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Processo n.º 517/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Após acusação deduzida pelo Ministério Público e realização de instrução, A. foi pronunciado pela prática dos seguintes crimes:
- Um crime de participação económica em negócio, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3.º, n. º 1, alínea i), e 23.º, n. º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho;
- Três crimes de corrupção passiva para acto ilícito, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.º 1, i), e 16.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho;
- Um crime de branqueamento de capitais, p.p. pelo artigo 2.º, n.º 1, a) e b), do Decreto-Lei n.º 325/95, de 2 de Dezembro, e posteriormente p.p. pelo artigo 368.º - A, n.º 1 e 2, do Código Penal;
- Um crime de abuso de poder, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.º 1, i), e 26.º, n. º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho;
- Um crime de fraude fiscal, p.p. pelo artigo 23.º, n.º 1, a), do Decreto-Lei n.º 20–A/90, de 15 de Janeiro, e posteriormente pelo artigo 103.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro.
Notificado da decisão instrutória, o arguido A. requereu a intervenção do tribunal do júri.
Este requerimento foi indeferido por despacho proferido em 9 de Janeiro de 2009.
O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão proferido em 13 de Julho de 2010, negou provimento a este recurso.
Deste acórdão o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, nos seguintes termos:
“O recorrente suscitou, em momento anterior ao início da audiência de julgamento em 1ª instância, bem como no recurso que interpôs da decisão judicial proferida pelo 2º Juízo Criminal do Tribunal de Oeiras, constante de fls. 8913 a 8915, a inconstitucionalidade do artigo 40.º da Lei 34/87, de 16 de Julho.
Nas referidas peças processuais, alegou o ora recorrente a inconstitucionalidade do referido preceito por violação dos artigos 1º, 2º, 12º, 13º, 17º, 18º, 32º, n.º 1 e 207º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, porquanto impossibilita a constituição de tribunal do júri relativamente a crimes alegadamente cometidos por titulares de cargos políticos.
Para além do exposto, suscitou ainda o recorrente a circunstância de o referido artigo 40º da Lei 34/87, de 16 de Julho se mostrar revogado face ao disposto no n.º 1 do artigo 207º da Constituição da República Portuguesa.
A invocada inconstitucionalidade foi arguida a fls. 8997 a 9014 dos autos e foi, agora, objecto de decisão do Tribunal da Relação de Lisboa precisamente quando, a pág. 11 e 12 do acórdão proferido, se entendeu que “...ficam afastadas todas as razões do pedido formulado pelo arguido de revogação do despacho judicial que lhe indeferiu a intervenção do tribunal do júri.”
Recebido este recurso no Tribunal Constitucional em 27 de Junho de 2011, determinou-se que o Recorrente apresentasse alegações.
Este concluiu as suas alegações do seguinte modo:
“1.º - Como resulta do excurso histórico e de direito comparado supra, o direito a ser julgado por um tribunal do júri tende a ser abolido ou fortemente restringido em regimes autoritários e, pelo contrário, a ser acolhido amplamente em regimes liberais e democráticos e tende a compreender como seu núcleo precisamente os crimes políticos, contra o Estado ou de actores políticos.
2.º - A participação no Tribunal do júri (artigos 48.º, n.º 1, e 207.º, n.º 1, ambos da CRP) constitui um direito dos cidadãos com a natureza de direito, liberdade e garantia ou, pelo menos, de direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, protegido, designadamente, pelo regime expresso no artigo 18.º da CRP, directamente ou “ex vi” artigo 17.º da CRP.
3.º - Igualmente, o direito a ser julgado através de tribunal do júri (meramente explicitado no artigo 207.º, n.º 1, “in fine”, da CRP) constitui uma garantia de defesa em processo penal, integrando o leque das garantias de defesa previstas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, direito este previsto na Parte I da Constituição, a que se aplica directamente a qualificação e regime dos direitos, liberdades e garantias.
4.º - Tal direito constitui ainda uma garantia objectiva da justiça e independência dos tribunais e de qualidade, de imparcialidade e de fidedignidade da justiça (artigos 202.º, n.º 2 e 203.º da CRP).
5.º - Em qualquer caso, sempre seria igualmente um direito fundamental de natureza análoga a direito, liberdade e garantia (artigo 17.º CRP).
6.º - Da inconstitucionalidade da interpretação normativa do conceito de “criminalidade altamente organizada” que lhe atribuiu o sentido de compreender igualmente criminalidade complexa, altamente lesiva ou perigosa ou constituir uma noção formal de aplicação automática e do segmento “casos e com a composição que a lei fixar” inseridos no artigo 207, n.º 1, pela revisão constitucional de 1997 em compressão dos direitos a ser julgado ou a participar em Tribunal do júri.
7.º - Foi a revisão constitucional de 1997 que incluiu no preceito correspondente ao actual artigo 207.º, n.º 1, da CRP, uma autorização ao legislador para a introdução de restrições “nos casos e com a composição que a lei fixar” e a amputação do âmbito de protecção do preceito que o toma inaplicável nos casos de “criminalidade altamente organizada”.
8.º - Ora, sendo o direito a participar em Júri (igualmente amputado) e o direito a ser julgado por tribunal do júri direitos, liberdades e garantias (ou, no mínimo, direitos de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias), a sua restrição em sede de revisão constitucional sempre teria de respeitar os limites impostos pelo artigo 288.º, al. d) da CRP.
9.º - O sentido preciso da al. d) do artigo 288.º da CRP tem dado azo a divergências, porém, a compressão introduzida por revisão terá de se revelar adequada à protecção de um bem jurídico constitucional particularmente valioso, tal compressão deverá ser indispensável a tal protecção (não existindo alternativas adequadas menos lesivas do direito a alterar em sentido limitador) e o valor acrescentado por tal protecção deve ser claramente superior ao desvalor provocado nos titulares pela alteração do direito objecto de revisão compressora.
10.º - Apesar de se estar perante o poder de revisão constitucional, em matéria de compressão dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, este poder tem uma discricionariedade muito limitada, encontrando-se sujeito a limites tão intensos ou mais do que os do legislador ordinário na formulação de restrições aos direitos, liberdades e garantias.
11.º - À luz destes critérios, afigura-se justificada a exclusão dos crimes de terrorismo do âmbito dos tribunais de júri introduzida pela Revisão de 1989, para evitar que o medo possa afectar a justiça dos actos dos Jurados, bem jurídico-constitucional (artigos 202.º, n.º 2 e 203.º da CRP) particularmente importante que justifica esta compressão dos direitos em análise.
l2.º - Pelo contrário, a exclusão (em 1997) do âmbito da jurisdição do Júri dos crimes que impliquem “criminalidade altamente organizada”, operada através da inclusão de uma noção jurídica susceptível de ser utilizada para tutelar uma multiplicidade de bens jurídicos, incluindo vários que não têm dignidade para justificar compressões do direito fundamental a um julgamento por Júri (ou do direito a participar como Jurado na administração da justiça), implica uma permanente aferição, à luz do sistema de valores plasmado na CRP, das escolhas que o legislador infra-constitucional sucessivamente adopte para concretizar esse conceito indeterminado.
13.º - Isto porque esse carácter indeterminado é susceptível de levar a interpretações formalistas, como as realizadas no presente processo, em que um determinado crime foi excluído do âmbito da garantia do tribunal do júri somente por força de uma qualificação legal sem consideração das particularidades do caso concreto.
14.º - Porém, conforme se referiu durante os trabalhos parlamentares da Revisão Constitucional de 1997: “Este conceito constitucional de “criminalidade altamente organizada” pressupõe: i) um elevado grau de organização do processo criminoso; ii) uma especial lesividade e perigosidade das condutas criminosas.”. (Deputado José Magalhães, citado pelo douto Acórdão n.º 450/2008, de 24.09.2008 do Tribunal Constitucional, relatado pela Sr. Conselheira Ana Guerra Martins).
15.º - Ao contrário do que se julgou, não se visou incluir em tal noção crimes particularmente complexos pela sofisticação da sua preparação ou complexidade da organização dos autores – mesmo que essa fosse a situação dos autos, que patentemente não era.
16.º - Tal intenção seria manifestamente inconstitucional por ter subjacente um juízo de que os cidadãos comuns são incapazes de julgar “crimes complexos”. Tal premissa seria completamente anti-democrática.
17.º - Para preencher o conceito jurídico constitucional é necessária uma dimensão violenta efectiva ou, pelo menos, um risco sério desta em associação com uma organização alargada, ao ponto de poder constituir uma ameaça para os Jurados.
18.º - A razão de ser da exclusão da criminalidade altamente organizada e a do terrorismo são exactamente a mesma, e nem poderia ser de outra forma, sob pena de se estar perante uma revisão compressora dos direitos em causa contrária à al. d) do artigo 288.º da CRP.
19.º - Esta conclusão não foi minimamente colocada em causa pela alteração do artigo 34.º, n.º 3, na Revisão Constitucional de 2001.
Os crimes qualificados também como criminalidade altamente organizada (“o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de Estupefacientes”) preenchem geralmente estes requisitos, sendo para o Recorrente evidente que será necessário confirmar tais requisitos no caso concreto.
20.º - Qualquer outro sentido que procure esvaziar o padrão constitucional para poder compreender nessa noção crimes apenas particularmente lesivos, violentos ou complexos terá de ser qualificada como inconstitucional por converter a alteração de 1997 numa revisão violadora do limite material constante da al. d) do artigo 288.º da CRP, ao comprimir de modo desnecessário e desproporcionado os direitos a ser julgado por Júri e a participar neste.
21.º - A gravidade do crime constitui critério constitucional para autorizar a intervenção do Júri e nunca para o excluir. O mesmo se diga em relação ao carácter particularmente lesivo do crime. Este apenas aumenta a sua gravidade, nada mais. E a mera perigosidade dos arguidos é irrelevante se estiverem impossibilitados de pessoalmente interferir no curso do processo, não constituindo, nesse caso, ameaça séria para os Jurados.
22.º - O mesmo se diga de qualquer interpretação da noção que leve à sua aplicação formal e automática, cega às circunstâncias do caso concreto. Não é admissível que se prive um indivíduo de um dos seus direitos, liberdades e garantias sem ponderar todas as particularidades concretas, sobretudo quando os alegados fundamentos jurídicos para essa restrição são desautorizados pelas próprias instâncias de julgamento.
