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Processo n.º 899/11
Plenário
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Requerente e objecto do pedido
O Provedor de Justiça apresentou ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, um pedido de apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 14.º, n.os 1 e 3, 47.º, n.º 2, alínea a) e 58.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto.
O teor das normas questionadas é o seguinte:
Artigo 14.º
Proprietárias de farmácias
1 — Podem ser proprietárias de farmácias pessoas singulares ou sociedades comerciais.
2? ….
3 — As entidades do sector social da economia podem ser proprietárias de farmácias desde que cumpram o disposto no presente decreto-lei e demais normas regulamentares que o concretizam, bem como o regime fiscal aplicável às pessoas colectivas referidas no n.º 1.
Artigo 47.º
Contra-ordenações graves
2 — Constitui contra-ordenação punível com coima de € 5000 a € 20 000 o facto de:
a) A propriedade da farmácia pertencer a pessoa colectiva que não assuma a forma de sociedade comercial;
Artigo 58.º
Entidades do sector social da economia
As entidades do sector social da economia que sejam proprietárias de farmácias devem proceder, no prazo de cinco anos a contar da entrada em vigor do presente decreto-lei, às adaptações necessárias ao cumprimento dos requisitos previstos no artigo 14.º
2. Fundamentos do Pedido
O Provedor de Justiça fundamentou o seu pedido de declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, nos seguintes termos:
O Decreto-Lei n.° 307/2007, de 31 de Agosto, estabelece o regime jurídico das farmácias de oficina.
O diploma em apreço determina, como princípio geral, no respectivo art.° 14.°, n.° 1, que podem ser proprietárias de farmácias pessoas singulares ou sociedades comerciais.
Concomitantemente, esclarece aquele decreto-lei, no n.° 3 do mesmo art.° 14.°, que “as entidades do sector social da economia podem ser proprietárias de farmácias desde que cumpram o disposto no presente decreto-lei e demais normas regulamentares que o concretizam, bem como o regime fiscal aplicável às pessoas colectivas referidas no n. 1”, ou seja, às sociedades comerciais.
Na decorrência das regras mencionadas, estabelece o legislador, no art.° 47.º n.° 2, alínea a), do diploma, que constitui contra-ordenação (grave, punível com coima de € 5000 a € 20000, a que podem acrescer as sanções acessórias elencadas no art.° 49.°) o facto de a propriedade da farmácia pertencer a pessoa colectiva que não assuma a forma de sociedade comercial.
Finalmente, e em sede de disposições finais, vem o legislador, no artigo 58.º obrigar as entidades do sector social da economia que sejam proprietárias de farmácias à data da entrada em vigor do diploma, a procederem, no prazo de cinco anos a contar da sua entrada em vigor, às adaptações necessárias ao cumprimento dos requisitos previstos no art.° 14.°, a que acima se fez referência.
As regras do Decreto-Lei n.° 307/2007, que definem as entidades que podem ser proprietárias de farmácias e constam do seu art.° 14.°, n.os 1 e 3 (na parte relativa ao regime fiscal), e as regras que decorrem da imposição daquele estatuto (para o que aqui interessa, constantes dos art. os 47.º, n.° 2, alínea a), e 58.° do diploma), assumidamente visam excluir as entidades do denominado sector social da economia da possibilidade de, enquanto entidades com a referida natureza, exercerem a actividade económica da venda de medicamentos e demais serviços prestados pelas farmácias.
É o que claramente resulta do preâmbulo da lei: 'Com o presente diploma, impõe-se a alteração da propriedade das farmácias que actualmente são detidas, designadamente, por instituições particulares de solidariedade social. No futuro, estas terão de constituir sociedades comerciais, em ordem a garantir a igualdade fiscal com as demais farmácias'.
O legislador exclui, pois, a possibilidade por parte das entidades do sector social de serem, enquanto tais (isto é na sua qualidade própria de entidades do sector social), proprietárias de farmácias.
As normas contidas nos artigos 14.º, n.º 1 e 3, 47.º, n.º 2, alínea a) e 58.º do Decreto-Lei n.º 307/2007 mostram-se contrárias ao princípio da igualdade e ao princípio da proporcionalidade, bem como às normas da Constituição que visam a tutela e a promoção da actividade das entidades incluídas no denominado sector social e cooperativo, como sejam as que decorrem dos art. os 61.°, n. os 2 e 3, 63.°, n.º 5 e, muito especialmente, da garantia institucional da coexistência dos sectores público, privado e cooperativo e social, estabelecida no art.° 82.° da Constituição.
A exclusão das entidades do sector social do acesso à propriedade das farmácias implica, desde logo, uma violação do princípio da igualdade.
A este propósito, mostra-se relevante chamar à colação a jurisprudência do Tribunal Constitucional, designadamente constante dos Acórdãos n.os 635/2006 e 236/2005.
Estavam aí em causa normas legais que impediam as associações mutualistas de, em benefício dos seus associados, exercerem a actividade funerária. O Tribunal Constitucional entendeu não existir “fundamento legítimo e racional para o tratamento discriminatório das associações mutualistas relativamente ao exercício da actividade funerária”.
Não havia, portanto, razão suficiente para excluir as associações mutualistas de uma actividade, obrigando-as a assumir a forma societária.
De igual forma, o legislador não pode, como pretende com a actual lei, vedar às instituições de solidariedade social o direito à propriedade de farmácias, obrigando-as a “travestir-se” de sociedades comerciais se quiserem prosseguir uma actividade de saúde, com finalidades sociais, ou seja, não lucrativas.
As normas impugnadas do Decreto-Lei n.º 307/2007 violam, também, o princípio da proporcionalidade.
De facto, a imposição de determinado estatuto jurídico — de sociedade comercial — às entidades do sector social proprietárias de farmácias não passa a exigência de proporcionalidade no confronto com as duas ordens de razões que, segundo o preâmbulo do diploma, motivaram o legislador a estabelecer a referida solução legal: a possibilidade de ser efectivado um apertado controlo administrativo da titularidade das farmácias (uma vez que a titularidade das farmácias está quantitativamente limitada a um máximo de quatro por pessoa colectiva), e a salvaguarda da igualdade fiscal entre as entidades das mesmas detentoras.
Desde logo, não se vislumbra de que modo essa imposição da forma de sociedade comercial possibilita um controlo administrativo mais eficaz da titularidade da propriedade das farmácias, designadamente tendo em vista a fiscalização do cumprimento da regra, ínsita no art.° 15.°, n.° 1, do mesmo Decreto-Lei n.° 307/2007, que obriga a que nenhuma entidade possa deter ou exercer, em simultâneo, directa ou indirectamente, a propriedade, a exploração ou a gestão de mais de quatro farmácias.
Na verdade, sendo tarefa do Estado, atribuída pela Constituição designadamente no respectivo art.° 63.°, n.° 5, a fiscalização, nos termos a concretizar na lei, da actividade e do funcionamento das instituições particulares de solidariedade social e de outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo, tal atribuição fundamental do Estado, imposta pela Constituição, seria suficiente para permitir o controlo administrativo eficaz de que fala o legislador no preâmbulo do Decreto-Lei n.° 307/2007.
