituição da mesma.
Em suma, a norma cuja apreciação foi requerida a este Tribunal não foi questionada perante o tribunal recorrido, de modo processualmente adequado (artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC). O que não é contrariado pela alegação da reclamante de que “o constante em sede a conclusão B das alegações de recurso, designadamente a enunciação do art.º 751 do CC e da invocação ‘independentemente da data da constituição da hipoteca’ mais não são do que enunciações de carácter geral, por excesso e/ou defeito”. Reiterando o que foi dito na decisão reclamada, é de concluir que em tal conclusão foi, de facto, questionada a constitucionalidade de uma norma diferente da que foi indicada no requerimento de interposição de recurso.
Há que confirmar, por conseguinte, a decisão de não conhecimento do objecto do recurso interposto, indeferindo a presente reclamação.
2. A título supletivo, a reclamante requer que lhe seja conferida a possibilidade de corrigir o seu requerimento, à luz do princípio da colaboração, previsto no Código de Processo Civil, bem como ao abrigo do disposto no artigo 75º-A, n.º 5, da LTC.
É manifesto, porém, que não é aplicável ao caso o que dispõem os n.ºs 5 e 6 do artigo 75.º-A da LTC. No requerimento de interposição de recurso a recorrente indicou, e com precisão, a norma cuja apreciação pretendia, satisfazendo o requisito constante da parte final do n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC»
4. Notificada desta decisão, a recorrente requereu a aclaração e, porventura, a reforma do acórdão, para tanto invocando o disposto nos artigos 669.º e 670.º do Código de Processo Civil. Através do Acórdão n.º 248/2011, o Tribunal decidiu indeferir os pedidos de aclaração e reforma do Acórdão n.º 134/2011,
5. Notificada do Acórdão n.º 248/2011, a recorrente apresentou requerimento arguindo a nulidade do acórdão n.º 134/2011, nos termos e com os fundamentos seguintes:
«Nos termos do disposto no nº3 do art. 670.º do CPC, se alguma das partes tiver requerido a rectificação ou aclaração do acórdão, o prazo para arguir nulidades só começa a correr depois de notificada a decisão proferida sobre esse requerimento.
Nesse sentido é admissível o presente requerimento de arguição de nulidade do acórdão proferido.
O acórdão proferido e ora em crise é, salvo o devido e maior respeito, nulo atendendo ao facto dos fundamentos do mesmo estarem em oposição com a decisão, o que nos termos do disposto nas alíneas e) do nº1 o art. 668.º do CPC configura nulidade.
De facto, e com o reiterado respeito, não se compreende a conclusão versada no douto acórdão proferido, onde consta “foi, de facto, questionada a constitucionalidade de uma norma diferente da que foi indicada no requerimento de interposição de recurso”.
Até porque e atendendo a toda a matéria constante no douto acórdão, designadamente as citações efectuadas à reclamação interposta pela aqui recorrente, atesta-se clara e inequivocamente que o intuito da aqui recorrente é que este Mui Digno Tribunal aprecie a (in) constitucionalidade material da norma constante da alínea b) do nº1 do art. 377.º do Código de Trabalho, na interpretação segundo a qual os créditos laborais garantidos por privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade prevalecem sobre os créditos garantidos por hipoteca constituída sobre esses bens em data anterior à data da entrada em vigor do Código de Trabalho – Lei nº 99/2003 de 27 de Agosto
Ademais na própria fundamentação da decisão proferida consta como fundamento para a confirmação da decisão sumária proferida, referindo-se às passagens que a ora recorrente menciona na sua reclamação, “que daquelas passagens não decorre claramente que a disposição legal em causa é a alínea b) do nº1 do art. 377.º daquele Código, não se especificando, de todo, que estão em causa bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador presta a sua actividade”.
Sendo que, da decisão sumária n.º 828/10, que suscitou a reclamação apresentada, é referido que a decisão de não conhecimento do recurso se prende com o facto de “verifica-se nas alegações de recurso de revista reportou a norma cuja constitucionalidade pretendia questionar ao artigo 377º, nº1 alínea b). do Código de Trabalho de 2003, em conjugação com o artigo 751º do Código Civil, enquanto que no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade reporta a norma exclusivamente àquele artigo do Código de Trabalho”
Neste sentido, e salvo o devido respeito, parece-nos manifesto que a decisão sumária proferida nunca colocou em questão que o pedido de apreciação de constitucionalidade incidia sobre a alínea b) do nº1 do art. 377.º, questionando outrossim o facto da interpretação da mesma ter sido conjugada com outro artigo em sede de recurso de revista e sem essa mesma conjugação em sede do requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, o que se reitera que não se consente.