23.º - Pese embora o conceito constitucional de “criminalidade altamente organizada” – introduzido, no que passou a ser o artigo 207º da CRP, pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro – tenha tido por fonte a definição de criminalidade altamente organizada vazada, à época, no art. 1.º do CPP, não existe identidade conceptual entre os dois normativos. Em anotação (10) ao artigo 1º do seu Comentário do Código de Processo Penal, Paulo Pinto de Albuquerque considera mesmo que “A nova noção de criminalidade altamente organizada é, em parte, inconstitucional”, porque “o alargamento da noção de criminalidade altamente organizada para além dos limites da Constituição é inadmissível, por violar frontalmente aquela que era a mens legislatoris e a própria materialidade do conceito constitucional”
24.º - De facto, na versão original do Código de Processo Penal aprovado Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Dezembro, delimitavam-se (com base num catálogo expresso – alínea a) do seu n.º 2 – e numa clausula geral – alínea b) do mesmo número) as condutas que podiam considerar-se como “casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada”. Em decorrência da revisão do Código Penal operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, o Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro, ajustou a numeração do mesmo elenco dos crimes que podiam integrar esses conceitos, deixando intacta a alínea b) desse n.º 2 – e o mesmo fez a Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto. Antes da alteração de redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto (inaplicável ao caso por ser posterior à data dos factos) a inclusão do crime de branqueamento no conceito de “criminalidade altamente organizada” não podia resultar nem da alínea a) do n.º 2 do artigo 1º do CPP (visto que o seu catálogo não integrava o crime de “branqueamento”), nem da sua alínea b) (porque nem se dirigia “contra a vida, a integridade física ou a liberdade”, nem a sua moldura penal excedia os 5 anos de prisão – cfr. o artigo 23º, n.º 4, do RJIFNA, e o artigo 103º, n.º 1, do RGIT).
25.º - Caso não se adopte uma interpretação constitucionalmente conforme da alteração introduzida em 1997 na norma da Lei Fundamental sobre o tribunal do júri, e se a entenda como uma autorização ao estabelecimento de restrições adicionais pelo legislador ordinário (“nos casos e com a composição que a lei fixar”) – de modo a relegitimar soluções legislativas pretéritas, abre-se um direito fundamental à ampla discricionariedade do legislador.
26.º - Tal autorização não pode desproteger directamente um bem jurídico preciso, susceptível de ser objecto de um controlo rigoroso de constitucionalidade, por um livre trânsito para a criação de outras restrições à intervenção do tribunal do júri, sob pena de se entregar a uma lei ordinária a livre restrição (ou até ablação) de um direito fundamental.
27.º - Tal abertura constituiria uma violação grosseira do artigo 288.º, al. d), da CRP, visto que converteria um preceito atributivo de um direito, liberdade e garantia num preceito sem efectiva aplicabilidade directa por ficar dependente de norma legal (em desvio face ao artigo 18.º, n.º 1, da CRP) e sujeito à ampla discricionariedade do legislador na formulação de restrições para a tutela de diversos fins – constitucionais ou não.
28.º - Convertendo uma norma preceptiva exequível por si própria e, portanto, que se projectava directamente na esfera jurídica subjectiva de cada indivíduo atribuindo-lhe um direito fundamental, numa norma de discutível preceptividade e nula auto-exequibilidade, suprime-se o padrão a partir do qual se pode aferir a inconstitucionalidade das normas infra-constitucionais.
29.º - A consequência prática negativa mais evidente foi a tentativa de legitimação das exclusões constantes da lei ordinária que violavam manifestamente a Constituição, em que se destaca o artigo 40.º da Lei 34/87, de 16/07.
30.º - Estas alterações (a relativa à criminalidade altamente organizada apenas nos termos em que foi interpretada) não violam apenas a al. d) do artigo 288.º da CRP, mas igualmente a sua alínea m), que tutela a independência dos Tribunais, de que o tribunal do júri constitui uma garantia fundamental. De resto, o Direito comparado fornece abundantes precedentes de a restrição às competências do tribunal do júri constituir um instrumento essencial de controlo das decisões judiciais pelo poder político.
31.º - A recusa da solicitada constituição do tribunal do júri com fundamento em que os crimes de que o arguido vinha acusado tinham sido praticados por um titular de um cargo político cai pela base quando nenhum dos crimes pelos quais foi efectivamente condenado (fraude fiscal e branqueamento de capitais) supõe essa especial situação do agente. Assim, a fixação da competência do tribunal com base nesse duplo critério (a pronúncia, por um lado; e a exclusão do tribunal do júri em qualquer dos crimes constantes da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho) torna a norma do seu artigo 40.º inconstitucional, na medida em que permite – mercê da manipulação da acusação – excluir a aplicação do tribunal do júri para todos os delitos dos titulares de cargos políticos que normalmente lhe poderiam ser submetidos em razão da sua gravidade.
32.º - Uma interpretação de tal norma que permita a exclusão arbitrária da intervenção do tribunal do júri – como arbitrária sempre será a que fundamente tal exclusão na prática de crimes pelos quais o arguido não venha a ser condenado – é flagrantemente inconstitucional.
– Da “ratio decidendi” do Acórdão recorrido para a exclusão do Júri do julgamento do crime de branqueamento de capitais:
33.º - o artigo 40.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, veda não só a intervenção do Júri no julgamento de crimes (1) “previstos na lei penal geral com referência expressa a esse exercício” como, por influência do artigo 2.º, nos (2) “que mostrem terem sido praticados com flagrante desvio ou abuso da função ou com grave violação dos inerentes deveres.”.
34.º - A lei processual não incluiu o crime de branqueamento de capitais na previsão do seu conceito de criminalidade altamente organizada até à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que alterou o artigo 1.º do CPP (e daí que esta norma não tenha sido aplicada pela douta decisão recorrida em função da data dos factos trazidos a juízo).
35.º - Como se verifica pelo teor do douto Acórdão recorrido, formalmente o mesmo não afastou a competência do Júri para o julgamento da causa no que concerne ao crime de branqueamento de capitais, com base no disposto no artigo 141.º, da Lei 52/2008, de 28/8, conjugado que fosse com o disposto na actual alínea m) do n.º 1 do artigo 1.º, e no n.º 2, do C.P. Penal.
36.º - Efectivamente, à luz daquelas normas, não é possível concluir que o legislador ordinário tenha afastado a competência do Júri para julgamento do crime de branqueamento de capitais (a menos que fosse aplicado o artigo 1.º, n.º 1, al. m), do CPP, de forma retroactiva, ao caso em apreço).
36.º - Assim, aparentemente, a “ratio decidendi” para a exclusão da competência do Júri nestes casos foi, (1) a aplicação directa do artigo 207.º, da CRP, considerando que o conceito jurídico constitucional de criminalidade altamente organizada abrange, desde logo, o crime de branqueamento de capitais, e (2) a interpretação de que na exclusão prevista no artigo 40.º da Lei n.º 37/87, de 16 de Julho, se deve incluir o crime de branqueamento de capitais por, à luz da pronúncia, ser conexo e instrumental em relação aos demais crimes imputados ao Arguido e previstos naquela Lei.
37.º - Pelo contrário, a exclusão da intervenção do Tribunal do júri pela douta decisão recorrida em relação a todos os restantes crimes pelos quais o ora recorrente foi pronunciado foi baseada exclusivamente no artigo 40 da Lei n.º 37/87, considerada como especial face ao artigo 13, n.º 2, do CPP e, portanto, aplicável em sua derrogação.
– Quanto à aplicabilidade directa do artigo 207.º, da CRP, como fundamento de exclusão do crime de branqueamento do âmbito do direito a intervir no tribunal do júri e a ser julgado por Júri, independentemente de lei ordinária restritiva nesse sentido:
38.º - Basear uma decisão restritiva directamente na Constituição sem ter por base uma lei ordinária restritiva constitui operação de constitucionalidade muito delicada.
39.º - Por um lado, não é claro que se possa retirar essa exclusão do tribunal do júri directamente do n.º 1 do artigo 207.º, da CRP. De facto, este preceito estabelece um direito, delimitando o seu âmbito de protecção por meio de elementos negativos: o Júri não se aplica a crimes de terrorismo ou a criminalidade altamente organizada. Mas as condutas pelas quais o arguido foi condenado nada têm a ver com terrorismo ou criminalidade altamente organizada, de modo que só através da sua textual remessa para a intervenção do legislador poderia extrair-se um “excesso de conteúdo” em relação àquelas duas exclusões.
40.º - As normas constitucionais atributivas de direitos, liberdades e garantias são efectivamente directamente aplicáveis, mas as normas constitucionais que estabelecem deveres ou que sejam restritivas de direitos em termos não consagrados em lei ordinária prévia dependem de lei ordinária concretizadora. Não existe norma constitucional correspondente ao artigo 18.º, n.º 1, da CRP, aplicável às normas constitucionais restritivas.
41.º - Ou seja, nunca seria legítimo invocar directamente o artigo 207.º, da CRP, para justificar uma decisão judicial de exclusão do tribunal do júri em relação ao crime de branqueamento sem que a lei ordinária estabeleça tal exclusão. O artigo 207.º apenas poderia ter a eficácia de tomar inconstitucionais normas legais manifestamente contrárias, mas não a de permitir a solução directa de um caso concreto sem intermediação legislativa. Mas não há nenhuma outra norma infra-constitucional (além da do artigo 40º da Lei n.º 34/87) que, ao tempo dos factos, pudesse fornecer uma “exclusão acrescentada” ao que já resulta das cláusulas do artigo 207º da CRP, daí que apenas nos termos do artigo 40 seria possível encontrar esse “surplus”.
– Quanto à interpretação do artigo 40.º no sentido de o Tribunal do júri não poder efectuar o julgamento dos crimes a que se refere a Lei n.º 34/87:
42.º A norma do artigo 40º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho – que serviu de fundamento legal para negar ao arguido o, por ele solicitado, julgamento por tribunal do júri – exclui a intervenção desse tribunal nos casos, ao tempo dos factos, previstos nessa lei (crimes praticados por titulares de cargos políticos).
43.º - Em 1987, quando a Lei n.º 34/87 foi aprovada, não existia qualquer autorização como o actual artigo 207.º da CRP ao estabelecimento de restrições a estes direitos, o que significa que o artigo 40.º foi aprovado com directa violação do artigo 18.º, n.º 2, CRP. Sem cobertura no texto constitucional, a norma do artigo 40º da Lei n.º 34/87 devia ter-se por inconstitucional.
