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Processo n.º 796/10
1. ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. e mulher, B., deduziram no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela oposição à execução fiscal por dívida à Caixa Geral de Depósitos. Por sentença de 29 de Abril de 2010 o tribunal declarou-se incompetente para conhecer da oposição, por ter julgado a norma do n.º 3 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 287/93 organicamente inconstitucional. Diz a sentença:
[...] A questão que desde já se coloca é a da competência deste Tribunal Tributário para apreciação da oposição, questão cujo conhecimento precede o de qualquer outra – artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Antes da entrada em vigor do DL n.º 287/93, de 20 de Agosto, os Tribunais Tributários eram os competentes para as execuções em que a Caixa Geral de Depósitos era exequente para cobrança de crédito proveniente de um contrato de mútuo celebrado no exercício da sua actividade comercial.
Com a entrada em vigor daquele diploma a Caixa Geral de Depósitos deixou de ser pessoa colectiva de direito público para passar a ser sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, o que implicou que os Tribunais Tributários deixassem de ser competentes para a execução das dívidas à Caixa, competência que passou para a esfera dos Tribunais Judiciais.
Relativamente aos processos executivos pendentes o artigo 9º, n.º 5 do mesmo diploma legal estabeleceu que eles «continuam a reger-se, até final, pelas regras da competência e de processo vigente à data», isto é, pelos tribunais tributários e pelo processo de execução fiscal. Acontece, que, como tem vindo a ser decidido ultimamente pelo supremo Tribunal Administrativo, tal norma é organicamente inconstitucional, por o Governo ter legislado em matéria da reserva relativa da Assembleia da República – artigo 168.º, n.º 1, alínea a) da CRP, a da competência dos tribunais – ao abrigo da competência legislativa do Governo (artigo 201.º n.º 1 alínea a) da CRP): cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 18-06-2008, processo n.º 413/08, de 28-01-09, processo n.º 0316/05, em dgsi.pt. [...]
2. Notificado, o Ministério Público recorreu desta sentença directamente para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º n.º 1 alínea a), da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), invocando ter sido recusada, por inconstitucionalidade orgânica, a norma do artigo 9º n.º 5 do Decreto-Lei n.º 287/93 de 20 de Agosto.
O recurso foi admitido. No Tribunal Constitucional foi apresentada a alegação do recorrente, que conclui do seguinte modo:
1.º A Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência era, à data da propositura dos presentes autos, uma pessoa colectiva de direito público (cfr. os artigos 2.º do Decreto-Lei nº 48 953, de 5 de Abril de 1969 e 1.º do Regulamento da Caixa Geral de Depósitos, aprovado pelo Decreto nº 694/ 70, de 31 de Dezembro).
2.º A lei atribuía, nessa altura, aos tribunais tributários, competência para a cobrança coerciva das dívidas de que a mesma Caixa fosse credora, independentemente da respectiva natureza (cfr. artigo 61.º do Decreto-Lei nº 48 953, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 17.º do Decreto-Lei 0 693/70 e artigo 159.º do citado Decreto nº 694/70), sendo a competência dos tribunais tributários confirmada pelo artigo 62.º, no 1, alínea c) do ETAF (versão de 1984).
3.º Por força do Decreto-Lei nº 287/93, de 20 de Agosto, a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência, até aí pessoa colectiva de direito público, transformou-se em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, passando a estar submetida a um estatuto de direito privado.
4.º Essa transformação originou, em matéria respeitante à cobrança coerciva das dívidas de que fosse credora a Caixa Geral de Depósitos, uma automática atribuição de competência aos tribunais comuns.
5º No entanto, no caso em apreço, atendendo a que o processo executivo estava pendente à data da entrada m vigor do Decreto-Lei nº 287/93, por força do regime transitório estabelecido pelo nº 5 do seu artigo 9.º, os tribunais tributários continuaram a ser materialmente competentes para a apreciação e decisão dos presentes autos, não se registando, consequentemente, nenhuma modificação de direito sobre a competência material do tribunal tributário em si.
