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Processo n.º 711/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. interpôs recurso tendo por objecto a decisão instrutória, na parte em que julgou improcedente a arguição de nulidade das escutas telefónicas efectuadas ao longo do inquérito, com fundamento em incompetência do Tribunal Central de Instrução Criminal para autorizar a sua realização, validação e ulterior transcrição nos autos.
Por despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Central de Instrução Criminal, datado de 13.07.2010, o recurso não foi admitido, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 310.º, n.os 1 e 3, com referência ao artigo 399.º do Código de Processo Penal.
Inconformado, o arguido reclamou desse despacho para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, aí suscitando, na parte que releva para efeitos do presente recurso de constitucionalidade, duas questões de constitucionalidade.
Em primeiro lugar, suscitou o arguido a questão da inconstitucionalidade da norma contida nos artigos 5.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a) e b), 310.º, n.º 1, e 399.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a inadmissibilidade do recurso de decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação na parte em que aprecia nulidades e outras questões prévias ou incidentais, prevista na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto ao artigo 310.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, é aplicável aos processos instaurados antes da sua entrada em vigor. Entendeu o reclamante que tal norma, assim interpretada, viola os artigos 13.º, 18.º, n.º 2, 29.º, n.os 3 e 4 e 32.º, n.º 1 da Constituição e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Na reclamação apresentada, além de suscitar a questão de inconstitucionalidade do critério normativo sobre a aplicação da lei processual penal no tempo, suscitou ainda o arguido a questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 310.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que determina que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais. Entendeu o aí reclamante que tal norma, assim interpretada, viola os artigos 13.º, 18.º, n.º 2 e 32.º, n.os 1 e 2 da Constituição.
Por Decisão Singular do Exmo. Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, proferida em 23.09.2010, foi a reclamação indeferida.
2. É dessa decisão que é interposto o presente recurso de constitucionalidade.
Através dele pretende o recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie as duas questões de constitucionalidade anteriormente suscitadas e desatendidas.
3. Notificado para o efeito, o recorrente apresentou as suas alegações, concluindo do seguinte modo:
I. Com o despacho de 23 de Setembro de 2010, do Mmo. Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, que indeferiu a reclamação da não admissão de recurso da decisão instrutória, o Tribunal:
a. Admite a aplicação de lei processualmente menos favorável ao arguido com reconfiguração parcial da marcha possível do processo (impossibilitando o recurso da decisão instrutória);
b. Aplica a lei nova, tal como ficou redigida após Setembro de 2007.
II. Ou seja, além de aplicar o art.º 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que determina que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais,
III. Fá-lo com base num critério normativo de aplicação da lei processual-penal no tempo, nos termos do qual:
A redacção dada ao artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que determina que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, é aplicável aos processos instaurados antes da sua entrada em vigor, ainda que, no momento dessa entrada em vigor, já tenha havido constituição de arguido, já tenha sido deduzida acusação e já esteja a correr o prazo para requerer instrução.
IV. As questões que suscita o presente recurso já foram apreciadas num caso muito semelhante ao dos autos pelo Acórdão n.º 247/2009 desse mesmo venerando Tribunal Constitucional.
V. Entende o ora RECORRENTE que se acumulam (e tudo indica que se continuarão a acumular) razões para uma mudança da jurisprudência do Acórdão n.º 247/2009 desse venerando Tribunal Constitucional.
VI. Sendo evidente a relevância que a “acusação definitiva” ou pronúncia assume crescentemente no nosso sistema jurídico, seja através de mecanismos preventivos de coacção automáticos aplicáveis aos funcionários públicos e aos magistrados judiciais, seja através de mecanismos da protecção da dignidade institucional do Parlamento e do Governo, seja através, ainda, da assunção de um reforço indiciário formal do despacho de pronúncia na qualificação da insolvência.
VII. Não bastando para afastar a inconstitucionalidade a anestesiante invocação da actual redacção do n.º 2 do artigo 310.º do CPP.
VIII. É que, como recorda PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, a circunstância de o juiz de julgamento poder “rever” a decisão do juiz de instrução e “excluir” essa mesma prova, cuja validade tenha sido apreciada pelo juiz de instrução, consubstancia uma solução que «é refractária a toda a teoria do caso julgado formal e viola esta garantia constitucional (...). Em síntese, uma má solução quanto à irrecorribilidade do despacho instrutório que conhece de nulidades e questões prévia [sicJ ou incidentais conduziu em linha recta a uma solução jurídica extravagante de um dos problemas por ela criados.» (Comentário ao Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, 2009, art.º 310.º, § 11, p. 783).