44º - O artigo 40.º da Lei n.º 34/87 de 16 de Julho, ao fazer uma restrição inadmissível aos direitos dos titulares dos cargos políticos, em detrimento dos restantes cidadãos (art.ºs 1, 2º e 12º, n.º 1, da Lei Fundamental), encerra em si mesmo uma clara violação do princípio da igualdade (art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa), por tal restrição não se achar fundada numa razão constitucionalmente válida que a justifique.
45.º - Aquele artigo discrimina e torna desigual o acesso ao tribunal do júri pelos titulares de cargos políticos relativamente ao julgamento de quem não ocupa esses cargos, vendo aqueles diminuídas as suas garantias de defesa (art. 32.º, n.º 1 Constituição da República Portuguesa) e os meios processuais que o legislador constitucional quis consagrar para todos (art.º 207, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) e, assim, postos em causa os princípios da igualdade e da participação popular na administração da justiça;
46.º - Priva de um direito, liberdade e garantia (ao menos de natureza análoga) toda uma categoria de indivíduos, em termos violadores do princípio da universalidade (artigo 12.º da CRP). Ora, esta desigualdade (qualquer violação da universalidade implica sempre uma desigualdade) é proibida expressamente pelos artigos 48.º, n.º 1, e especialmente 50, n.º 2, ambos da CRP. De facto, se ninguém pode ser prejudicado nos seus direitos sociais por desempenhar um cargo público, muito menos poderá ser privado de um direito, liberdade e garantia.
48.º - Ao excluir toda a categoria de cidadãos que exercem cargos políticos, que histórica e contemporaneamente constitui precisamente uma das categorias perseguida por julgamentos abusivos, do gozo da garantia fundamental de julgamento por Júri em relação a praticamente todos os crimes que podem praticar (particularmente com a interpretação acolhida no presente processo), a restrição em análise faz diminuir o alcance do conteúdo essencial do preceito atributivo do direito a um julgamento por Júri, em violação do artigo 18.º, n.º 3, CRP.
49.º - Com efeito, este núcleo essencial tem por objecto precisamente aquele conjunto de actos que historicamente foram pacificamente protegidos (“extensão”) ou aquelas categorias de indivíduos que sempre gozaram do direito e que são aquelas que mais fragilizadas ficarão pela sua privação (“alcance”).
50.º - O julgamento por Júri ganhou historicamente importância precisamente nos crimes contra o Estado ou praticados por parte de actores políticos, particularmente opositores.
51.º - É nestes crimes, em que o Estado surge como acusador e Juiz, mas igualmente como vítima ou pretensa vítima, que se podem colocar dúvidas sérias quanto à capacidade dos juízes serem isentos.
52.º - Dir-se-á que tais dúvidas em Portugal não têm razão de ser. Aceita-se abertamente que não, mas estas garantias não valem ad persona. Estas foram consideradas essenciais nos Estados Unidos e ninguém duvidará da independência dos seus tribunais.
53.º - Que o direito dos políticos de serem julgados por tribunal do júri integra o núcleo essencial deste direito, liberdade e garantia, particularmente naqueles crimes praticados no exercício das suas funções, é confirmado pelo disposto na Constituição da I República (1911) que apenas estabelecia a obrigatoriedade do Júri para o julgamento dos crimes políticos e daqueles puníveis com pena mais grave do que a prisão correccional, quando estipulava o art. 39.º do Código de Processo Penal de 1929 que, nos crimes políticos e em matéria de facto, os jurados decidiam definitivamente.
54.º - Mas a esta incompatibilidade com o respeito do conteúdo essencial, acrescem violações do princípio da proibição do excesso, nas suas três vertentes: adequação, necessidade e proporcionalidade estrita.
55.º - Os Jurados, pela mera circunstância de o Arguido ser titular de um cargo político, não estão “necessariamente imbuído[s] de valorações políticas e preconceitos (positivos ou negativos) em face da personalidade a julgar”, personalidade que podem até não conhecer, ou não lhes suscitar qualquer tipo de preconceito positivo ou negativo que seja.
56.º - Aqui radica, desde logo, a inadequação da norma restritiva em apreço ao basear-se numa presunção inilidível de influenciabilidade dos Jurados e no pressuposto, não demonstrado e seguramente incorrecto, que os Juízes de carreira serão, por essência, não influenciáveis face à personalidade a julgar.
57.º - Esta presunção empiricamente indemonstrada, que encerra uma duplicidade de tratamento entre seres humanos, magistrados e cidadãos comuns, baseia-se numa antítese do espírito igualitário e democrático que domina a Constituição de 1976.
58.º - A formação jurídica e a experiência profissional não tornam as pessoas imunes às suas pré-compreensões políticas.
59.º - Confronte-se os casos de exclusão constitucional do tribunal do júri (terrorismo e criminalidade altamente organizada) com este caso legal de exclusão do tribunal do júri no caso da maioria dos crimes praticados pelos titulares de cargos políticos. Claramente, os dados que justificam os receios para a não isenção da decisão são completamente diferentes. Num caso, um intenso medo justificado. No outro, uma presunção automática e inilidível da falta de capacidade do cidadão comum para ser isento em relação a qualquer dos seus políticos.
60.º - É manifesta a inadequação desta restrição para garantir isenção. A pretensa ameaça à isenção e a alegada adequação da restrição para a eliminar encontram-se juncadas de uma pré-compreensão elitista, paternalista e ultrapassada profundamente contrária ao princípio democrático. Não constitui a Democracia um regime estruturalmente baseado na ideia precisamente oposta: a de que os cidadãos têm o direito de julgar os actos dos seus políticos e que o resultado eleitoral será justo-
61.º - Para o douto Acórdão recorrido, a motivação do legislador ordinário ao excepcionar a possibilidade de intervenção do Júri no julgamento dos crimes a que alude a Lei em apreço foi acautelar a hipótese de “politização do processo penal”, “não autoriza[ndo] a participação do júri necessariamente imbuído de valorações políticas e preconceitos (positivos ou negativos) em face da personalidade a julgar.”.
62.º - Assim, sustenta-se que se visou impedir que os titulares de cargos políticos fossem favorecidos ou prejudicados pela sua popularidade ou falta desta.
63.º - Na verdade, para alcançar objectivo de evitar que estes fossem prejudicados, bastaria exigir que estes consentissem no tribunal do júri quando este fosse requerido pela acusação, não seria necessário proibir a sua intervenção pura e simplesmente. Para se alcançar o fim de impedir que estes sejam favorecidos, então outras alternativas menos severas seriam viáveis, desde estabelecer um processo rigoroso de selecção dos Jurados, até exigir que estes residissem em outras autarquias.
64.º - Em qualquer caso, sujeitar todos os políticos a esta exclusão constitui uma medida desnecessária. Muitos são fortemente impopulares e, portanto, nunca serão favorecidos. Outros simplesmente são desconhecidos, pelo menos fora da circunscrição em que foram eleitos.
65.º - Como quer que seja, a ter sido essa a intenção legislativa, esqueceu, neste caso, o legislador ordinário que o Decreto-Lei n.º 387-A/87, de 29 de Dezembro já prevê, no seu artigo 6.º, n.º 1, al. d), que se os Jurados “Se encontrem numa situação que ponha objectivamente em risco a respectiva imparcialidade;” podem (e devem) pedir escusa do cargo.
66.º - Presumir que, em casos de julgamento de titulares de cargos políticos, os Jurados não o farão não faz sentido, nem está demonstrado que assim seja. Partir do princípio que os Juízes de carreira serão mais lestos que os Jurados no cumprimento desse seu poder dever é algo que não está sequer demonstrado (nem esteve, como é óbvio, presente na mente do legislador constitucional), não podendo assim fundamentar a restrição operada pela norma sempre em apreço.
67.º - No caso concreto dos autarcas, bastaria, por exemplo, introduzir uma norma especial relativamente ao artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 387-A/87, de 29 de Dezembro, que previsse que os Jurados que sejam munícipes em freguesias compreendidas no círculo judicial em que o Arguido exerça, ou tenha exercido, funções de autarca se acham impedidos de integrar o Júri, circunstância que permitiria reduzir o alegado, mas não concretamente demonstrado, perigo de “politização do processo penal”.
68.º - A norma contida no artigo 40.º da Lei n.º 34/87 ao afastar o Júri pela mera acusação (mesmo que, como no caso dos autos, infundada) e da qualidade do seu sujeito activo – contém um dispositivo, por um lado rígido e absoluto, já que cria uma situação desnecessariamente restritiva de direitos e garantias fundamentais, e, por outro lado, dúctil e manipulável, pois não tem sequer em conta os contornos do caso concreto, no sentido de avaliar da necessidade de exclusão do Júri (leia-se, dos Jurados que o constituiriam) face à possibilidade de “politização do processo penal”, nem prevê formas legais de compatibilização do interesse na isenção do tribunal – com o direito constitucional á intervenção no/do Júri, traduzindo-se, por isso, num cerceamento absoluto e desnecessário de direitos, liberdades e garantias, especialmente quando nenhum dos crimes pelos quais foi efectivamente condenado (fraude fiscal e branqueamento de capitais) supõe essa especial situação do agente.
69.º - Finalmente, esta restrição é igualmente desproporcionada. Basta ter presente o seu carácter intrinsecamente discriminatório em lesão directa de preceitos que não se encontram sequer sujeitos a um juízo de ponderação por se apresentarem com conteúdo definitivo (artigo 50.º, n.º 2, da CRP, por maioria de razão) e a discricionariedade que concede aos adscritores das condições impeditivas do recurso ao tribunal do júri.
70.º - Ao criar um instrumento processual potestativo em caso de ilícitos graves - o requerimento do Arguido para a intervenção do tribunal do júri - permitindo, através da norma em apreço, o seu indeferimento à luz da mera verificação da qualidade do sujeito activo (titular de cargo político), sem que seja necessário a verificação, no caso concreto, de uma qualquer circunstância em que se possa fundar um perigo efectivo para a isenção do Tribunal do júri (ou qualquer outra circunstância) que justifique a sua preterição, e sem qualquer relação necessária com a efectiva comprovação das infracções que, para obstar a essa intervenção, tenham sido invocadas, viola a norma em causa, de forma desnecessária, o direito a um processo equitativo e à tutela judicial efectiva, que proíbe o legislador de criar instrumentos processuais que provoquem dificuldades excessivas e materialmente injustificadas no direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º, n.ºs 4 e 5, da CRP).