Também não cumpre o pressuposto da proporcionalidade o objectivo assumido pelo legislador de colocar em situação de igualdade fiscal todas as entidades proprietárias de farmácias, objectivo que tem naturalmente implícitas preocupações que se associam à garantia da concorrência num mercado de iniciativa privada.
Antes de mais, não se mostra tal solução adequada, na medida em que a questão da concorrência do sector social e cooperativo designadamente com o sector privado se porá, da mesma forma, em qualquer actividade económica, e não só na venda de medicamentos, no quadro próprio da existência e funcionamento destes sectores: o sector social, visando objectivos de solidariedade social; o sector privado, garantido pelo “funcionamento eficiente dos mercados”, através da “equilibrada concorrência entre empresas” (cf. art.° 81.º, alínea f), da Constituição).
A concorrência não obriga a que todas as pessoas que exerçam a mesma actividade assumam a mesma forma jurídica. Por exemplo: para que uma entidade social fosse proprietária ou gerisse um lar de idosos ou um hospital, haveria a mesma de constituir-se em sociedade comercial? Poderá o Estado forçar a igualizar, pelo “mercado”, realidades históricas que nunca pertenceram ao “mercado” das empresas?
O regime fiscal, podendo em teoria constituir um elemento com relevância para efeitos da concorrência, não tem uma influência diferente na actividade farmacêutica do que nas restantes actividades abertas aos sectores privado e social — desde logo, da distribuição grossista de medicamentos —, e em que o exercício é feito de forma concorrencial.
Ou seja, a questão da concorrência entre os sectores privado e social não tem contornos específicos na actividade farmacêutica que não assuma noutras actividades económicas, e que justifique que as entidades do sector social não possam, nesta qualidade, exercer aquela actividade, no âmbito dos seus fins próprios.
Acresce que, designadamente o Código do IRC prevê, no seu artigo 10.°, n.º 2 e 3, um conjunto de regras que, ao excluírem a isenção prevista no n.º 1, do mesmo artigo, precisamente visam anular ou atenuar os benefícios em sede de IRC de que gozam as instituições em causa quando, no exercício da respectiva actividade, actuem em domínios em que a concorrência, designadamente com o sector privado, deva ser garantida, alcançando-se a convergência, ou mesmo igualdade, de armas no domínio fiscal, sempre que estas se justificarem.
Estas regras, no caso em sede de IRC, garantem, por si, uma solução equilibrada na aplicação da vantagem fiscal assumidamente concedida pelo Estado às instituições sem fins lucrativos, de resto em cumprimento de norma constitucional expressamente vinculativa nesse sentido, concretamente o art.° 63.°, n.° 5, da Constituição.
A opção de impedir que as entidades do sector social possam, enquanto entidades com esta natureza, exercer a actividade farmacêutica, revela-se pois desproporcionada ao fim que visa atingir.
As normas impugnadas violam, por fim, a garantia institucional da coexistência de três sectores de propriedade dos meios de produção:
O art.° 82.°, n.° 1, da Constituição, garante a coexistência de três sectores de propriedade dos meios de produção — público, privado, e cooperativo e social, tal como definido no n.° 4, designadamente incluindo os meios de produção possuídos e geridos por cooperativas e os meios de produção possuídos e geridos por pessoas colectivas, sem carácter lucrativo, que tenham como principal objectivo a solidariedade social.
Por tudo o que acima resulta exposto, facilmente se conclui pela inexistência de interesse público, com relevância constitucional, que possa ter justificado a exclusão, operada designadamente pelas normas do art.° 14.°, n.° 1 e 3 (segmento indicado), do Decreto-Lei n.° 307/2007, da possibilidade de exercício, pelas entidades do sector social, enquanto tais, da actividade económica da venda de medicamentos — e demais serviços que podem ser prestados pelas farmácias —, constituindo tal exclusão uma violação da garantia institucional da coexistência de três sectores de propriedade dos meios de produção a que alude a norma do art.° 82.° da Lei Fundamental.
Nestes termos, pelos fundamentos expostos, requer ao Tribunal Constitucional que aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 14.°, n.os 1 e 3, esta no segmento que obriga as entidades do sector social a submeterem-se mesmo regime fiscal que as sociedades comerciais previstas no n.° 1, e, ainda que declare, a título consequencial, a inconstitucionalidade das normas dos artigos 47.º, n.° 2, alínea a), e 58.º, todas do Decreto-Lei n.° 307/2007, de 31 de Agosto, por violação do princípio da igualdade, do princípio da proporcionalidade, e da garantia institucional da coexistência de três sectores de propriedade dos meios de produção, respectivamente decorrentes dos artigos 13.º, 18.º, n.° 2 (e implicitamente do artigo 2.º, que contém a noção de Estado de direito democrático), e 82.º, n. os 1 e 4, da Constituição.
3. Resposta do órgão autor das normas
Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Primeiro-Ministro, em resposta, disse, no essencial o seguinte:
O Decreto-Lei n.° 307/2007, de 31 de Agosto estabelece um “quadro global e de enquadramento” das farmácias de oficina, permitindo a reorganização jurídica do sector.
Este decreto-lei pretende “equilibrar o livre acesso à propriedade e evitar a concentração, através de uma limitação, proporcional e adequada, a quatro farmácias”. Neste contexto, o controlo da propriedade e a concorrência entre farmácias surge, em primeira linha, como preocupação do legislador.
O diploma veio alterar aquilo que a Lei n.° 2125, de 20 de Março de 1965, consagrava no que respeita às entidades do sector social da economia, ampliando as suas possibilidades de exercício da actividade farmacêutica.
De facto na Lei n.° 2125, a propriedade das farmácias estava por norma reservada a farmacêuticos e, consequentemente, as entidades do sector social só a título excepcional e sob condições muito restritivas podiam ser proprietárias de farmácias.
Com efeito, nos termos do n.° 4 da Base II, da Lei n.° 2125, as misericórdias e outras instituições de assistência e previdência social poderiam ser proprietárias de farmácias, mas apenas para cumprimento das suas finalidades sociais e desde que tais farmácias se destinassem aos seus serviços privativos. Os artigos 44.º e 64.º do Decreto-Lei n.° 48547, por seu turno, esclareciam que só determinadas pessoas, fazendo prova da sua qualidade específica, poderiam abastecer-se nessas farmácias.
O n.º 5 da Base II da Lei n.° 2125 permitia que as instituições de solidariedade social detivessem farmácias abertas ao público, mas apenas quando houvesse interesse público na abertura de farmácia em determinado local ou na manutenção da já existente, e não aparecessem farmacêuticos interessados na sua instalação ou aquisição.
O regime jurídico anterior tratava pois com manifesto desfavor a dispensa de medicamentos pelas entidades do sector social da economia.
O esvaziamento do papel do sector social na dispensa de medicamentos através de farmácias privativas, abertas ou não ou público, resultava evidente do regime jurídico então vigente e traduzia-se no diminuto número de farmácias em funcionamento.
Ora, ao contrário do que sugere o requerimento do Senhor Provedor de Justiça, o novo regime jurídico das farmácias de oficina veio valorizar o sector social na dispensa de medicamentos e na prestação de serviços farmacêuticos.