IX. Mas, mais do que isso, é uma solução que torna inútil a instrução e a função do juiz que preside àquela fase processual.
X. Só o controlo jurisdicional é para a Constituição garantia para impedir a violação de outros direitos fundamentais protegidos também em sede de garantias do processo criminal (cfr. artigo 32.º, n.ºs 4 e 8, CRP).
XI. Ou seja, a judicialização da fase instrutória faz sentido, precisamente, para impedir a judicialização da fase instrutória faz sentido, precisamente, para impedir que a fase prévia ao julgamento decorra em violação, designadamente, do disposto no artigo 32.º, n.º 8, da CRP.
XII. Se tal violação ocorrer ainda perante o juiz de instrução, só o direito ao recurso permite garantir que a judicialização da instrução é efectiva e que, portanto, os direitos que a mesma pretende assegurar (designadamente os que são reflexamente tutelados no artigo 32.º, n.º 8, da CRP) são garantidos nessa mesma fase.
XIII. Sendo, dessa forma, violado o direito a uma fase, prévia ao julgamento, de judicialização da instrução (consagrado no artigo 32.º, n.º 4, da CRP), por inutilidade da referida judicialização enquanto garantia dos direitos fundamentais naquela fase, em virtude da assunção clara da possibilidade de manter tal violação até ao julgamento (ou seja, para além da fase cuja estrutura judicializada tem como propósito, precisamente, a reforçada tutela de direitos fundamentais!).
XIV. Não podendo deixar de se concluir, com o Conselheiro Mário José de Araújo Torres, que a admissibilidade do recurso visa a «protecção do “direito a não ser submetido a julgamento sem que estejam [regularmente (isto é, por meios de provas ilícitos)] comprovados indícios suficientes da prática de um crime”», consubstanciando, por isso, a actual redacção do artigo 310.º, n.º 1, do CPP uma violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP (veja-se o voto de vencido supramencionado, no seu último parágrafo).
XV. A negação do direito ao recurso em matéria de indiciação não é equiparável, no seu sentido e efeitos processuais, à negação do direito ao recurso quanto às questões prévias e incidentais (designadamente, a prova), desde logo, porque quanto a esta não existe a chamada “dupla conforme” entre a Acusação e a Pronúncia e, bem assim, porque a função da decisão instrutória quanto à indiciação – através da qual opera a fixação do “thema” da decisão apresentada ao tribunal de julgamento – não é idêntica à função da decisão instrutória na parte em que respeita às questões prévias e acidentais – que garantem a estabilidade processual necessária ao prosseguimento dos autos para a fase de julgamento.
XVI. Sendo certo que a violação do direito ao recurso e conexamente à judicialização da instrução permite a manipulação arbitrária do processo, já que, ficando na disponibilidade do juiz a escolha do momento para se pronunciar sobre as nulidades após a sua invocação (podendo protelar a decisão até ao despacho de pronúncia), pode o tribunal (e não a lei!) determinar as condições de admissibilidade do recurso de uma mesma questão de direito.
XVII. Com efeito, se o tribunal se tivesse pronunciado sobre as nulidades invocadas, antes de proferir a decisão instrutória, legalmente, nada obstaria ao recurso (o qual deveria subir imediatamente, sob pena de inútil e vexatória sujeição a julgamento, sem protecção dos direitos fundamentais reflexamente tutelados no n.º 8 do artigo 32.º da CRP).
XVIII. Assim, conforme tem defendido ora RECORRENTE:
a. Por um lado, na medida em que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa constitucionalmente reconhecidas (cfr. artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), é inconstitucional, por violação dos artigos 13.º, 18.º, n.º 2, 29.º, n.ºs 3 e 4, e 32.º, n.º 1, da Constituição, e 6.º da CEDH, a norma aplicada pelo despacho de não admissão do recurso – e pelo despacho do Tribunal da Relação de Lisboa que agora o confirma –, nos termos da qual decorre dos artigos 5.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a) e b), 310.º, n.º 1, e 399.º, do CPP, e, bem assim, a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que:
A redacção dada ao artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que determina que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, é aplicável aos processos instaurados antes da sua entrada em vigor, ainda que, no momento dessa entrada em vigor, já tenha havido constituição de arguido, já tenha sido deduzida acusação e já esteja a correr o prazo para requerer instrução.