71.ª - Assim, verifica-se a inconstitucionalidade material do art. 40.º da Lei 34/87, de 16 de Julho, designadamente por violação do princípio da igualdade (art.º 13.º da Lei Fundamental) e do princípio da participação popular na administração da Justiça (art.º 207.º, na versão da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro), e dos artigos 1.º, 2.º, 12.º, 13.º, 17.º, 18.º, n.º 2 e 3, 32.º, n.º 1, 48.º, n.º 1, 50.º, n.º 2, e 207.º, n.º l, alíneas d) e m) do artigo 288.º, todos da CRP.
72.º - A restrição contida no artigo 40.º não foi, por mais do que um fundamento, legitimada pela alteração constitucional de 1997 que introduziu no artigo 207.º, n.º 1, a remissão “nos casos e com a composição que a lei fixar”, a qual, se entendida como um “esvaziamento” dos critérios de ponderação de valores constitucionalmente relevantes mas conflituantes, violaria grosseiramente as als. d) e m) do artigo 288.º da CRP e, portanto, qualquer disposição ordinária que procurasse estruturar a sua validade em tal remissão continuaria a ser inconstitucional.
73.º - Ainda que se aceitasse que normas originariamente materialmente inconstitucionais pudessem ser convalidadas por força de uma revisão constitucional superveniente (o que, como se sabe, é fortemente contestado pela Doutrina mais destacada), sempre esta restrição continuaria a desrespeitar o conteúdo essencial do direito a ser julgado por tribunal do júri, enquanto corolário das garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, e 207.º, n.º 1 ambos da CRP). E violaria igualmente o princípio da proibição do excesso nas suas três vertentes em relação ao mesmo direito e ao direito a participar na administração da justiça (artigo 207.º, n.º 1), enquanto corolário do referido direito a participar na vida pública (artigo 48.º, n.º 1, da CRP). E seria ainda inconstitucional, por essas mesmas razões, por depositar ex ante, numa acusação ou pronúncia por crimes previstos na Lei n.º 34/87, ainda que meramente indiciária, a exclusão, para qualquer titular de cargos políticos ou altos cargos públicos, de um direito de que todos os demais cidadãos não podem ser espoliados.
- Quanto à interpretação do artigo 40.º da Lei n.º 34/87, no sentido de o Tribunal do júri não poder efectuar o julgamento do crime de branqueamento de capitais em casos em que se verifique, face ao concreto teor do despacho de pronúncia, que este crime tem com os demais, nela previstos e pelos quais o arguido esteja acusado, “uma significativa relação de instrumentalidade ou conexão”:
74.º - Sendo a norma agora em apreço uma nova e maior restrição ao direito dos cidadãos a intervir no Júri, e ao direito do Arguido em ser julgado através do Júri, além dos argumentos vertidos nas conclusões precedentes de onde resulta já a respectiva inconstitucionalidade, acresce que, a norma em causa não é necessária nos crimes tidos por conexos ou instrumentais em relação àqueles que sejam praticados no exercício do cargo político. Neste crimes, o sujeito activo não age na qualidade de titular daqueles cargos, mas enquanto cidadão comum, não se vislumbrando qualquer necessidade em evitar a dita politização do julgamento, ou que justifique a sua discriminação negativa em relação aos demais cidadãos.
75.º - De outra forma, e no limite do raciocínio a que o aresto recorrido nos remete, o titular de cargos políticos nunca poderia ser julgado pelo tribunal do júri, por se poder dizer sempre que, o mero facto de se ser titular de um cargo político (independentemente do crime que esteja em causa) poder causar sempre um risco de politização do respectivo julgamento, solução que mesmo o legislador da Lei n.º 34/87 afastou.
76.º -De facto, em relação a estes crimes meramente conexos a nula eficácia da restrição tendo em vista garantir a isenção das decisões judiciais é ainda mais simples de demonstrar, bem como a sua desnecessidade e desproporcionalidade (dado alargar ainda mais o âmbito da restrição).
77.º - Por outro lado, a interpretação realizada pelo acórdão recorrido foi ainda mais longe, pois acolheu o entendimento de que para a verificação da instrumentalidade do crime basta uma vaga relação entre factos típicos, permitindo efectivamente que qualquer alegado crime praticado por um titular de um cargo político possa ser de tal modo qualificado e, portanto, excluído do julgamento por Júri com base no artigo 40.º sempre em referência.
78.º - Assim, a norma em questão é materialmente inconstitucional por violação dos artigos l.º, 2.º, 12.º, l3.º, 17.º, 18.º, n.º 2 e 3, 32.º, n.º 1, 48.º, n.º 1, 50.º, n.º 2, e 207.º, n.º l, als. d) e m) do 288.º da CRP.
- Quanto à interpretação do artigo 40.º da Lei n.º 34/87 no sentido de o Tribunal do júri não poder efectuar o julgamento do crime de branqueamento de capitais em casos em que resulte da alegação feita no despacho de pronúncia que este crime tem com os demais pelos quais o arguido esteja acusado “uma significativa relação de instrumentalidade ou conexão”, mesmo quando (sendo apreciado o recurso da decisão que indeferiu o Júri juntamente com o recurso da decisão condenatória) não se tenha provado que o dinheiro alegadamente branqueado tenha origem ilícita ou que fosse proveniente do exercício do cargo político exercido pelo Arguido. Em suma, quando apesar de tal instrumentalidade ou conexão ter sido alegada, tal não tenha sido minimamente provado:
79.º - A norma em apreço, igualmente adoptada no douto Acórdão recorrido, pressupõe, desde logo, a não inconstitucionalidade da exclusão do tribunal do júri operada pelo artigo 40.º, na interpretação a que se reportam as conclusões imediatamente precedentes, cuja validade se mantém “in totum”.
80.º - Acrescem aos argumentos supra enunciados que, em casos como o dos autos, em que (sendo apreciado o recurso da decisão que indeferiu o Júri juntamente com o recurso da decisão condenatória) não se tenha provado em sede de julgamento que o dinheiro pretensamente branqueado tenha tido origem num dos crimes que, à data da sua prática, constituía um dos tipos subjacentes que geravam a conexão relevante, e nem sequer ilícita (elemento essencial do tipo penal de branqueamento), ou que tivesse qualquer ligação com o desempenho do cargo político exercido pelo Arguido, nenhuma conexão ou instrumentalidade existe entre o crime praticado por titular de cargo político no exercício de funções e o de branqueamento de capitais que justifique o afastamento da competência do tribunal do júri em relação ao segundo.
81.º - Nem se diga que a aferição dos pressupostos processuais, como a competência do tribunal do júri, se faz à luz dos factos vertidos na acusação ou na pronúncia, nos casos em que exista. É que, em casos (como o dos autos) em que a conexão ou instrumentalidade não seja provada, e seja ordenada a repetição do julgamento por crimes alegadamente praticados na qualidade de titular de cargo político, nada impede que a repetição do julgamento, desta feita quanto ao crime de branqueamento de capitais, seja feita perante tribunal do júri, conforme oportunamente requerido, uma vez que não foi provada “uma significativa relação de instrumentalidade ou conexão” que justificaria em tese o receio de politização do julgamento.
82.º - Outra solução jurídica ditaria a prevalência das regras de aferição dos pressupostos processuais (que inviabilizaram o deferimento da intervenção do Júri à luz do juízo de conexão ou instrumentalidade do crime de branqueamento de capitais em relação aos demais), e da reapreciação dos recursos à luz dos pressupostos fácticos subjacentes à decisão reapreciada (que indeferiu o Júri) em detrimento dos direitos constitucionalmente previstos nos artigos 32.º, n.º 1, 48.º, n.º 1 e 207.º, da CRP. O mesmo é dizer, a prevalência do direito adjectivo sobre o direito substantivo, e da forma sobre a matéria. Ou seja, da aparência processual sobre a realidade factual, em violação também do direito a um processo justo e equitativo e do direito a uma tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.º 4 e 5 da CRP).
83.º - Ao criar um instrumento processual - o requerimento do Arguido para a intervenção do tribunal do júri - permitindo, nos casos a que alude a norma em apreço, o seu indeferimento à luz dos pressupostos da acusação e/ou da pronúncia que se revelaram já materialmente infundados, viola a norma em causa, de forma desnecessária, o direito a um processo equitativo e à tutela judicial efectiva (artigo 20.º, n.ºs 4 e 5, da CRP).
84.º - Se a apreciação dos pressupostos da intervenção do Tribunal do júri for realizada meramente com base nas alegações da acusação, esta intervenção ficará sempre nas suas mãos, pois manipulando ou errando nas suas alegações poderá garantir que obterá uma decisão conforme com os seus interesses.
85.º - Ora, o artigo 207.º da CRP, não obstante todas as alterações sofridas, continua a fazer a intervenção do Júri depender da vontade da acusação ou do Arguido, colocando ambos em igualdade de armas quanto à questão. Estruturar a decisão com base nas alegações da acusação, ou nos errados pressupostos da pronúncia, faria tanto sentido como baseá-la apenas nas alegações da defesa, independentemente das provas.
86.º - Tal interpretação normativa, em casos como o dos autos, constitui uma restrição a ambos os direitos em causa que não prossegue qualquer bem constitucional em violação do artigo 18.º, n.º 2, da CRP. E ainda que se alegasse que promoveria a celeridade processual, sempre se revelaria completamente desproporcionada.
87.º - Por outro lado, não havendo qualquer ligação entre os crimes, excluir todos do âmbito do tribunal do júri significa violar de modo ainda mais drástico a Constituição visto que se está a ir muito para lá do que a própria Lei inconstitucionalmente estabelece.
88.º - Assim, a norma em questão é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 1.º, 2.º, 12.º, 13.º, 17.º, 18.º, n.º 2 e 3, 20.º, n.º 4 e n.º 5, 32.º, n.º 1, 48.º, n.º 1, 50.º, n.º 2, e 207.º, n.º 1, als. d) e m) do 288.º da CRP.