Em primeiro lugar, garante o acesso das entidades do sector social da economia à propriedade de farmácias, respeitado que seja o limite legal de quatro farmácias.
Em segundo lugar, consente que às farmácias privativas existentes se aplique de imediato o regime instituído pelo Decreto-Lei n.° 307/2007, permitindo-lhes assim vender medicamentos ao público.
O legislador poderia ter mantido transitoriamente em vigor as regras da Lei n.° 2125 e do Decreto-Lei n.° 48547, sobre as farmácias privativas, e deixar que o decurso do tempo as extinguisse. Preferiu, no entanto, optar por uma solução legislativa que revitaliza globalmente o papel sector social na dispensa de medicamentos e na prestação de serviços farmacêuticos.
E esta revitalização — ao contrário do inevitável esvaziamento que a legislação anterior desenhava — permite que as entidades do sector social da economia continuem a dispensar medicamentos, exclusivamente aos seus utentes, ou, também, os dispensem ao público em geral, permitindo ainda transferir a localização da farmácia.
Com as soluções encontradas pela nova lei, procurou-se que a coexistência entre o sector privado e o sector social no mercado farmacêutico fosse norteada por uma equilibrada concorrência e não gerasse ou agravasse desigualdades.
E, ao invés do que pretende o Requerente, o Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, não viola o princípio da igualdade e, pelo contrário, garante a igualdade.
De facto, nada de aleatório ou arbitrário se encontra no artigo 14.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 307/2007.
Esta reforma ? no sentido da liberalização da titularidade de farmácias ? modifica um regime jurídico desadequado e injustificadamente limitador do acesso à propriedade, afastando as regras que a restringiam exclusivamente a farmacêuticos.
A novidade da solução legislativa e a sensibilidade da matéria obriga a que se verifique um apertado controlo administrativo da propriedade que, na perspectiva do legislador, só se consegue com a titularidade das farmácias por pessoas singulares ou por sociedades comerciais. Esta é a razão da escolha legislativa, o que nada tem de aleatório.
O requerimento do Senhor Provedor de Justiça insurge-se contra esta condição em relação à propriedade da farmácia porque entende que as entidades do sector social da economia são excluídas, enquanto entidades com a referida natureza, de exercerem a actividade de venda de medicamentos e demais serviços prestados pelas farmácias.
Todavia, importa clarificar que as normas do diploma, cuja constitucionalidade é posta em causa, não obrigam as instituições particulares de solidariedade social ou outras entidades do sector social a transformarem-se em sociedades comerciais para, se quiserem, prosseguirem uma actividade de saúde.
Diz-se, tão-só, que as entidades do sector social da economia devem, no futuro, constituir sociedades comerciais para explorar as farmácias; não se impõe, de forma alguma, que se transformem, elas próprias, em sociedades comerciais.
Pode o Senhor Provedor de Justiça discordar da solução material constante do artigo 14.º, n.° 1, mas tal não é suficiente para que se justifique a intervenção do Tribunal Constitucional em sede de princípio da igualdade na sua vertente de proibição do arbítrio ou criação de soluções aleatórias. Na verdade, «a proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade. A interpretação do princípio da igualdade como proibição do arbítrio significa uma autolimitação do poder do juiz, o qual não controla se o legislador, num caso concreto, encontrou a solução mais adequada ao fim, mais razoável ou mais justa.» (Acórdão n.° 187/90);
O Senhor Provedor de Justiça considera existir, ainda, violação do princípio da proporcionalidade.
Porém, o novo regime em nada interfere com o princípio da proporcionalidade.
Deve, desde logo, afirmar-se, que uma manifestação de escrupuloso respeito pelo citado princípio se encontra no artigo 58.°, ao prever que as entidades do sector social da economia que sejam proprietárias de farmácias devem proceder no prazo de cinco anos a contar da data da entrada em vigor do presente decreto-lei, às adaptações necessárias no cumprimento dos requisitos do artigo 14.º. O legislador confere um lapso de tempo longo para que as entidades do sector social possam preparar a sua integração no sistema-tipo do Decreto-Lei n.° 307/2007.
O Senhor Provedor de Justiça considera que não cumpre o pressuposto da proporcionalidade o objectivo assumido pelo legislador de colocar em igualdade fiscal todas as entidades proprietárias de farmácias, objectivo que tem naturalmente implícitas preocupações que se associam à garantia de concorrência num mercado livre, desde logo na medida em que as instituições particulares de solidariedade social e pessoas colectivas equiparadas estão sujeitas, nos termos do artigo 10.° do CIRC a um regime fiscal próprio.
Nos termos de tal preceito, as instituições particulares de solidariedade social que exploram farmácias e que vendem ou poderão vender, de acordo com o regime instituído pelo Decreto-Lei n.° 307/2007, medicamentos ao público, beneficiam de isenções fiscais relevantes.
Ora a liberdade de conformação legislativa, ao consagrar um regime de igualdade fiscal, orientou-se no sentido da valoração objectiva do princípio da concorrência enquanto princípio jurídico-positivo de organização económica com consagração constitucional (artigo 81.º, alínea f), da Constituição).
Acrescente-se, ainda, que a opção do legislador, ao garantir a igualdade fiscal entre todas as farmácias, visa, também, prevenir a infracção, sem justificação objectiva, das regras comunitárias sobre auxílios de Estado, nomeadamente as constantes do artigo 87.° do Tratado de Roma.
Pelos fundamentos expostos, conclui o Primeiro-Ministro, que não deverá ser declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de nenhuma das normas do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, agora impugnadas.
4. Junção de pareceres
Posteriormente à resposta do Primeiro-Ministro foi ainda requerida a junção de cinco pareceres jurídicos.
A junção dos pareceres foi admitida pelo Presidente do Tribunal.
Apresentado e discutido o memorando a que se refere o artigo 63.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre decidir de harmonia com o que então se determinou.
II. Fundamentação
5. Delimitação do pedido
O Provedor de Justiça pede ao Tribunal Constitucional que aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 14.°, n.os 1 e 3, esta última no segmento que obriga as entidades do sector social da economia a submeterem-se ao mesmo regime fiscal que as sociedades comerciais, e, ainda que declare, a título consequencial, a inconstitucionalidade das normas dos artigos 47.º, n.° 2, alínea a), e 58.º, todas do Decreto-Lei n.° 307/2007, de 31 de Agosto.
Apesar de as normas questionadas serem diversas, a lógica do pedido é comum (como o próprio facto de se invocarem inconstitucionalidades 'consequentes' revela), partindo ele duma determinada interpretação.
Segundo tal entendimento, o Decreto-Lei n.º 307/2007 veio obrigar as entidades do sector social da economia (as instituições particulares de solidariedade social e outras entidades de natureza semelhante) a constituírem sociedades comerciais para exercerem a actividade de farmácia, o que resultaria desde logo do artigo 14.º, n.º 1 (que estabelece que 'podem ser proprietárias de farmácias pessoas singulares ou sociedades comerciais'), conjugado com o artigo 47.º, n.º 2, alínea a) (que determina que constitui contra-ordenação 'a propriedade da farmácia pertencer a pessoa colectiva que não assuma a forma de sociedade comercial'), com o artigo 58.º (que daria às entidades do sector social o prazo de 5 anos para procederem às adaptações necessárias à sua equiparação às restantes pessoas colectivas proprietárias de farmácias e portanto às sociedades comerciais) e, ainda, com o preâmbulo do diploma que esclarece:'De facto, com o presente diploma impõe-se a alteração da propriedade das farmácias que actualmente são detidas, designadamente, por instituições particulares de solidariedade social. No futuro, estas terão de constituir sociedades comerciais, em ordem a garantir a igualdade fiscal com as demais farmácias.