b. Por outro, uma vez que a restrição do direito ao recurso do despacho de pronúncia, mesmo na parte em que aprecia nulidades, questões prévias e incidentais, e a afirmação, por oposição, do princípio da celeridade processual bule necessariamente com os princípios constitucionais da presunção de inocência e do direito de o Arguido não ser submetido a julgamento sem a base processual a tanto necessária, adequada e proporcionada ou, melhor, “a não ser estigmatizado, vexado, prejudicado em vários direitos fundamentais (imagem, honra e consideração, direito ao trabalho) por um julgamento criminal, quando não haja razões suficientes para isso” (cfr. Raul Soares Veiga, “O juiz de instrução e a tutela de direitos fundamentais”, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, pág. 214), é inconstitucional, por violação dos artigos 13.º, 18.º, n,.º 2, e 32.º, n.ºs 1, 2 e 4, da Constituição, a norma aplicada pelo despacho de não admissão do recurso – e pelo despacho do Tribunal da Relação de Lisboa que agora o confirma –, ou seja, a redacção dada ao art.º 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que determina que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais.
4. Contra-alegou o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, concluindo do seguinte modo:
1.º
A norma contida nos artigos 5.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e b), 310.º, n.º 1, do CPP, na interpretação segundo a qual, a alteração introduzida no n.º 1 do artigo 310.º, pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que veio estabelecer que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, é aplicável aos processos instaurados antes da sua entrada em vigor, ainda que, no momento dessa entrada em vigor, já tenha havido constituição de arguido, já tenha sido deduzida acusação e já esteja a correr o prazo para requerer instrução, não viola os artigos 13.º, 18.º,n.º 2, 29.º, n.ºs 3 e 4, e 32.º, n.º 1, da Constituição, não sendo por isso, inconstitucional.
2.º
A norma do artigo 310.º, n.º 1 do CPP, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que determina que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, é irrecorrível na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, não é inconstitucional, uma vez que não viola os artigos 13.º, 18.º, n.º 2, e 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.
3.º
Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. As duas questões que integram o objecto do presente recurso de constitucionalidade foram já apreciadas pelo Tribunal Constitucional.
Sobre a questão relacionada com a aplicação no tempo das alterações introduzidas no artigo 310.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, pela Lei n.º 48/2007, de 19 de Agosto, decidiu o Tribunal Constitucional nos Acórdãos n.os 460/08 e 247/2009, qualquer deles disponível em www.tribunalconstitucional.pt, em que não julgou inconstitucional a norma contida nos artigos 5.º, n.º 1 e 2, e 310.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a inadmissibilidade do recurso de decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação na parte em que aprecia nulidades e outras questões prévias ou incidentais, prevista na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto ao artigo 310.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, é aplicável aos processos instaurados antes da sua entrada em vigor.
Também a segunda questão colocada pela recorrente, respeitante à irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, foi apreciada pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 216/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, que não julgou inconstitucional a interpretação do regime de recursos então vigente no sentido de ser inadmissível o recurso da parte do despacho de pronúncia que decide questões prévias ou incidentais e que veio a ser expressamente consagrada no n.º 1 do artigo 310.º, n.º 1 do Código de Processo Penal com a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto. Tal juízo foi reiterado no Acórdão n.º 51/2010, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, em que se afirma expressamente que a Constituição não exige que haja recurso da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação pública, na parte em que essa decisão aprecie nulidades da fase de inquérito susceptíveis de afectar a validade das provas.
6. É de confirmar na íntegra tanto o juízo efectuado como a fundamentação oferecida nos referidos arestos do Tribunal Constitucional.
III – Decisão
Nestes termos, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma contida nos artigos 5.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a) e b), 310.º, n.º 1, e 399.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a inadmissibilidade do recurso de decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação na parte em que aprecia nulidades e outras questões prévias ou incidentais, prevista na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto ao artigo 310.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, é aplicável aos processos instaurados antes da sua entrada em vigor;
b) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 310.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que determina que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais;
c) Consequentemente, negar provimento ao recurso;
d) Condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UCs.
Lisboa, 12 de Outubro de 2011.- Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.