- Quanto à interpretação do artigo 40.º da Lei n.º 34/87, no sentido de o Tribunal do júri não poder efectuar o julgamento do crime de branqueamento de capitais por este crime ser automaticamente subsumível no conceito de “criminalidade altamente organizada” previsto no artigo 207.º da CRP, independentemente do grau de organização e sofisticação do crime no caso concreto, e de uma avaliação que casuisticamente o confirme:
89.º - No que a esta norma diz respeito são válidos os fundamentos pelos quais se concluiu que a introdução deste elemento negativo relativo à “criminalidade altamente organizada” do âmbito de protecção do direito a ser julgado por tribunal do júri na revisão constitucional de 1997 deve ser considerado como inconstitucional por violação das alíneas d) e m) do artigo 288.º CRP, se interpretado no sentido de incluir crimes meramente muito lesivos, complexos, ou levados a cabo por Arguidos perigosos, ou ainda de poder ser aplicado de forma automática/formal sem ter em conta se as suas características são cumpridas no caso concreto.
90.º - Acresce que, como é referido no douto Acórdão recorrido, o no Acórdão n.º 450/2008 do Tribunal Constitucional, não se pode interpretar a Lei constitucional à luz da Lei ordinária, nem tampouco presumir que por coincidir a nomenclatura das duas leis, existe uma sobreposição de conceitos jurídicos.
91.º - O crime de branqueamento de capitais não é automaticamente subsumível no conceito de “criminalidade altamente organizada” previsto no artigo 207.º da CRP.
92.º - A expressão “criminalidade altamente organizada” constitui um «conceito aberto», e que não faria sentido que fosse rígido, sob pena de chegarmos a situações absurdas, e mais: indiscriminadamente restritivas de direitos e garantias fundamentais, pois que se traduzem num cerceamento excepcional de direitos, liberdades e garantias.
93.º - Quando a Constituição exclui da competência do tribunal do júri os crimes de terrorismo e de criminalidade altamente organizada, remete para a lei ordinária a definição do que deve considerar-se como tal, sendo que a previsão e confirmação do que é o carácter altamente organizado do crime tem que resultar da verificação no caso concreto.
94.º - De contrário, o próprio texto constitucional encerraria uma contradição insanável, pois, ao atribuir à competência do tribunal do júri o julgamento dos crimes graves, estaria ao mesmo tempo a esvaziar de sentido tal competência, subtraindo-lhe o julgamento desses mesmos crimes através de uma presunção inilidível da efectividade do carácter altamente organizado.
95.º - Desta forma, a exclusão do Júri com base no conceito constitucional de “criminalidade altamente organizada” pressupõe a verifica no caso concreto de: i) um elevado grau de organização do processo criminoso; ii) uma especial lesividade e perigosidade das condutas criminosas.
96.º - O conceito de “criminalidade altamente organizada”, implica, por isso, a particular lesividade dos crimes, a capacidade de organização e perigosidade dos respectivos agentes.
97.º - O Tribunal Constitucional considerou já que o artigo 207.º da Constituição impede a formação de tribunais de Júri para julgamento dos crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 22º a 25º e 28º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na medida em que aqueles se inserem no conceito jurídico-constitucional de “criminalidade altamente organizada”.
98.º - Fê-lo, porém, por razões que não se verificam quanto ao crime de branqueamento de capitais, a saber:
a) a redacção do artigo 207.º foi introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, sendo que, à data dessa revisão constitucional, estava em vigor a redacção do artigo 1.º, n.º 2, da CPP, dada pelo Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro;
b) ao contrário do que sucedia em relação ao crime de tráfico de estupefacientes, além de a Lei de Processo não prever qualquer definição legal que incluísse o branqueamento de capitais no rol dos crimes que se deveriam, à luz da lei ordinária, ser considerados como “criminalidade altamente organizada”, não existia nenhuma norma (tal qual o n.º 1 do artigo 53º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, fazia no que ao tráfico de estupefacientes dizia respeito) que efectuasse tal equiparação;
c) Significa isto que, quando os membros da Comissão Eventual de Revisão Constitucional de 1997 pretenderam remeter o conceito de “criminalidade altamente organizada” para aquele adoptado pela lei processual penal não podiam ter deixado de ter em conta a circunstância de o regime processual penal não decorrer exclusivamente das normas incluídas no CPP, mas igualmente daquelas normas processuais penais incluídas em diplomas avulsos, e que em nenhuma delas se incluía o crime de branqueamento de capitas
d) Ou seja, quando pretenderam retirar o conceito de “criminalidade altamente organizada” daquele adoptado pela lei processual penal, não podem ter querido nele incluir o crime de branqueamento de capital, visto que este não era à data incluído na lei processual penal;
e) A qualificação legal do crime de branqueamento de capitais como criminalidade altamente organizada apenas ocorreu com a introdução da alínea m), do n.º 1, do artigo 1.º, do C.P. Penal, operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto;
f) Só uma década depois da revisão constitucional que introduziu a proibição da intervenção do Júri no julgamento da criminalidade altamente organizada é que o legislador ordinário passou a prever o crime de branqueamento de capitais como fazendo parte de tal criminalidade;
g) A revisão constitucional de 2001 introduziu uma profunda alteração ao n.º 3 do artigo 34º da Constituição, autorizando a entrada durante a noite no domicílio de qualquer pessoa, ainda que sem o seu consentimento, em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes, mas sem nela incluir o crime de branqueamento de capital.
h) O facto de essa qualificação não ter sido operada em 2001 para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 34.º da Constituição não pode deixar de produzir as necessárias consequências interpretativas quanto aos demais preceitos constitucionais que acolhem a noção jus-penal de “criminalidade altamente organizada”, sob pena de completo desrespeito pela necessidade de interpretação sistemática das normas e princípios constitucionais; e
i) Mesmo que se defendesse uma interpretação actualista da CRP à luz da evolução posterior da Lei de Processo Penal, o que parece não ter fundamento, pois que implicaria a constitucionalização dos conceitos jurídicos da lei processual independentemente de qualquer intervenção do legislador constitucional, o que é certo é que nunca tal interpretação actualista poderia ter efeitos retroactivos, no sentido de fazer aplicar ao caso concreto uma redacção da Lei fundamental interpretada actualisticamente à luz de normas processuais posteriores aos factos (muito anteriores a 2007), visto tal ser expressamente proibido pelo artigo 18.º, n.º 3, da CRP.
99.º - Desta forma, o crime de branqueamento de capitais, desde logo até 2007, não é subsumível no conceito de “criminalidade altamente organizada” previsto no artigo 207.º da CRP, por não ser sequer defensável que fosse essa a vontade do legislador constituinte (nem tampouco do legislador ordinário).
100.º - Por um lado, tal conceito constitucional depende do elemento da perigosidade elo seu carácter violento, de modo efectivo ou altamente provável) e do elemento de extensa organização. O elemento decisivo não é o grau alto de organização, mas a perigosidade que tal pode provocar se os seus membros tiverem historial ou inclinação para a violência, sendo necessária ainda organização abrangente, com vários cúmplices ou co-autores, alguns em liberdade, de modo a puderem constituir uma ameaça para os Jurados.
l01.º - Consequentemente, uma organização criminosa, ainda que fortemente organizada e extensa (pense-se numa instituição bancária), cujos membros não tenham qualquer passado ou inclinação para a violência, ainda que se dedique ao branqueamento de capitais em larga escala, jamais poderá ser qualificada como criminalidade altamente organizada para efeitos do artigo 207.º, n.º 1, CRP. Certamente, poderá ser qualificada nestes termos à luz do artigo 1.º, al. m), do CPP, para efeitos, por exemplo, do regime da Prisão Preventiva [artigo 202.º, n.º 1, al. c), do CPPJ, mas nunca do artigo 207.º CRP
l02.º - Qualquer interpretação mais extensa tomará inconstitucional a própria introdução deste conceito no actual artigo 207.º, n.º 1, na Revisão Constitucional de 1997.
103.º - Acresce que, em virtude da aplicabilidade directa de preceitos constitucionais obedecer, igualmente, ao disposto no artigo 16.º, n.º 2, 17.º, e 18.º, n.º 1, da CRP, para que no conceito de “criminalidade altamente organizada” previsto no artigo 207.º da CRP fosse subsumível o crime de branqueamento de capitais e pudesse validamente restringir o direito dos cidadãos à intervenção no Júri, por um lado, e o direito do Arguido a ser julgado pelo Júri, por outro, haveria, sempre, que aferir do grau de organização e perigosidade do crime à luz do caso concreto, o que a norma “subjudice” dispensa.
104.º - O ora Recorrente considera absurdo que se sugira que o seu caso concreto preenche estes requisitos e que poderia constituir uma ameaça para os Jurados, ainda que apenas se tivesse em conta as alegações da pronúncia. E considera sem sentido que se qualifique a mera transferência de fundos cuja origem ilícita não ficou minimamente provada para um banco estrangeiro (não tendo efectivamente existido branqueamento algum, por este exigir o elemento da origem ilícita, apesar da sua condenação nesse sentido em violação do seu direito constitucional de propriedade que garante a respectiva movimentação, mesmo para o estrangeiro) como uma actividade perigosa ou altamente organizada.
105.º - Por último, também aqui não é possível legitimar a exclusão do julgamento por tribunal do júri do crime de branqueamento na remissão introduzida na revisão de 1997 para os “casos e com a composição que a lei fixar”, desde logo, porque isso implicaria conferir a tal norma um sentido que violaria o artigo 288.º, als. d) e m), CRP, tal como supra se concluiu.
106.º - Para lá de uma evidente fraude à Constituição, tal restrição não prosseguiria em termos adequados ou necessários o fim da isenção, dado que não existindo qualquer factor intimidatório ficaria por justificar a exclusão do Júri. Igualmente a privação do ora recorrente do seu direito de ser julgado pelos seus concidadãos e do direito de todos estes potencialmente o poderem vir a julgar tornaria claramente desproporcionada tal restrição.
107.º - Finalmente, tendo tal alargamento da noção legal de “criminalidade altamente organizada” tido natureza constitutiva e não declarativa da correspondente noção constitucional, a exclusão do branqueamento teria sido realizada em 2007, não podendo ser aplicada retroactivamente aos factos anteriormente ocorridos por força do artigo 18.º, n.º 3, CRP, sob pena de a referida al. m) do n.º 1, do artigo 1.º, do C.P. Penal, ser inconstitucional ainda por mais este fundamento.