Ainda que o artigo 14.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 307/2007, preveja, na sua primeira parte, que 'As entidades do sector social da economia podem ser proprietárias de farmácias (…)' - nenhuma norma do articulado da lei (mas apenas o preâmbulo) dizendo, directamente, que as entidades do sector social terão de constituir sociedades comerciais para serem titulares de farmácias - a conjugação deste n.º 3 com a norma sancionatória do artigo 47.º, n.º 2, alínea a), do diploma, e o preâmbulo, apontam, claramente, para o entendimento dado pelo Requerente às normas dos artigos 14.º, n.º 1, 47.º, n.º 2, alínea a) e 58.º, do Decreto-Lei n.º 307/2007, interpretação essa que é também inequivocamente confirmada pelo órgão autor das normas, na sua resposta.
O Requerente entende, pois, que são inconstitucionais os artigos 14.º, n.º 1, 47.º, n.º 2, alínea a) e 58.º, do Decreto-Lei n.º 307/2007, na medida em que impõem às entidades do sector social a constituição de sociedades comerciais para acesso à propriedade das farmácias.
Ao formular a sua pretensão, o requerente, ao mesmo tempo que pede que o Tribunal Constitucional declare a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 14.º, n.º 1 e 47.º, n.º 2, alínea a), e 58.º, pede também que seja declarada a inconstitucionalidade da norma contida na parte final do n.º 3 do artigo 14.º, do Decreto-Lei n.º 307/2007, pelas mesmas razões que justificariam a declaração de inconstitucionalidade quanto àqueles. Fá-lo por entender que neste segmento se obriga as entidades do sector social a submeterem-se ao mesmo regime fiscal que as sociedades comerciais previstas no n.º 1.
6. Garantia da coexistência dos sectores de propriedade dos meios de produção
Resulta da leitura conjugada de diversos preceitos do Decreto-Lei n.º 307/2007 que este diploma impõe às entidades do sector social o ónus de constituírem sociedades comerciais caso pretendam aceder à propriedade de farmácias.
Questiona, então, o Provedor de Justiça, se não estará posta em causa a garantia institucional da coexistência dos sectores de propriedade dos meios de produção (artigo 82.º da Constituição), uma vez que esta norma afectaria, em seu entender, o modo de intervenção no mercado de um desses sectores, o sector social, tal como definido no n.º 4.
Deve começar por se realçar a importância desta garantia da coexistência dos sectores: ela é uma garantia central no quadro da organização económica. São a este respeito elucidativos GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, ao comentarem o citado artigo 82.º da Constituição (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª ed., p. 975 e seg.)
“É este um dos preceitos-chave da “constituição económica” configurada na CRP. Ao garantir a coexistência de três sectores económicos (n° 1), com a mesma credencial constitucional, e ao delimitar com algum rigor os seus contornos, esta disposição consubstancia um dos princípios fundamentais da organização económica exarados no art. 80°, conferindo a esta o esqueleto que globalmente a enforma. A institucionalização dos três sectores, no mesmo plano, como estruturas necessárias do sistema económico constitucionalmente desenhado, atribui a este um carácter sui generis. O princípio da coexistência dos três sectores é de tal modo relevante, que ele faz parte do elenco dos limites materiais de revisão (art. 288°/f”).
Haverá então uma violação da garantia institucional da coexistência dos três sectores ? público, privado e social ? consagrada no artigo 82.º da Constituição?
O Decreto-Lei n.º 307/2007 veio liberalizar o mercado farmacêutico.
Antes dele, nos termos da Lei n.º 2125, só os farmacêuticos e, dentro de certos condicionalismos, as entidades do sector social, podiam ser proprietários de farmácias. A generalidade das pessoas não tinha acesso à propriedade das farmácias. Ela estava reservada a farmacêuticos e a entidades do sector social.
Agora, pelo contrário, admite-se que, para além dos farmacêuticos e das entidades do sector social (artigo 14.º, n.º 3, primeira parte), toda e qualquer pessoa singular ou sociedade comercial possa ser proprietária de uma farmácia (artigo 14.º, n.º 1). Mas, quanto às entidades do sector social, exige-se que, para tal, elas constituam sociedades comerciais, ou seja, apenas se admite que sejam proprietárias das farmácias por intermédio de sociedades comerciais.
De facto, segundo o Decreto-Lei n.º 307/2007, as entidades do sector social apenas poderão ser proprietárias de farmácias, não enquanto tal (enquanto entidades sem carácter lucrativo, vocacionadas para fins de solidariedade social), mas por intermédio de sociedades comerciais (ou seja, de pessoas colectivas que têm o lucro por finalidade).
Haverá, em virtude da imposição da forma de sociedade comercial, uma exclusão das entidades do sector social do exercício da actividade farmacêutica, correspondendo este ónus, na prática, a uma reserva da actividade farmacêutica ao sector privado?
E não se traduzirá isso mesmo numa violação da coexistência dos sectores?
A obrigatoriedade da forma societária não significa, por si só, nem uma exclusão do sector social do exercício da actividade farmacêutica, nem uma reserva desta actividade ao sector privado.
Na verdade, o sector social não é excluído do acesso à propriedade das farmácias, podendo a ela aceder, desde que por intermédio dessa forma comum que é a forma de sociedade comercial. As entidades do sector social não foram objecto duma exclusão e podem aceder, ainda que apenas indirectamente, à titularidade de farmácias.
Nenhum sector é excluído do acesso à propriedade das farmácias, não sendo a actividade farmacêutica reservada ao sector privado, pelo que não é posta em causa a coexistência dos sectores. Pelo contrário, a solução permite a coexistência do sector privado e do sector social no mercado farmacêutico.
A questão não é, pois, de acesso à titularidade das farmácias, visto que o sector social não é dele excluído, mas a da justificação objectiva da imposição do ónus de constituição de sociedades comerciais, a entidades do sector social que o legislador está obrigado a apoiar. Justificar-se-á este ónus, tendo em conta os fins que visa alcançar?
7. Proporcionalidade da limitação imposta no acesso do sector social à propriedade das farmácias e à actividade farmacêutica
Questionou o Provedor de Justiça se a solução do Decreto-Lei n.º 307/2007, ao obrigar as entidades do sector social a actuarem através de sociedades comerciais para o exercício da actividade de farmácia, não padeceria de desproporcionalidade em vista dos fins que visa alcançar.
Como se viu, das normas em apreciação não decorre a inibição do acesso pelas entidades do sector social à propriedade das farmácias e ao exercício da actividade farmacêutica típica, de dispensa de medicamentos e prestação de serviços farmacêuticos. Elas fixam uma condição para o acesso, que fica dependente da constituição, por estas entidades, duma nova pessoa colectiva, sob a forma de sociedade comercial.