6.º Assim, a norma desaplicada limita-se a proceder à regulamentação do direito transitório, atento o princípio geral de que a competência do tribunal se fixa no momento em que a acção (execução) é intentada.
7.º E essa norma transitória não pode configurar-se como inovatória, na óptica dos princípios afirmados pelo artigo 8º, nº 2, do ETAF/84, quanto à matéria da fixação da competência, constituindo mero corolário do princípio fundamental de que a competência se fixa no momento em que a causa se propõe.
8.º Desse modo, muito embora a definição do regime jurídico atinente à competência dos tribunais se situe no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, não sendo possível introduzir inovações em tal matéria mediante diploma legal desprovido de credencial parlamentar, a norma em causa, não padece da apontada inconstitucionalidade orgânica por violação dos artigos 168.º, nº 1, alínea q), e 20l.º, nº 1, alínea b), da CRP (na redacção resultante da revisão constitucional de 1989).
9.º Termos em que deverá proceder o presente recurso.
Os recorridos contra-alegaram, defendendo a manutenção da sentença recorrida e a improcedência do recurso.
3. Cumpre decidir. Em causa está a norma inscrita no Decreto-Lei n.º 287/93 de 20 de Agosto (diploma que transformou a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos), no seu artigo 9º n.º 5, que apresenta a seguinte redacção: «As execuções pendentes à data da entrada em vigor do presente diploma continuam a reger-se, até final, pelas regras de competência e de processo vigentes nessa data». Todavia, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela entendeu que a norma é organicamente inconstitucional; a transformação da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos teria feito submeter a nova sociedade a um estatuto de direito privado que, automaticamente, incluiria a cobrança coerciva das dívidas de que fosse credora na competência aos tribunais comuns. A norma transitória, ao dispor diferentemente, estaria a interferir com a competência dos tribunais, matéria que se inscreve na competência reservada da Assembleia da República. Acresce que, tendo sido editada pelo Governo sem a necessária autorização parlamentar, padeceria, enfim, do apontado vício.
4. Acontece que o Tribunal tem jurisprudência contrária sobre esta questão. Na verdade, no Acórdão n.º 65/09, (DR, II Série de 23 de Março de 2009) o Tribunal ponderou que o artigo 9.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 287/93 não enferma da apontada inconstitucionalidade. Com efeito, a norma não visa interferir com a competência dos tribunais para efeitos da reserva relativa do parlamento e consequente necessidade de habilitação do Governo. Ao transformar a Caixa Geral de Depósitos em sociedade anónima (de capitais exclusivamente públicos) e, portanto, ao alterar o seu estatuto jurídico, o Governo actuou no exercício da sua competência própria. O artigo 9.º n.º 5, sendo uma norma de direito transitório que visa manter o sistema anterior quanto aos processos pendentes, não 'acrescenta' competência aos tribunais tributários como se estes não fossem, até então, os competentes, apenas explicitando que tal competência se mantém durante o período transitório, visando, assim, ressalvar a vigência da norma anterior nesse período. Deste modo, o artigo 9.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 287/93 limita-se a proceder à regulamentação do direito transitório, de acordo com o princípio geral de que a competência do tribunal se fixa no momento em que a acção/execução é intentada, não contendo, por isso, qualquer disciplina inovatória; o artigo 9.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto, ao prever a competência dos tribunais tributários para as execuções de créditos da Caixa Geral de Depósitos pendentes à data da entrada em vigor daquele diploma, na medida em que não consagra qualquer regulamentação inovatória, não padece da apontada inconstitucionalidade orgânica por violação dos artigos 168.º, n.º 1, alínea q), e 201.º, n.º 1, alínea b), da Constituição (na redacção resultante da revisão constitucional de 1989).
É esta a doutrina a que se adere.
5. Nestes termos, o Tribunal decide conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida para ser reformada de acordo com o precedente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 11 de Outubro de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Rui Manuel Moura Ramos.