108.º - Assim, a norma em questão é materialmente inconstitucional por violação dos artigos l.º, 2.º, 12.º, 13.º, 17.º, 18.º, n.º 2 e 3, 20.º, n.º 4 e n.º 5, 32.º, n.º 1, 48.º, n.º 1, 50.º, n.º 2, e 207.º, n.º 1 ,als. d) e m) do 288.º da CRP.
Em síntese, e nestes termos, deve a norma do artigo 40º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, ser julgada inconstitucional em todos e cada um dos sentidos em que se desdobrou a sua aplicação no caso dos autos, após o que deve ser ordenada a baixa dos autos ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa para alterar o douto Acórdão recorrido em função da declaração de inconstitucionalidade material que venha a ser proferida, admitindo-se a intervenção do tribunal do júri no julgamento do Arguido, ora Recorrente, quanto aos crimes previstos na Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, pelos quais ainda se mantenha a acusação e de branqueamento de capitais, seguindo-se os demais termos legais.
O Ministério Público respondeu, concluindo do seguinte modo:
“A Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, ao responsabilizar criminalmente os titulares de cargos políticos por actos cometidos no exercício das suas funções, tem especificidades próprias que se explicam pelo relevo dos bens jurídicos que afectam (os bens jurídico-constitucionais em sentido estrito) e pelo especial dever de zelo a que se vinculam esses mesmos titulares de cargos políticos perante o interesse público e perante o povo donde tiram a sua legitimidade.
O n.º 1 do art.º 207.º da Constituição determina os casos em que a constituição ou mera previsão legal do tribunal do júri está excluída (os dos crimes que não sejam graves, e de entre os graves, os de terrorismo e de criminalidade altamente organizada), remetendo para a lei ordinária a concretização dos casos de intervenção do júri.
O art.º 13.º do Código do Processo Penal especifica a competência do tribunal do júri, delimitando o conceito de crime grave para efeitos de julgamento com intervenção de júri.
Neste enquadramento jurídico-constitucional, não se afigura arbitrária, infundada ou manifestamente desproporcionada, a restrição à intervenção do júri, operada por força do art.º 40.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho.
Pelo que, tal restrição não afronta a Constituição, nomeadamente, os seus art.ºs 207.º, n.º 1, 13.º e 18.º .
Deve, pois, o presente recurso, improceder.”
Fundamentação
1. Da delimitação do objecto do recurso
1.1. Da irrelevância das modificações introduzidas em sede de alegações na enunciação das questões colocadas no requerimento de interposição de recurso
O objecto do recurso constitucional é definido em primeiro lugar pelos termos do requerimento de interposição de recurso.
Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objecto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com excepção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza (vide, LOPES DO REGO, em “Os recursos de fiscalização concreta na lei e na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, pág. 207, da ed. de 2010, da Almedina)
Confrontando o teor das conclusões das alegações com o do requerimento de interposição de recurso, constata-se que o Recorrente ampliou significativamente os termos em que havia delimitado o objecto do recurso neste requerimento, invocando a inconstitucionalidade de novas dimensões normativas.
O Recorrente, no requerimento de interposição de recurso, além de se ter referido à revogação do artigo 40.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, o que é questão infraconstitucional, apenas invocou a inconstitucionalidade deste preceito, enquanto impossibilita a constituição de tribunal do júri relativamente a crimes alegadamente cometidos por titulares de cargos políticos, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 12.º, 13.º, 17.º, 18.º, 32.º, n.º 1 e 207.º, n.º 1, da Constituição.
Nas alegações agora apresentadas, além da inconstitucionalidade deste preceito legal, o arguido também invoca a inconstitucionalidade de novas interpretações normativas deste preceito que imputa à decisão recorrida, designadamente:
- A interpretação do artigo 40.º da Lei n.º 34/87, no sentido de o Tribunal do júri não poder efectuar o julgamento do crime de branqueamento de capitais em casos em que se verifique, face ao concreto teor do despacho de pronúncia, que este crime tem com os demais, nela previstos e pelos quais o arguido esteja acusado, “uma significativa relação de instrumentalidade ou conexão”;
- A interpretação do artigo 40.º da Lei n.º 34/87 no sentido de o Tribunal do júri não poder efectuar o julgamento do crime de branqueamento de capitais em casos em que resulte da alegação feita no despacho de pronúncia que este crime tem com os demais pelos quais o arguido esteja acusado “uma significativa relação de instrumentalidade ou conexão”, mesmo quando (sendo apreciado o recurso da decisão que indeferiu o Júri juntamente com o recurso da decisão condenatória) não se tenha provado que o dinheiro alegadamente branqueado tenha origem ilícita ou que fosse proveniente do exercício do cargo político exercido pelo Arguido. Em suma, quando apesar de tal instrumentalidade ou conexão ter sido alegada, tal não tenha sido minimamente provado;
- A interpretação do artigo 40.º da Lei n.º 34/87, no sentido de o Tribunal do júri não poder efectuar o julgamento do crime de branqueamento de capitais por este crime ser automaticamente subsumível no conceito de “criminalidade altamente organizada” previsto no artigo 207.º da CRP, independentemente do grau de organização e sofisticação do crime no caso concreto, e de uma avaliação que casuisticamente o confirme;
- A interpretação do artigo 40.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, no sentido de o Tribunal do júri não poder efectuar o julgamento com fundamento em que o arguido se encontra acusado de crimes previstos naquela lei, quando este não venha a ser condenado pela prática desses crimes.
Apesar de reportadas ao mesmo artigo 40.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, cuja inconstitucionalidade havia sido arguida no requerimento de interposição de recurso, estamos perante novos conteúdos normativos de origem interpretativa, imputados à decisão recorrida, que se diferenciam do sentido do próprio preceito legal, pelo que não é possível considerá-los compreendidos na definição do objecto de recurso efectuada de forma definitiva no requerimento que o interpôs.
Por estes motivos, na apreciação do mérito do presente recurso apenas se efectuará a fiscalização da constitucionalidade da norma imediatamente extraível do enunciado literal do artigo 40.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, estando excluído do seu objecto qualquer uma das agora invocadas interpretações normativas deste preceito.
1.2. Do segmento do artigo 40.º, da lei n.º 34/87, de 16 de Julho aplicado pela decisão recorrida
Atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, , a sua admissibilidade depende de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, da norma cuja inconstitucionalidade é defendida pelo Recorrente.
O artigo 40.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, impõe a inadmissibilidade de intervenção de um tribunal do júri no julgamento de uma pluralidade de crimes – todos os referidos naquela lei.
Ora, da leitura da decisão recorrida verifica-se que o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de considerar que não era admissível o julgamento por um tribunal do júri, no disposto no artigo 40.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, apenas relativamente aos crimes de participação económica em negócio, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3.º, n. º 1, alínea i), e 23.º, n. º 1, dos três crimes de corrupção passiva para acto ilícito, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.º 1, i), e 16.º, n.º 1, e de um crime de abuso de poder, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.º 1, i), e 26.º, n. º 1, todos da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho. Já relativamente ao crime de branqueamento de capitais, p.p. pelo artigo 2.º, n.º 1, a) e b), do Decreto-Lei n.º 325/95, de 2 de Dezembro, e posteriormente pelo artigo 368.º - A, n.º 1 e 2, do Código Penal, a impossibilidade da seu julgamento ser feito por um tribunal do júri, assentou numa dupla fundamentação. Se, por um lado, se aceitou a tese da 1.ª instância de que o mesmo, atenta a descrição da factualidade que o preenche, constante do despacho de pronúncia, podia ser encarado como um crime praticado pelo titular de um cargo político no exercício das suas funções e por isso se encontrava abrangido pela proibição do artigo 40.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, por força do disposto no artigo 2.º, do mesmo diploma; por outro lado, também se considerou que esse crime podia integrar a categoria da criminalidade altamente organizada, em relação à qual o próprio artigo 207.º, n.º 1, da Constituição, exclui a possibilidade de serem julgados por um tribunal do júri. Verificando-se esta dupla fundamentação, a questão da inconstitucionalidade do artigo 40.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, não era decisiva para apurar a inadmissibilidade deste crime ser julgado por um tribunal do júri, uma vez que, mesmo que se concluísse por um juízo nesse sentido, sempre restaria o outro fundamento adiantado pela decisão recorrida para recusar a intervenção daquele tipo de tribunal, pelo que, relativamente a este crime, o conhecimento da questão de constitucionalidade colocada pelo Recorrente revela-se inútil.
Assim, o objecto do presente recurso deve restringir-se ao artigo 40.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, no segmento em que impede o julgamento por um tribunal do júri dos crimes de participação económica em negócio, p.p. nos artigos 3.º, n. º 1, alínea i), e 23.º, n. º 1, de corrupção passiva para acto ilícito, p.p. nos artigos 3.º, n.º 1, i), e 16.º, n.º 1, e de abuso de poder, p.p. pelos artigos 3.º, n.º 1, i), e 26.º, n. º 1, todos da referida Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, quando cometidos por um membro de um órgão representativo de autarquia local.
2. Do mérito do recurso
2.1. A instituição de um tribunal do júri, caracterizado por integrar na sua composição juízes leigos, tem origens muito antigas, e foi restaurado em Portugal, na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974, após ter sido abolido em 1927 pela Ditadura Militar (sobre a história dos tribunais de júri em Portugal e no direito comparado, leia-se António Manuel Morais, em “O júri no tribunal. Da sua origem aos nossos dias”, ed. de 2000, da Hugin, Paulo Dá Mesquita, em “A dimensão política do júri criminal em Portugal – Nótula histórica e prospectiva”, em “Processo penal, prova e sistema judiciário”, pág. 187 e seg., da ed. de 2010, da Wolters Kluver/Coimbra Editora, e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 261/94, de 23 de Março de 1994).
A Constituição de 1976, na sua redacção original, seguindo de perto o regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de Novembro, preceituava no artigo 216.º, n.º 1, que “o júri é composto pelos juízes do tribunal colectivo e por jurados”, e no seu n.º 2 que “o júri intervém no julgamento dos crimes graves e funciona quando a acusação ou a defesa o requeiram”.
Após a revisão constitucional de 1982 passou a prescrever-se no artigo 217.º, n.º 1, que “o júri, é composto pelos juízes do tribunal colectivo e por jurados, intervém no julgamento dos crimes graves e funciona quando a acusação ou a defesa o requeiram”.