O que resulta da solução imposta, é que estas entidades são obrigadas a desenvolver a actividade farmacêutica despidas das suas vestes próprias e sem as vantagens inerentes ao sector social. O que conduz a que tenha de se ponderar, como pediu o requerente, se tal solução não constituirá uma limitação excessiva, tendo em conta o objectivo de «salvaguardar a salutar concorrência entre farmácias» (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 307/2008).
Ora, cabe na liberdade de conformação legislativa a definição dos mecanismos utilizados para salvaguardar uma justa concorrência, incumbência prioritária do Estado no âmbito económico e social, com previsão no artigo 81.º, alínea f) da Constituição, no qual se estabelece que o Estado deve: «assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas». Mas, no exercício dessa conformação, o legislador não pode desrespeitar, para além do admissível, a protecção devida ao sector social, que está obrigado a apoiar (art. 63.º, n.º 5 da Constituição).
Com o Decreto-Lei n.º 307/2007, o legislador garantiu o exercício da actividade farmacêutica às entidades do sector social. Mas quis o diploma assegurar que, no mercado, aberto e concorrencial, todos os operadores estivessem obrigados pelas mesmas regras. Com o intuito de garantir a igualdade no exercício da actividade farmacêutica entre as entidades do sector social e todos os restantes agentes do mercado farmacêutico foi imposta a obrigação da intermediação de sociedade comercial. Com tal exigência, o legislador procurou o justo equilíbrio, permitindo, por um lado, o acesso das entidades sociais à titularidade das farmácias, justificado por razões de interesse público, previstas no artigo 63.º, n.º 5, da Constituição. Mas, por outro lado, o legislador salvaguardou o princípio constitucional da igualdade de concorrência com os demais operadores, evitando, num cenário de disputa de mercado, as vantagens concorrenciais que resultariam da titularidade directa de farmácias pelas entidades sociais.
A exigência da intermediação duma sociedade comercial, para que possam os entes sociais intervir no mercado farmacêutico, coloca-os em situação de igualdade face aos demais operadores da venda a retalho de medicamentos e de prestação de serviços farmacêuticos. Deste modo, o legislador uniformiza o regime a que estão sujeitos os titulares de farmácias, negando uma especial diferenciação às entidades sociais, que deixam de poder gozar do seu regime privilegiado.
A adopção do formato jurídico da sociedade comercial neutraliza vantagens ou benefícios dos entes sociais relativamente aos restantes operadores. Embora essas formas de apoio do Estado ao sector social se alicercem em razões de interesse público, elas deixam de encontrar justificação quando os entes sociais actuem no mercado livremente concorrencial, fora do espaço próprio do seu sector.
Pretendendo a lei garantir uma equilibrada concorrência - enquanto finalidade legítima em vista do quadro de valores constitucionalmente protegidos -, para tal desejando impor iguais condições para todos os intervenientes no mercado farmacêutico, então, a obrigação generalizada da forma de sociedade comercial, como forma comum, é um meio apto à prossecução daquela finalidade.
E não será, no entanto, uma medida desnecessária, se tivermos em conta que do n.º 3 do artigo 14.º sempre resultaria a sujeição ao regime fiscal das sociedades comerciais? A resposta é, igualmente, negativa: forçando à constituição de sociedades comerciais, o legislador não se vê obrigado a alterar todas as diferentes normas que distinguem as entidades do sector social (e não apenas do ponto de vista fiscal), somente para efeitos do exercício da actividade farmacêutica, no que sempre ficaria sujeito à contingência de lacunas e omissões. A obrigação de constituição duma sociedade comercial permite impor, em bloco, um mesmo regime a todos os agentes do mercado farmacêutico.
Poderá duvidar-se, ainda, do equilíbrio da medida: estará a lei, ao promover a justa concorrência, a ponderar devidamente (ou seja, do ponto de vista da sua proporcionalidade em sentido estrito) as finalidades do sector social, que justificam a sua existência e a especial protecção de que goza?
Na verdade, o legislador, ao permitir que a actividade farmacêutica seja realizada através duma pessoa colectiva de que é titular uma entidade sem fins lucrativos, matricialmente ligada a objectivos de solidariedade social (art. 82.º, n.º 4, alínea d), da Constituição), abrindo-lhe a oportunidade de participação no mercado, a par com os demais operadores, contribui já para promover a prossecução dos seus fins de utilidade pública, o que certamente cabe no disposto no n.º 5 do artigo 63.º da Constituição da República Portuguesa (CRP): “O Estado apoia (…) a actividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social e outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo”.
Mas, por outro lado, o objectivo de impor a todos os operadores do mercado o respeito pelas regras da livre concorrência justifica, quando tal actividade farmacêutica seja realizada no mercado, a obrigatoriedade da constituição duma sociedade comercial para a ela aceder, o que, para aqueles entes sociais, se traduz na neutralização das vantagens que adviriam da sua condição de entidade social, e na onerosidade inerente.
A protecção constitucional deste sector dos meios de produção não impede o legislador de, nestes casos, o submeter aos requisitos exigidos para os demais operadores, em nome da equilibrada concorrência entre agentes económicos.
Assim sendo, numa actividade aberta ao mercado e à concorrência, esta solução de compromisso entre o apoio às entidades sociais e a igualdade de concorrência, não onera de forma imponderada as referidas entidades do sector social no acesso à titularidade de farmácias, encontrando justificação na protecção constitucional do equilíbrio do mercado concorrencial.
8. Proporcionalidade da limitação imposta no acesso do sector social à propriedade das farmácias e à actividade farmacêutica quando actuem no seu espaço próprio
O que se deve, porventura, ainda questionar, na perspectiva do respeito pela proibição do excesso, é se, atendendo aos fins ambicionados, não será desproporcionada a imposição da forma societária enquanto requisito para que as entidades do sector social possam ser titulares de farmácias, mesmo quando, através delas, desejem prosseguir a actividade farmacêutica no seu espaço próprio, fora do mercado, sem fins lucrativos, com puros objectivos de solidariedade social.
Com o intuito de proteger a livre concorrência, a imposição indiferenciada da obrigatoriedade da constituição de sociedades comerciais – requisito para o acesso à actividade farmacêutica - retirou às entidades sociais a possibilidade de se dedicarem a tal actividade, enquanto entidades sociais (visando objectivos de solidariedade social, sem fins lucrativos), nas suas vestes próprias, e com os inerentes benefícios, mesmo quando essa actividade tenha lugar em circunstâncias não concorrenciais. Ainda que tal actividade se mantenha circunscrita ao sector social, e se realize para exclusivo benefício dos seus utentes, sem concorrer com os restantes operadores, às entidades sociais é imposta a intermediação duma sociedade comercial para seu exercício.
Ora, não se pode considerar como sendo uma medida respeitadora do princípio da proibição do excesso, aquela que se traduz na imposição do ónus de os entes sociais constituírem artificiosamente sociedades comerciais, somando estruturas e custos, quando esse ónus, justificado com o objectivo de promover a concorrência, e de colocar em pé de igualdade todos os operadores do mercado, se estenda às situações em que a actuação dos entes sociais tem lugar, precisamente, fora do mercado.
