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Processo n.º 697/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A., arguido sujeito a prisão preventiva, suscitou o incidente de recusa do juiz de instrução, fundando essencialmente a imputação de não garantia de imparcialidade, no que para a compreensão do presente recurso releva, no facto de o juiz recusado ter praticado oficiosamente diligências tendentes a sustentar a decisão de aplicação da medida de coacção ou mesmo a prejudicar a sua defesa no recurso de tal decisão. Por acórdão de 10 de Agosto de 2011, o Tribunal da Relação de Coimbra indeferiu o pedido.
O arguido recorreu deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro. O recorrente pretende:
“(…)
- A fiscalização da constitucionalidade da interpretação das normas constantes dos arts. 17º, 268º e 269º do C.P.P., no sentido de, durante a fase de Inquérito, ter o J.I.C. competência para solicitar uma ficha policial e um certificado de registo criminal de uma putativa testemunha – por violação do princípio da estrutura acusatória do processo penal, ínsita e consagrada no n.º 5 da C.R.P.
- A fiscalização da constitucionalidade da interpretação das normas constantes dos arts. 17º, 268º e 269º do C.P.P., no sentido de permitirem, após a admissão do recurso de revogação de medida de coacção interposto pelo arguido, ao J.I.C. a junção aos autos da dita ficha policial e C.R.C. – por violação das garantias de defesa do arguido, incluindo o direito ao recurso, expressamente consagradas e protegidas pelo n.º 1 do art. 32º da C.R.P.
- A fiscalização da constitucionalidade da interpretação da norma constante do n.º 4 do art. 414º do C.P.P., no sentido de permitir, ao Juiz de Instrução, em despacho de sustentação por si proferido, invocar elementos de prova e indícios que não fora, como exige o art. 141º do C.P.P., comunicados ao arguido aquando da sua submissão a primeiro interrogatório de arguido detido – por violação do n.º 1 do art. 32.º da C.R.P.”
2. Após alegações do recorrente e do Ministério Público, o relator proferiu despacho a ouvir as partes face à possibilidade de vir a entender-se que as questões de constitucionalidade que o recorrente pretende ver apreciadas não correspondem à ratio decidendi do acórdão recorrido
O recorrente propugna que se conheça do recurso, porque as questões nele versadas estão subjacentes à ratio decidendi do acórdão recorrido. No incidente sustentou-se que a actuação do juiz de instrução, de forma tão manifestamente violadora das disposições constitucionais, põe seriamente em causa a exigida imparcialidade judicial. De modo que, se vier a ser reconhecida a inconstitucionalidade da interpretação normativa em que tal actuação se abonou, a Relação terá de reformar a sua decisão, podendo então concluir que os actos praticados pelo juiz em causa, suportados em interpretações inconstitucionais de disposições do Código de Processo Penal (CPP), são actos que objectivamente põem em causa a imparcialidade do mesmo.
O Ministério Público concorda que se decida no sentido anunciado pelo relator.
3. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC para apreciar a conformidade à Constituição de normas que tenham integrado a ratio decidendi da decisão judicial impugnada.
O acórdão recorrido foi proferido num incidente de recusa de juiz deduzido pelo arguido, ora recorrente, ao abrigo dos artigos 43.º a 45.º do CPP. A recusa pode ter lugar quando a intervenção de um juiz no processo corra o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade (n.º 1 do artigo 43.º do CPP). Sendo este o fundamento legalmente admissível para o pedido de recusa, bem se compreende que a apreciação da validade de qualquer actuação do juiz recusado que integre a “causa de pedir” só releve e só deva ter lugar no respectivo incidente na estrita medida em que seja idónea a denotar uma situação que objectivamente justifique desconfiança sobre a sua imparcialidade. Neste incidente não se aprecia a validade dos actos processuais em si mesma, mas enquanto significativa de uma intervenção objectivamente suspeita do juiz recusado. O tribunal superior não é chamado a decidir sobre a validade, a regularidade ou a relevância processual e probatória de determinados actos processuais, mas se a sua prática denota uma posição ou atitude face ao objecto do processo ou aos sujeitos processuais apta a gerar desconfiança acerca da imparcialidade do juiz que os determinou ou permitiu. É sempre, mantendo-se o tribunal que o aprecia nos limites da função típica do incidente, uma apreciação intencionada ou subordinada ao preenchimento do conceito indeterminado do n.º 1 do artigo 43.º do CPP.