Com a revisão de 1989, o artigo 210.º, n.º 1, da Constituição, passou a prescrever que “o júri é composto pelos juízes do tribunal colectivo e por jurados e intervém no julgamento dos crimes graves, com excepção dos de terrorismo, quando a acusação ou a defesa o requeiram”.
Finalmente, com a revisão de 1997, foi dada a actual redacção ao agora artigo 207.º, n.º 1, onde se lê que “o júri, nos casos e com a composição que a lei fixar, intervém no julgamento dos crimes graves, salvo os de terrorismo e os de criminalidade altamente organizada, designadamente quando a acusação ou a defesa o requeiram”.
Relativamente aos casos de intervenção do tribunal do júri, verifica-se que anteriormente à Revisão operada em 1997, o seu âmbito de previsão foi sempre restrito ao julgamento em processo penal dos crimes graves, tendo ainda a revisão de 1989 excepcionado os crimes de terrorismo.
Ao estabelecer um critério de definição de competência aberto – “julgamento dos crimes graves” – a Constituição sempre conferiu ao legislador uma ampla liberdade para este indicar quais os crimes que considerava assumirem uma gravidade que justificava a possibilidade de serem julgados por um tribunal do júri, a requerimento da defesa ou da acusação. O único limite à liberdade do legislador ordinário definir em processo penal quais eram os casos em que um tribunal do júri podia ser chamado a intervir, além dos crimes de terrorismo, era apenas o da gravidade do crime a julgar.
Por isso, o legislador ordinário, para além dos crimes de terrorismo, não podia prever um tribunal do júri para julgar crimes manifestamente sem gravidade, assim como não podia deixar de facultar à acusação e à defesa a possibilidade de requererem a sua intervenção no julgamento dos crimes em que o grau de gravidade era inequivocamente elevado.
A Revisão de 1997, para além de ter estendido a proibição do legislador prever a intervenção do tribunal do júri na criminalidade altamente organizada, introduziu a expressão “nos casos e com a composição que a lei fixar”, em substituição da frase “é composto pelos juízes do tribunal colectivo e por jurados”, e onde constava “quando a acusação ou a defesa o requeiram”, passou a dizer-se “designadamente quando a acusação ou a defesa o requeiram”.
Se da leitura dos trabalhos preparatórios (vide o Diário da Assembleia da República, IV Revisão Constitucional, 7.ª Legislatura, 2.ª Sessão Legislativa, n.º 49, de 07-11-1996, pág. 1527 e seg.) ressalta, com nitidez, que esta alteração visou, por um lado, pôr fim à rigidez imposta na composição do tribunal do júri e à confusão entre tribunal colectivo e tribunal do júri que a anterior redacção provocava (vide, neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, em “Constituição da República Portuguesa anotada”, vol. II, pág. 537, da 4.ª ed., da Coimbra Editora) e, por outro lado, conferir liberdade ao legislador ordinário para prever situações de funcionamento obrigatório do tribunal do júri (vide, neste sentido, Damião da Cunha, em “Constituição Portuguesa anotada”, de Jorge Miranda/Rui Medeiros, tomo III, pág. 94, da ed. de 2007, da Coimbra Editora), no que respeita à delimitação dos casos de intervenção do tribunal do júri, a nova redacção do artigo 207.º, n.º 1, da Constituição, veio dificultar a compreensão do seu sentido. Embora não se conheça nenhuma declaração de intenção prévia com esse objectivo, o que é certo é que a redacção do artigo 207.º, n.º 1, da Constituição, após a Revisão de 1997, possibilita a interpretação de que também foi conferida liberdade ao julgador de, entre os crimes graves, escolher aqueles em que não é admissível a intervenção de tribunal do júri (vide, neste sentido, Damião da Cunha, na ob. e loc. cit.) .
Com estas leituras, o legislador ordinário, além de poder conformar livremente a composição do tribunal do júri, ganhou igualmente a liberdade de determinar a sua constituição obrigatória e de, seguindo critérios de razoabilidade, seleccionar entre os crimes graves quais os que permitem a intervenção do tribunal do júri, ficando-lhe apenas vedada a possibilidade de prever a possibilidade dessa intervenção nos crimes de pequena gravidade e nos de terrorismo e de criminalidade altamente organizada.
Assim sendo, com excepção do aditamento de uma nova categoria de crimes em que é vedado ao legislador ordinário prever a intervenção do tribunal do júri – os de criminalidade altamente organizada – a Revisão de 1997, neste domínio, orientou-se no sentido de acentuar a entrega ao legislador ordinário da tarefa de definição da importância e do figurino desta forma de participação popular na Administração da Justiça.
O Recorrente alega que a aprovação da nova redacção deste preceito pela Revisão Constitucional de 1997 ultrapassou os limites materiais da revisão impostos no artigo 288.º, alíneas d) e m), da Constituição, pelo que as alterações introduzidas seriam elas próprias inconstitucionais, o que impediria a sua invocação para fundamentar a conformidade constitucional das normas aqui sob fiscalização.
Independentemente de sabermos se a previsão do tribunal do júri tem um conteúdo que se insere no âmbito de alguma destas alíneas, do artigo 288.º, da Constituição, se as alterações operadas pela revisão de 1997 violam esses limites materiais, e ainda se o Tribunal Constitucional pode conhecer desse vício em fiscalização sucessiva concreta, facilmente se constata que a questão colocada, apesar de academicamente interessante, não é relevante para a apreciação do mérito deste recurso.
Na verdade, atento o conteúdo do segmento normativo aqui sob fiscalização, verifica-se que a sua constitucionalidade não é aferida nem pela possibilidade do legislador poder prever uma intervenção obrigatória do tribunal do júri, nem pela nova proibição de intervenção nos casos de criminalidade altamente organizada, nem ainda pela eventual ampliação da liberdade do legislador ordinário seleccionar entre os crimes graves aqueles em que se justifica a possibilidade de intervenção do tribunal do júri, uma vez que nenhum dos crimes a que a mesma se reporta (um crime de participação económica em negócio, um crime de corrupção passiva para acto ilícito, e um crime de abuso de poder), como adiante se demonstrará, está fora da margem de liberdade de que o legislador goza no preenchimento do conceito de crime grave, para os efeitos previstos no artigo 207.º, n.º 1, da Constituição.
Não se revelando que as alterações introduzidas neste domínio pela Revisão Constitucional de 1997 sejam determinantes para se avaliar a constitucionalidade do segmento normativo impugnado, carece de sentido útil para o presente recurso a acusação de que essas alterações são inconstitucionais, por violarem os limites materiais da revisão da Constituição.
2.2. A aprovação da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, teve em vista dar cumprimento à imposição legiferante contida, então, no artigo 120.º, n.º 3, da Constituição (a que corresponde, actualmente, o artigo 117.º, n.º 3), no sentido de a lei determinar “os crimes da responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respectivos efeitos”.
Este preceito constitucional, no seu n.º 1, começa desde logo por estabelecer o princípio geral de que “os titulares de cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelas acções e omissões que pratiquem”, conceitos estes que não estão isentos de dificuldades de densificação jurídico-constitucional (vide, a este propósito, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2010, pág. 118 e ss.).
A autonomização dos crimes cometidos pelos titulares de cargos políticos no exercício das respectivas funções e por causa do seu exercício explica-se pelo acrescido dever de zelo a que se vinculam esses cidadãos perante o interesse público e o povo (Jorge Miranda, em “Constituição Portuguesa anotada”, tomo II, pág. 322, da ed. de 2006, da Coimbra Editora).
A Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, assumiu a tipificação destes crimes conjuntamente com os cometidos pelos titulares de altos cargos públicos, bem como as sanções que lhes são aplicáveis e os respectivos efeitos.
E, no seu artigo 40.º, dispôs que o julgamento desses crimes far-se-ia sem intervenção do tribunal do júri.
Entre as razões que terão determinado o afastamento da possibilidade de julgamento com intervenção do júri, relativamente aos crimes previstos nesta lei, estará, desde logo, a necessidade de traçar uma distinção clara, entre a responsabilização dos titulares de cargos políticos no plano político e no plano criminal.
Com efeito, se é certo que o tribunal do júri é uma forma privilegiada de participação dos cidadãos na administração da justiça, o legislador entendeu que, quando estejam em causa os crimes previstos na aludida Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, tal participação comporta mais riscos e inconvenientes do que vantagens.
Desde logo, porque os titulares de cargos políticos, independentemente de qualquer responsabilidade criminal pelos seus actos e omissões, têm sempre, no âmbito da sua responsabilidade política, o dever de «prestar contas» pelas suas decisões, pelos seus actos e omissões, e pelos resultados dessa actuação no exercício dos respectivos cargos. Mas esse «prestar de contas» em termos políticos não se confunde, nem pode confundir-se, com um «prestar de contas» em termos de responsabilidade criminal. E um tal risco de confusão é decerto potenciado quando se colocam na situação de julgadores de uma responsabilidade criminal aqueles a quem incumbe o escrutínio político dos titulares de cargos públicos. É assim compreensível e justificado que o legislador tenha entendido excluir a intervenção como julgadores daqueles que dificilmente se poderiam distanciar do juízo (político) que num sistema democrático são naturalmente chamados a formular sobre quem governa.
Não se trata aqui de presumir que os cidadãos, enquanto jurados, são irremediavelmente parciais nos seus juízos em relação aos políticos. O que se pretende realçar é que, em relação a crimes da responsabilidade de titulares políticos, o perigo de “contaminação” entre o plano da responsabilidade política e o da responsabilidade criminal constitui um risco bem evidente.
Dir-se-á que este perigo não fica afastado em relação aos magistrados, que têm também pré-compreensões políticas, podendo ter também pré-conceitos em relação à personalidade a julgar.
Contudo, não se pode afirmar que, neste aspecto, os magistrados estejam nas mesmas condições que os demais cidadãos. Não só a sua formação jurídica e experiência profissional os habilita a melhor evitar a interferência de eventuais elementos inibidores da sua imparcialidade e isenção e a destrinçar os planos político e criminal, em sede de responsabilização, como estão também sujeitos a uma série de deveres estatutários que não impendem sobre a generalidade dos cidadãos (v.g. a proibição da prática de actividades político-partidárias de carácter público e a sujeição a um rigoroso regime de incompatibilidades), deveres esses que são também garantes das referidas qualidades de imparcialidade e isenção.