Neste quadro, já será excessivo o legislador obrigar à constituição de sociedades comerciais.
Tal solução é desequilibrada, desde logo porque, quando a titularidade da farmácia e o correspondente exercício da actividade farmacêutica tenha lugar a favor dos beneficiários da entidade social, não concorrendo com os operadores no mercado, o objectivo de garantia da igualdade de concorrência perde razão justificativa, sendo desajustada a imposição da forma jurídica societária.
Nestas circunstâncias, o encargo de descaracterização imposto aos entes sociais quando actuem fora do mercado - resultante da obrigatoriedade da criação de sociedade comercial -, não encontra justificação consistente nos pretendidos objectivos de equilíbrio da concorrência.
Se os entes sociais actuam fora do mercado, para cumprimento dos fins estatutários que lhes estão associados - e devendo, por isso, improceder a invocação da garantia da livre concorrência na modelação do seu regime de actuação -, o interesse público que realizam retoma a plenitude do seu peso. Inexistindo razões ponderosas que justifiquem a intermediação do formato societário, não lhes deve ser retirado um tratamento de favor que decorrerá da obrigação que o Estado tem de apoiar sector social (art. 63.º, n.º 5, da CRP).
Por outro lado, devendo a garantia institucional da coexistência dos sectores de produção (privado, público e social) ser vista como assegurando que cada um deles, com as suas características identitárias específicas, possa actuar nos diversos âmbitos de actividade que lhe são próprios, será excessivo impor ao sector social que actue no seu espaço normal, fora do mercado, sem que se possa apresentar com a sua natural identidade.
Em suma, atendendo aos fins que visa alcançar - e às exigências resultantes do n.º 5 do artigo 63.º da Constituição -, a solução legislativa adoptada, ao obrigar os entes sociais que pretendam desenvolver a actividade farmacêutica fora do mercado, à constituição de sociedades comerciais, revela-se uma solução que não observa as exigências de equilíbrio decorrentes do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Assim sendo, desnecessário se torna apreciar a violação do princípio da igualdade que também fundamentava o pedido apresentado pelo Provedor de Justiça.
9. A equiparação fiscal operada pelo n.º 3 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 307/2007
Quanto ao artigo 14.º, n.º 3, parte final, do Decreto-Lei n.º 307/2007, ao estabelecer que é aplicável, como condição de acesso à propriedade de farmácias por parte das entidades do sector social, o regime fiscal previsto para as sociedades comerciais, faz aplicar esse regime, não às entidades do sector social em si mesmas, mas às sociedades comerciais que estas constituíram para o exercício da actividade farmacêutica. O segmento não opera, por isso - ao contrário da leitura sustentada pelo requerente - a imposição dum novo regime fiscal àquelas entidades, antes esclarecendo que as sociedades comerciais que aquelas devam constituir para poderem ser proprietárias de farmácias, se sujeitam ao regime fiscal típico das sociedades comerciais.
Ora, neste entendimento da norma, distinto do invocado pelo requerente, apenas é possível sustentar-se que o âmbito de aplicação da norma do n.º 3 é determinado pela amplitude da declaração de inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do art. 14.º, e somente nessa medida a afecta.
Nas situações em que se considerou ser admissível obrigar as entidades sociais à criação de sociedades comerciais, como condição para a propriedade de farmácias, nada obsta a que a estas sociedades comerciais seja aplicado o regime fiscal regra, próprio destas pessoas colectivas.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 14.º, n.º 1, 47.º, n.º 2, alínea a), e 58.º, do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, na medida em que impõem às entidades do sector social que, no desempenho de funções próprias do seu escopo, constituam sociedades comerciais para acesso à propriedade das farmácias, por violação do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito (consagrado no artigo 2.º da Constituição), conjugado com o artigo 63.º, n.º 5, da Constituição;
não declarar a inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto.
Lisboa, 13 de Dezembro de 2011.- Catarina Sarmento e Castro – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão – Maria Lúcia Amaral – João Cura Mariano – Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – com declaração – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, de acordo com a declaração anexa) – Rui Manuel Moura Ramos. Vencido quanto à alínea b) da decisão, de acordo com a declaração anexa. – Tem voto de conformidade o Exmo. Juiz Conselheiro José Borges Soeiro que não assina por, entretanto, ter deixado de fazer parte do Tribunal. – Catarina Sarmento e Castro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Voto a presente decisão com o esclarecimento de que, ao contrário do que ocorria no caso tratado no Acórdão n.º 635/2006, a actividade tutelada pela norma não envolve os riscos de saúde pública que, em meu entender, justificavam, naquele caso, a opção do legislador por uma solução restritiva do exercício dessa actividade. Com efeito, a imposição às entidades do sector social da economia da forma de sociedade comercial para a mera titularidade da propriedade de farmácia restringe a actividade e o funcionamento das instituições de solidariedade social sem justificação válida, o que, face ao que dispõe o n.º 5 do artigo 63º da Constituição, é intolerável.-Carlos Pamplona de Oliveira.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Ainda que a 1.ª parte do n.º 3 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto enuncie a regra de que “as entidades do sector social da economia podem ser proprietárias de farmácias”, a ressalva contida na 2.ª parte da mesma norma (“desde que cumpram o disposto no presente decreto-lei”) obriga a uma articulação, além do mais, com o disposto no artigos 14.º. n.º 1, 47.º, n.º 2 e 58.º do mesmo diploma, do que resulta uma prescrição de alcance exactamente contrário: as entidades do sector social, não podem, enquanto tais, ser proprietárias de farmácias. O que elas podem é ser titulares de sociedades comerciais, sociedades estas que, por sua vez, nos termos gerais (n.º 1 do artigo 14.º), podem ser proprietárias de farmácias. Formulada pela positiva, o que avulta da regra, sistematicamente integrada, é a sua dimensão negativa, a proibição, sem qualquer excepção, de que uma pessoa colectiva que não revista a forma de sociedade comercial seja proprietária de farmácias.
É precisamente a submissão das entidades do sector social que exercitem (ou queiram exercitar) actividades farmacêuticas a um regime geral, a um tratamento indiferenciado, em tudo análogo ao dispensado aos agentes mercantis que operem no sector, sem qualquer consideração pela natureza e as finalidades próprias dessas entidades, que suscita a questão de constitucionalidade decidida pelo presente acórdão.
Dentro da categorização tripartida dos sectores de propriedade dos meios de produção, estabelecida pelo artigo n.º 82.º da CRP, o sector cooperativo e social compreende, nos termos do n.º 4, sujeitos diferenciados, de estrutura e finalidades heterogéneas. Tendo em conta a natureza da actividade aqui em causa, o regime do Decreto-Lei n.º 307/2007 contende muito particularmente (se não exclusivamente) com as pessoas colectivas referenciadas na alínea d), ou seja, as “pessoas colectivas, sem carácter lucrativo, que tenham como principal objectivo a solidariedade social”.