Ora, nestes mesmos termos, não consegue a aqui recorrente conceber como é que no douto acórdão em análise se expõe uma fundamentação manifestamente distinta da proferida em sede da decisão sumária e se conclui confirmar a decisão de não conhecimento do objecto do recurso interposto com base nos mesmos fundamentos explanados na decisão sumária.
Pelo que, se atesta clara e inequivocamente que estamos perante uma nulidade do acórdão, na medida em que os fundamentos estão em oposição com a decisão, nulidade que se alega pelo presente e se pretende ver reconhecida com as demais consequências legais.
Adicionalmente, e agora no que concerne à argumentação explanada no acórdão ‘que não se especificando, de todo, que estão em causa bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador presta a sua actividade”, sempre se dirá que tal matéria, não obstante a discordância da aqui recorrente, foi declarada pelas instâncias anteriores como facto provado e assente, pelo que, salvo o reiterado respeito, é manifesto que os imóveis cm causa são os que foram considerados como sendo imóveis do empregador nos quais o trabalhador presta a sua actividade, pelo que também neste caso improcede a fundamentação exposta.
Nestes termos, afigura-se-nos, e assim se requer, que o douto acórdão seja declarado nulo, com as devidas consequências legais.»
6. Notificado deste requerimento, o Ministério Público veio dizer o seguinte:
«1.º
Pelo douto Acórdão n.º 134/2011, indeferiu-se a reclamação da Decisão Sumária n.º 29/2011, que não tomara conhecimento do objecto do recurso.
2.º
Pelo Acórdão n.º 248/2011, indeferiu-se um pedido de “aclaração e porventura reforma” daquele Acórdão n.º 134/2011.
3.º
Vem agora a recorrente arguir a nulidade do Acórdão n.º 134/2011, porque os fundamentos do mesmo estavam em oposição com a decisão (artigo 668.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil).
4.º
Entendeu-se no Acórdão em causa, que a norma cuja inconstitucionalidade havia sido suscitada durante o processo, não correspondia àquela que a recorrente pretendia ver apreciada pelo Tribunal Constitucional e que enunciava no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal.
5.º
Por faltar aquele requisito de admissibilidade do recurso, não se conheceu do seu objecto.
6.º
Não se dando razão ao recorrente naquilo que ele afirmava na reclamação para a conferência, demonstrou-se no Acórdão em que medida eram diferentes aquelas dimensões normativas.
7.º
Não se vislumbrando, pois, qualquer nulidade, a arguição deve ser indeferida.»
7. Respondeu igualmente o recorrido C., S.A., concluindo pelo indeferimento do requerido.
8. Através do Acórdão n.º 348/2011 foi decidida a extracção de traslado para processamento em separado do requerimento de arguição de nulidade e de quaisquer outros que viessem a ser apresentados. Contadas as custas devidas, a recorrente procedeu ao seu pagamento.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Segundo o artigo 668.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto nos artigos 716.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 69.º da LTC, o acórdão é nulo quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
A recorrente entende que o Acórdão n.º 134/2011 padece de tal forma de nulidade, uma vez que nele “se expõe uma fundamentação manifestamente distinta da proferida em sede de decisão sumária e se conclui confirmar a decisão de não conhecimento do objecto do recurso interposto com base nos mesmos fundamentos explanados na decisão sumária”.
Através do Acórdão n.º 134/2011, o Tribunal decidiu indeferir a reclamação da Decisão Sumária n.º 29/2011, confirmando a decisão da relatora de não conhecer do objecto do recurso interposto. Nesta decisão concluiu-se que, durante o processo, não foi questionada, perante o tribunal recorrido, a norma indicada no requerimento de interposição de recurso, não coincidindo esta com a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações do recurso de revista.
Ora, é precisamente este o fundamento daquele acórdão. Face à alegação da reclamante de que a norma indicada foi por si questionada do ponto de vista jurídico-constitucional perante o tribunal recorrido, o Tribunal reiterou o entendimento de que nas alegações do recurso de revista “foi, de facto, questionada a constitucionalidade de uma norma diferente da que foi indicada no requerimento de interposição de recurso”.
É de concluir, pois, que os fundamentos do Acórdão n.º 134/2011 não estão em oposição com a decisão, pelo que esta decisão não padece do vício que a recorrente lhe aponta.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a arguição da nulidade do Acórdão n.º 134/2011.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2011.- Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Gil Galvão.