A tudo isto acresce que, também no caso de julgamento de crimes imputados a titulares de cargos políticos, não se pode excluir a existência de problemas relacionados com a pressão que poderia ser exercida sobre os jurados em determinado tipo de circunstâncias, tendo em atenção a natureza dos crimes em julgamento e o peso político-social dos seus autores.
A admitir-se a possibilidade de julgamento com intervenção de júri nestes casos, torna-se maior o risco de se provocarem situações de difícil aplicação de justiça por força das pressões que venham a ser exercidas sobre os jurados, às quais um cidadão, porque não beneficia das mesmas garantias dos magistrados, consagradas no respectivo estatuto, no sentido de acautelar a sua independência e isenção, poderá ter maior dificuldade em escapar.
É que, também nestes casos, esta proibição de intervenção do tribunal do júri visa proteger os cidadãos que, sendo obrigados a integrar um júri para este tipo de crimes, poderiam ver postos em causa valores essenciais, pessoais e familiares, pois estariam mais expostos a pressões ou outras formas atentatórias da sua liberdade, segurança e tranquilidade, direitos esses que cumpre ao Estado salvaguardar.
No segmento normativo do artigo 40.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, aqui sob fiscalização, está apenas em causa a proibição de um tribunal do júri julgar um crime de participação económica em negócio, p.p. pelo artigo 23.º, n. º 1, um crime de corrupção passiva para acto ilícito, p.p. pelo 16.º, n.º 1, e de um crime de abuso de poder, p.p. pelo 26.º, n. º 1, todos da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, quando cometidos por um membro de um órgão representativo duma autarquia local.
O artigo 16.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, na redacção introduzida pela Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro, conjugado com o artigo 3.º, n.º 1, i), do mesmo diploma, dispõe que o membro de um órgão representativo duma autarquia local que no exercício das suas funções, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
O artigo 23.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, conjugado com o artigo 3.º, n.º 1, i), do mesmo diploma, dispõe que o titular de cargo político que, com intenção de obter para si ou para terceiro participação económica ilícita, lesar em negócio jurídico os interesses patrimoniais que, no todo ou em parte, lhe cumpra, em razão das suas funções, administrar, fiscalizar, defender ou realizar será punido com prisão até cinco anos e multa de 50 a 100 dias.
O artigo 26.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, conjugado com o artigo 3.º, n.º 1, i), do mesmo diploma, dispõe que o titular de cargo político que abusar dos poderes ou violar os deveres inerentes às suas funções, com a intenção de obter, para si ou para terceiro, um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo a outrem, será punido com prisão de seis meses a três anos ou multa de 50 a 100 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Apesar de nestes tipos legais de crime estarem em causa bens jurídicos de especial relevância para a autonomia funcional do Estado, a sua credibilidade e a eficácia da sua intervenção para a realização das finalidades que lhe estão atribuídas, num juízo relativo, a sua sujeição ao julgamento por um tribunal de júri deve considerar-se compreendida na margem de liberdade de que o legislador dispõe para preencher o conceito de crime grave, para os efeitos previstos no artigo 207.º, n.º 1, da Constituição, o que se reflecte, desde logo, nas molduras penais previstas, em que a penas máximas são, respectivamente, de 8, 5 e 3 anos de prisão, sendo certo que a pena máxima de prisão no nosso sistema penal atinge os 25 anos.
Assim, facilmente se verifica que o afastamento do júri pelo legislador ordinário no artigo 40.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, quando reportado aos crimes de participação económica em negócio, p.p. pelo artigo 23.º, n. º 1, de corrupção passiva para acto ilícito, p.p. pelo 16.º, n.º 1, e de abuso de poder, p.p. pelo 26.º, n. º 1, todos da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, sendo o artigo 16.º, n.º 1, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro, quando cometidos por um membro de um órgão representativo de autarquia local, não contraria o critério competencial contido no artigo 207.º, n.º 1, da Constituição.
Daí que, mesmo para quem entenda que a previsão constitucional da possibilidade de intervenção de um tribunal do júri consagra reflexamente um direito a ser julgado por um tribunal desse tipo, enquanto corolário das garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), um direito de todo o cidadão a participar na administração da justiça, enquanto dimensão do direito fundamental de participação na vida pública (artigo 48.º, n.º 1, da Constituição), e uma garantia objectiva da independência dos tribunais e da qualidade, da imparcialidade e fidedignidade da administração da justiça (artigos 203.º e 202.º, n.º 2, da Constituição), estando essa previsão limitada ao julgamento de crimes graves, a proibição de intervenção de um tribunal do júri no julgamento dos crimes acima referidos nunca poderia ser encarada como uma restrição a esses direitos, sujeita às exigências do artigo 18.º, n.º 2 e 3, da Constituição, uma vez que a proibição por ela imposta se contém dentro dos limites definidos pela própria previsão constitucional da competência do tribunal do júri.
2.3. O Recorrente também invoca que a norma sob fiscalização viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, da Constituição, porque, na sua argumentação, impede os titulares de cargos políticos que cometam algum dos crimes tipificados na Lei n.º 34/87, de 16 de Junho, de poderem ser julgados por um tribunal do júri, diferentemente do que sucede com os outros cidadãos. Nas palavras do Recorrente “aquele artigo discrimina e torna desigual o acesso ao tribunal do júri pelos titulares de cargos políticos, relativamente ao julgamento de quem não ocupa esses cargos”.
O âmbito de protecção do princípio da igualdade abrange, na ordem constitucional portuguesa (artigo 13.º, da Constituição), a dimensão da proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, as diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes. O princípio da igualdade, nesta perspectiva, obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, sem fundamento material bastante.
A proibição do arbítrio constitui, assim, um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo. Realce-se, no entanto, que a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só existirá infracção ao princípio da igualdade quando os limites externos da discricionariedade legislativa sejam violados, isto é, quando a medida legislativa adoptada não tenha adequado suporte material.
Em primeiro lugar, convém notar que o artigo 40.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, não impede em absoluto o acesso ao tribunal do júri aos cidadãos que forem titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos, mas apenas quando forem julgados por crimes praticados no exercício das suas funções. O que na verdade se impede é que esses crimes sejam julgados por um tribunal do júri.
Ora, se procedêssemos à comparação entre o regime de acesso ao tribunal do júri nos crimes que se encontram em causa no segmento normativo sob análise e o dos que adoptam condutas criminosas idênticas, mas que não são titulares de cargos políticos e altos cargos públicos (crime de corrupção passiva para acto ilícito, p.p. pelo artigo 372.º, do Código Penal, crime de participação económica em negócio, p.p. pelo artigo 377.º, n.º 1, do Código Penal, e crime de abuso de poder, p.p. pelo artigo 382.º, do Código Penal), verificamos que também eles não têm o direito de requerer a intervenção do tribunal do júri, face ao disposto no artigo 13.º, do Código de Processo Penal, pelo que não existe um tratamento discriminatório dos arguidos pelos crimes em causa neste recurso.
Além disso, sempre os fundamentos, acima adiantados, da norma constante do artigo 40.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, se revelam racionalmente inteligíveis e constitucionalmente legítimos, pelo que a proibição de intervenção do tribunal do júri naquele tipo de crimes tem adequado suporte material, não sendo possível qualificar tal medida como arbitrária.
Por todas estas razões, não se mostra que a norma sindicada viole o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição.
2.4. O Recorrente invoca ainda que a norma em análise viola o princípio do processo equitativo porque ao criar um instrumento processual - o requerimento do arguido para a intervenção do tribunal do júri - permite, nos casos a que se aplica a norma em apreço, o seu indeferimento à luz da mera verificação da qualidade do sujeito activo (titular de cargo político), sem que seja necessária a verificação, no caso em questão, de uma qualquer circunstância em que se possa fundar um concreto perigo para a isenção do tribunal do júri que justifique a sua preterição.
O artigo 20.º, da Constituição, garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efective através de um processo equitativo (n.º 4).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, cujo âmbito normativo abrange, nomeadamente, o direito de agir em juízo através de um processo equitativo, o qual deve ser entendido não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais.
A exigência de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo. Contudo, impõe, no seu núcleo essencial, que os regimes adjectivos proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efectiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva.
Neste caso não estamos perante uma situação de negação de acesso aos tribunais, mas sim de acesso a um determinado tipo de tribunal – o tribunal do júri.
A Constituição prevê uma presença deste tribunal desde logo limitada ao processo penal e aos crimes mais graves, facultando ao legislador um grande espaço de definição dos casos em que é admissível a sua intervenção. É perfeitamente possível, e até desejável, por razões de certeza jurídica e de igualdade de acesso, que essa definição seja efectuada pelo legislador através de regras gerais e abstractas, não se deixando ao julgador um apuramento casuístico das situações em que a intervenção do tribunal do júri pudesse comportar riscos para a boa administração da justiça, pelo que o estabelecimento de um critério normativo que exclui a intervenção do tribunal do júri no julgamento duma determinada categoria de crimes, fundada em razões justificativas racionalmente inteligíveis, não contraria de forma alguma os princípios de um processo equitativo.
2.5. Não se verificando que o conteúdo normativo sob fiscalização viole qualquer parâmetro constitucional deve ser negado provimento ao recurso.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional o artigo 40.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, no segmento em que impede o julgamento por um tribunal do júri dos crimes de participação económica em negócio, p.p. nos artigos 3.º, n. º 1, alínea i), e 23.º, n. º 1, de corrupção passiva para acto ilícito, p.p. nos artigos 3.º, n.º 1, i), e 16.º, n.º 1, e de abuso de poder, p.p. pelos artigos 3.º, n.º 1, i), e 26.º, n. º 1, todos da referida Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, quando cometidos por um membro de um órgão representativo de autarquia local
b) Em consequência, julgar improcedente o recurso interposto por A. do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido nestes autos em 13 de Julho de 2010, na parte em que confirmou a decisão de não admitir a intervenção de um tribunal do júri.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 11 de Outubro de 2011.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos. Votei o acórdão no entendimento, que me não é possível desenvolver neste momento, de que a garantia institucional de intervenção do júri, prevista no artigo 207.º, n.º 1 da Constituição não abrange os crimes referidos no artigo 117, n.º 3 da Lei fundamental.