As instituições particulares de solidariedade social não são apenas objecto da garantia institucional, de existência e permanência, conferida pelo artigo 82.º Sem esquecer que a “protecção do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção” se conta entre os princípios fundamentais da organização económica do Estado (alínea f) do artigo 80.º), o subsector das instituições de solidariedade social, enquanto coadjuvante da acção estadual na prestação de serviços e fornecimentos de bens que efectivam direitos sociais, mormente os referidos no n.º 5 do artigo 63.º, é credor do apoio do Estado, como expressamente comina esta disposição. A obrigatoriedade de mediação da forma societária para o exercício da actividade farmacêutica contraria ambas as componentes normativas do estatuto constitucional desses entes. Há que ver se procedem razões constitucionalmente credenciadas para tanto.
Com a garantia de coexistência dos três sectores – privado, público e social e cooperativo – não é apenas a uma permissão de titularidade que o Estado se vincula. Essa garantia importa a obrigação de respeito pelas características específicas de cada um deles, pelos traços identitários que lhes são próprios e que os distinguem dos restantes.
Ao impor a constituição de sociedades comerciais, para o exercício, em forma colectiva, da actividade farmacêutica, o regime questionado uniformiza as condições estruturais de organização e funcionamento dessa actividade, exigindo universalmente uma subjectivação da empresa nos moldes próprios da iniciativa privada. Tal significa, inevitavelmente, a dessubstancialização, nesta área, do sector social, pois as entidades que o integram e que, na consecução do seu escopo, realizem prestações de medicamentos são submetidas a uma artificiosa operação de reconversão, que verdadeiramente as desfigura, tornando-as indistintas, quanto ao modus operandi, das pessoas colectivas que nada mais visam que não o lucro para apropriação privada.
Há que atentar, na verdade, na real natureza do impacto causado, por esta medida, na garantia de integridade do sector social constitucionalmente outorgada. Não estamos em face de uma pontual limitação da liberdade de escolha dos meios e processos de actuação, circunscrita a um determinado aspecto da organização da esfera funcional das pessoas colectivas integrantes do sector social, que não deixariam, por via disso, de intervir nessa mesma qualidade. Estamos antes perante a imposição, como modo de ser obrigatório para credenciar o desenvolvimento de qualquer actividade na área da assistência e da comercialização medicamentosas, de uma configuração subjectiva que, por não corresponder à que é timbre da do sector social, obriga à constituição de um novo ente: a sociedade comercial, a forma típica de actuação privada no mercado.
Bem vistas as coisas, esta forçosa interposição de um novo sujeito jurídico, que, independentemente da sua adaptabilidade a objectivos distintos do lucro privado, não corporiza a identidade singular e específica do sector social, significa que a este é vedada a liberdade, não apenas de organização, mas de acesso directo à titularidade de farmácias. Só despidas das suas vestes próprias, e com a adopção de uma forma jurídica descaracterizada, do ponto de vista dos fins sociais que perseguem, é que as instituições deste sector podem aceder indirectamente (através da propriedade de sociedades comerciais) ao exercício de farmácias. O que representa – não há como contestá-lo – uma delimitação negativa do sector social.
Esta afectação não assinala, sem mais, uma violação da garantia institucional estabelecida no artigo 82.º da Constituição, pois a mesma não pode ser entendida como a garantia de um determinado âmbito operativo, nem sequer nas áreas mais tradicionais de intervenção da solidariedade social. Mas obriga a uma justificação (cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 4.ª ed., p. 976 e 977).
Essa justificação não pode radicar na ontologia da própria actividade, não pode firmar-se na natureza intrínseca da actividade de fornecimento de medicamentos. De facto, nada há nela que aponte para exigências que só a forma da sociedade comercial pode satisfazer, ou, mesmo, satisfazer mais adequadamente.
Pelo contrário. Ela não é, nunca foi, considerada uma pura actividade comercial, mas antes uma actividade de interesse social directo e imediato, pelo seu contributo indispensável à prestação de cuidados de saúde. Daí que, não estando subtraída ao comércio lucrativo, a actividade de farmácia tenha sido sempre objecto de uma intensa regulação condicionante – mais estrita, anteriormente ao Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, mas mantida, em aspectos importantes, no âmbito de vigência deste diploma.
O atendimento do relevo social do acesso aos medicamentos tinha, aliás, expressão eloquente no regime anterior ao Decreto-Lei n.º 307/2007. Estando então a propriedade de farmácias reservada, em princípio, a farmacêuticos, os n.ºs 4 e 5 da Base II da Lei n.º 2125 abriam uma excepção para as misericórdias e outras instituições de assistência e previdência social, que poderiam deter farmácias destinadas aos seus serviços privativos e também farmácias abertas ao público, desde que, quanto a estas, houvesse interesse público no seu funcionamento em determinado local e não aparecessem farmacêuticos interessados na sua instalação ou aquisição.
Dificilmente se poderá contestar que a actividade farmacêutica se apresenta como um terreno “natural” de actuação das entidades que, movidas por fins de solidariedade, se dedicam a promover a saúde, particularmente a de cidadãos que merecem uma reforçada protecção constitucional. Por identidade do objecto dessa actividade e do escopo social dessas entidades, ou, pelo menos, por força de conexões materiais e instrumentais evidentes entre um e outro, as formas estruturais de organização e a lógica de funcionamento próprias do sector social mostram-se perfeitamente adequadas à satisfação dos interesses dessa natureza que, nesta área, se fazem sentir. Só pela eventual atribuição de prevalência a um interesse ou valor conflituantes de outra natureza se poderá justificar que o legislador estabeleça uma reserva de sociedade comercial, quanto ao exercício colectivo da actividade farmacêutica, dela excluindo as entidades do sector social.
O Acórdão encontra essa justificação “na protecção constitucional do equilíbrio do mercado concorrencial”. E, de facto, corresponde a uma das “incumbências prioritárias do Estado”, fixadas no artigo 81.º da CRP, “garantir a equilibrada concorrência entre as empresas” (alínea f)). Para além dessa garantia, como modo de “assegurar o funcionamento eficiente do mercado” manda aquela norma “contrariar as formas de organização monopolistas” e “reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral”.
Mas a ponderação global e integrada do conjunto destas indicações normativas é, desde logo, suficientemente elucidativa de que não se teve em vista salvaguardar uma concorrência perfeita entre as empresas do sector social e do sector privado. O que se teve em mira foi refrear o poder económico privado e combater as práticas restritivas da concorrência que ele propicia.
Ademais, essa incumbência tem que ser conjugada com a apontada em primeiro lugar, na alínea a) do artigo 81.º Aí se estabelece que incumbe ao Estado «promover o aumento do bem-estar social e económico e da qualidade de vida das pessoas, em especial das mais desfavorecidas (…)». O que, só por si, pode justificar um tratamento privilegiado das entidades que, perseguindo objectivos de solidariedade social, dão um contributo significativo para a consecução destes fins.
De tudo resulta que, mesmo numa valoração restrita ao quadrante normativo da organização económica, em que a garantia da concorrência se insere, esta não pode ser entendida como um valor prevalecente, em termos absolutos, tendo um alcance relativizado pela incidência de valores e interesses de outra ordem.