No caso, o recorrente censurava ao juiz de instrução o facto de ter desencadeado oficiosamente, na fase de recurso das medidas de coacção que decretara, diligências tendentes a sustentar a sua decisão ou a debilitar a posição que o recorrente defendia no recurso. Segundo o recorrente, essa actuação processual do juiz recusado, fundada numa interpretação dos poderes e do papel do juiz de instrução contrária aos princípios constitucionais do processo penal, aplicando normas que com esse sentido seriam inconstitucionais, seria de molde a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. Poria em risco a chamada dimensão objectiva da imparcialidade.
Sucede que o acórdão recorrido apenas apreciou essas questões respeitantes à iniciativa do juiz de instrução para valorar tal actuação no quadro estrito do artigo 43.º do CPP e não para decidir se os actos praticados são processualmente válidos ou para determinar o valor probatório do seu resultado. Isso, que já se presumiria face à configuração legal do incidente, resulta claro do acórdão recorrido que afirma que “[q]ualquer nulidade processual cometida pelo JIC em causa, fora do âmbito do incidente de recusa, não é nem pode ser por nós conhecida (teria de ser conhecida em sede de recurso ordinário relativamente aos despachos tidos por nulos …. apenas intervindo este tribunal de recurso em sede de recurso desse despacho que venha a conhecer de tais nulidades)”. E, retomando mais directamente a mesma ideia, “[i]ndependente de se achar se o JIC extravazou ou não as suas legais competências – o que não é objecto directo deste incidente, para efeitos de se considerarem nulos tais despachos –, não vemos em que medida tal pedido de elementos sobre alguém que se apresenta como putativo comprador de automóveis poderá representar uma posição ‘suspeita, geradora de legítima [desconfiança acerca da] imparcialidade deste JIC’. Entendimento que o acórdão realçou na síntese a que a final procede, ao dizer:
“(…)
5. Em suma:
- não vislumbramos, assim, quaisquer dados fácticos capazes de justificar a suspeição deste JIC e que nos possam levar a declarar a nulidade dos despachos em causa.
- reportando-nos ao quadro normativo à luz do qual o arguido requereu o incidente de recusa (n.º 1 do artigo 43.º do Código de Processo Penal), analisados os actos processuais documentados nos autos, referidos supra, não se evidencia, ainda assim, que a continuação da intervenção do JIC de Leiria possa ser tida como parcial, pelos cidadãos em geral, na apreciação e decisão da matéria relativa às medidas de coacção aplicadas nos autos.
Ou dito de outro modo, as discordâncias do requerente quanto aos despachos proferidos no âmbito do processo, não constituem motivo sério de especial gravidade, segundo o senso e a experiência comuns, adequado a gerar a desconfiança sobre a imparcialidade do Mº JIC que tão bem se defendeu, invocando apenas a objectividade da prova e a sua livre apreciação.
Como vem repetidamente afirmando a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, «as meras discordâncias jurídicas com os actos processuais praticados ou com a sua ortodoxia, a não se revelar presciente, através deles, ofensa premeditada das garantias de imparcialidade, só por via de recurso podem e devem ser manifestadas e não através de petição de recusa.
(…).”
Em conclusão, o acórdão recorrido apreciou as questões relativas à aquisição de prova por iniciativa do juiz na fase de recurso da decisão de aplicação de medidas de coacção apenas para o que releva no âmbito do incidente de recusa de juiz. Isto é, para saber se a denunciada condução do processo pelo juiz de instrução criminal constitui motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. Não se propôs decidir, nem decidiu, se tal actuação é processualmente válida ou se tais elementos de prova são atendíveis para a aplicação das medidas de coacção ou qualquer outro fim.
Deste modo, qualquer questão de constitucionalidade respeitante a tal actuação processual ou às normas ao abrigo das quais ela foi assumida só seria pertinente no âmbito do presente recurso se respeitasse a uma dimensão normativa que integrasse a norma do n.º 1 do artigo 43.º do CPP. Só isso contenderia com a ratio decidendi do acórdão recorrido. Com efeito, neste acórdão o Tribunal da Relação não decidiu se tais actos são válidos, mas se são integradores de uma intervenção suspeita, objectivamente geradora de desconfiança acerca da imparcialidade do juiz que assim actuou.
Assim, é forçoso concluir que não deve conhecer-se do objecto do recurso.
4. Decisão
Pelo exposto decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar o recorrente nas custas, com 12 UCs de taxa de justiça
Lisboa, 30 de Novembro de 2011.- Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.