Se considerarmos também o específico imperativo de apoio às instituições particulares de solidariedade social, enunciado no n.º 5 do artigo 63.º, reforça-se a convicção de que não tem suporte constitucional um tratamento perfeitamente igualitário das organizações empresariais que visam o lucro para apropriação privada e das entidades que, na realização do seu escopo de solidariedade social na área da saúde, prestam medicamentos. Não tem correspondência no desenho constitucional a defesa, que subjaz ao regime questionado e que o Acórdão também acolhe, de uma espécie de posição de neutralidade do legislador perante essas duas categorias distintas de sujeitos, sujeitando ambas ao livre jogo concorrencial, dentro de uma pura lógica de “disputa de mercado”.
E, se esse juízo de desconformidade tem fundamento, com particular evidência, no que se refere às farmácias sociais, que prestam assistência medicamentosa restrita aos beneficiários das instituições proprietárias (domínio a que se cingiu a declaração de inconstitucionalidade expressa na alínea a) da decisão), também o tem, a meu ver, no que toca às farmácias abertas ao público.
Não pode dizer-se, como consta do Acórdão, que, quanto a estas, os entes sociais actuam “fora do espaço próprio do seu sector”. Há que ver, em primeiro lugar, que uma separação estanque dos dois campos é algo que cria obstáculos a uma eficiente satisfação dos interesses sociais abrangidos pelo escopo. A abertura ao público permite ganhar dimensão, com a consequente redução de custos, sem impedir a dispensa aos beneficiários, nessas mesmas farmácias, de medicamentos em termos diferenciados e condições mais vantajosas, em realização directa dos fins de solidariedade social. A exploração de uma farmácia, como exercício de uma actividade económica no mercado, contém-se ainda dentro do âmbito do escopo social, não apenas de forma indirecta e instrumental, como meio de angariação de proventos a canalizar para fins assistenciais, mas também como meio de facilitação do acesso das populações ao medicamento. Esta directa utilidade social – que, como vimos, justificou uma das excepções contempladas na Lei n.º 2125, quanto à titularidade das farmácias por não farmacêuticos – ganhou, aliás, um novo relevo, com a permissão de mobilidade das farmácias, que faz escassear a oferta do medicamento em certas zonas territoriais.
De resto, a ideia de que o exercício de uma actividade económica no mercado por uma instituição de finalidade não lucrativa justifica, só por si, a imposição da forma jurídica societária leva-nos longe demais, pois deixa por explicar porque é que ela é obrigatória no sector farmacêutico e não na generalidade das outras áreas, em muitos casos de bem menor relevância social. Fica por apontar uma especialidade dos interesses envolvidos neste sector, a qual, de todo em todo, se não descortina.
Com essa obrigatoriedade, o legislador fez o contrário do que o n.º 5 do artigo 63.º lhe impunha: em vez de apoiar e de conceder vantagens operativas às instituições de solidariedade social actuantes neste sector, onera-as pesadamente com uma duplicação de estruturas e um acréscimo de custos, com que a iniciativa privada se não confronta.
E nem se diga que esse é o preço a pagar pela abertura da “oportunidade de participação no mercado”, como se lê no Acórdão, e que a solução representa “o justo equilíbrio, permitindo, por um lado, o acesso das entidades sociais à titularidade das farmácias”, salvaguardando, por outro, “o princípio constitucional da igualdade de concorrência com os demais operadores”. O Decreto-Lei n.º 307/2007 nenhuma faculdade concede a estas entidades – mormente a de participação no mercado – que elas já não detivessem ao abrigo do regime geral da sua capacidade, mesmo numa leitura estrita, hoje maioritariamente superada, do princípio da especialidade.
O que se nos depara é antes o sacrifício do interesse social, em nome da igualdade de concorrência, que não tem “peso” constitucional bastante para legitimar a solução. A perspectiva que tenho por correcta é a inversa, ou seja, são os valores de ordem social constitucionalmente tutelados pelo reconhecimento do sector cooperativo e social e pela injunção de apoio constante do n.º 5 do artigo 63.º que justificam algum desvio, a existir, a regras estritas de concorrência.
Por tudo o que fica dito, pronunciei-me no sentido de uma declaração de inconstitucionalidade das normas dos artigos 14.º, n.º 1, 47.º, n.º 2, alínea a), e 58.º do Decreto-Lei n.º 307/2007 com um objecto mais alargado, sem a restrição constante da alínea a) da decisão.
2. Desta posição decorre que também considero inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo 14.º, na parte em que faz incidir o regime fiscal aplicável às sociedades comerciais sobre as pessoas colectivas desta natureza a constituir obrigatoriamente pelas entidades do sector social actuantes na área farmacêutica. A inadmissibilidade do ónus de constituição dessas sociedades comerciais acarreta a inadmissibilidade de aplicação do regime correspondente, incluindo o regime fiscal.
Independentemente disso, creio que existe também fundamento de inconstitucionalidade orgânica, por desrespeito aos artigos 165.º, n.º 1, alínea i) e 103.º, n.º 2, da Constituição.
Ao determinar a aplicação do regime fiscal das sociedades comerciais, a norma impugnada faz as entidades do sector social perder as isenções fiscais de que gozam, implicando, pelo menos para as que, antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 307/2007, já exercitavam a actividade farmacêutica, uma alteração, no sentido do agravamento, da sua situação tributária. Ora, a lei de autorização (Lei n.º 20/2007) não faz qualquer menção específica, como seria necessário, a matéria fiscal, habilitando apenas, no artigo 2.º, à “fixação das condições de acesso à propriedade de farmácias”.
Esta autorização é insuficiente para a imposição da igualdade fiscal, não apenas o resultado, mas o objectivo declarado do Decreto-Lei n.º 307/2007. A inserção dessa alteração radical num enunciado que fixa as condições em que “as entidades do sector social da economia podem ser proprietárias de farmácias” não ilude a realidade substancial de que os rendimentos auferidos por essas entidades na exploração de farmácias, até aqui isentos, passam a recair no domínio de incidência de diversos impostos. Por isso mesmo, não fico convencido pelo argumento formal, utilizado no Acórdão, de que o segmento da norma não opera a imposição de um novo regime fiscal àquelas entidades «antes esclarecendo que as sociedades comerciais que aquelas devam constituir para poderem ser proprietárias de farmácias se sujeitam ao regime fiscal típico das sociedades comerciais».–Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti da presente decisão, tendo-me pronunciado por um juízo de inconstitucionalidade de alcance mais alargado que aquele a que o Tribunal chegou neste acórdão. Um juízo que sempre incluiria o artigo 14º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 307/2007 que, ao onerar as entidades do sector social com um regime fiscal que anteriormente lhes não era aplicável, se quisessem ser proprietárias de farmácias, opera uma mudança do regime fiscal daquelas instituições, sem que para tanto disponha da necessária cobertura da lei de autorização legislativa (a lei n.º 20/2007). Mas que também iria mais longe do que a declaração constante da alínea a) da decisão, omitindo a restrição de que ela aí é objecto. Com efeito, os preceitos que aí são mencionados obrigam à descaracterização das entidades do sector social, que ficam assim impedidas de nessa veste prosseguir os objectivos de solidariedade social que são os seus através da venda ao público de medicamentos, pondo deste modo em causa, sem fundamento material bastante, o reconhecimento devido àquelas entidades, nos termos do princípio da coexistência dos sectores de propriedade dos meios de produção, consagrado no artigo 82º, n.º 1, da Constituição.- Rui Manuel Moura Ramos.