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Processo n.º 572/10
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, foi proferida a seguinte decisão sumária:
«I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrida B., S.A., foi interposto recurso, ao abrigo das alíneas b), g) e f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão proferido pela 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, em 02 de Dezembro de 2010 (fls. 537 a 553), posteriormente complementado pelo acórdão, da mesma Secção e Tribunal, de 11 de Fevereiro de 2010 (fls. 578 e 579) que indeferiu pedido de reforma do primeiro.
Através do presente recurso, pretende a recorrente que:
Se proceda à “declaração de Ilegalidade da aplicação de todas as normas do Estatuto (RGU) Disciplinar dos Funcionários Civis, aprovado por Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, publicado no Diário do Governo, n.º 44, de 24 de Fevereiro de 1913. Tal norma foi julgada revogada, em 30.11.93, pelo TC, pelo seu Ac. 93-804-P, proc.º 91-0370, A. Correia, in DR, II série, n.º 76, de 31.03.94, pág. 2952-(33).” (fls. 583);
“Ao abrigo do art.º 70.º, 1, f), LCT, Lei 28/82, e art.º 280.º, 2, d) já que o STA se recusou a aplicar o ED84 da FP, 16.01, norma cuja aplicabilidade foi defendida pelo RECORRENTE durante o processo e a contrario, por si defendida a revogação do ED1913” (sic, a fls. 584).
Acrescente-se ainda que a recorrente afirma ter cumprido o ónus de prévia suscitação da questão de constitucionalidade, imposto pelo n.º 2 do artigo 72º da LTC, nos seguintes termos:
“Em suma: a norma cuja ilegalidade foi oportunamente suscitada no processo, nomeadamente nas alegações de recurso para o STJ (sic), ou seja o ED 1913 de 22 de Fevereiro, foi aplicado pelo STA, em detrimento do ED24/84 de 16 de Janeiro, já tinha sido considerada revogada pelo TC na apreciação da inconstitucionalidade de três casos e já não é admitido recurso ordinário.” (fls. 585)
Cumpre apreciar.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 588), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que os mesmos não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Em primeiro lugar, cumpre relembrar que, em sede de recurso de constitucionalidade, cabe aos recorrentes fixar o objecto do recurso, através da formulação dos pedidos adequados à defesa da sua posição processual, devendo estes ser “restritos à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade suscitada” (artigo 71º, n.º 1, da LTC). Significa isto, portanto, que vigora, em processo constitucional, o princípio do pedido segundo o qual apenas cabe ao Tribunal Constitucional conhecer das questões colocadas pelo recorrente, nos precisos termos em que o sejam. Aliás, a jurisprudência deste Tribunal é firme e consolidada (ver, por exemplo, Acórdão n.º 122/98, disponível in www.tribunalconstitucional.pt) no sentido de que não pode conhecer de questões que não constem do requerimento de interposição de recurso, que constitui a sede própria para fixação do objecto do recurso (assim, ver ainda Acórdãos n.º 20/97, n.º 507/97, n.º 608/99 e n.º 286/2000, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, a recorrente apenas requereu “a declaração de Ilegalidade da aplicação de todas as normas do Estatuto (RGU) Disciplinar dos Funcionários Civis, aprovado por Decreto de 22 de Fevereiro de 1913” (fls. 583). Aliás, fá-lo mediante invocação contraditória das alíneas b) e g) que ou não versam questões de “ilegalidade normativa”, em sentido estrito, mas de inconstitucionalidade – no caso da alínea b) – ou então visam a apreciação de contradição entre anterior decisão do Tribunal Constitucional que haja julgado “inconstitucional” ou “ilegal” determinada norma – no caso da alínea g). Em boa verdade, caso realmente pretendesse que este Tribunal apreciasse a “ilegalidade”, em sentido estrito e próprio, de determinada norma daquele diploma legal, necessário teria sido que o tivesse feito ao abrigo de qualquer uma das alíneas c), d) ou e) do n.º 1 do artigo 70º, da LTC, indicando quais as normas legais reforçadas que foram violadas. Não o fez, porém.
É por demais evidente que nem a decisão recorrida aplicou qualquer norma do Estatuto Disciplinar de 1913 que fosse “ilegal”, em sentido próprio, nem muito menos a recorrente suscitou tal ilegalidade. É que a “ilegalidade normativa”, em sentido próprio, pressupõe uma desconformidade entre norma constante de um acto legislativo de valor ordinário e uma outra norma, de valor hierárquico superior (mas ainda assim inferior às normas constitucionais), que conste de acto legislativo dotado de supremacia paramétrica. Não basta, portanto, que a recorrente discorde do sentido em que a decisão recorrida aplicou determinada norma infra-constitucional, para que esta seja “ilegal”, em sentido próprio.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional também jamais deteria poderes para sindicar a alegada ilegalidade “de todas as normas do Estatuto (RGU) Disciplinar dos Funcionários Civis” (sic). Pelo contrário, nos termos do artigo 79º-C da LTC, apenas é admissível fiscalizar a legalidade de normas que tenham sido efectivamente aplicadas pela decisão recorrida, pelo que caberia à recorrente individualizar quais as normas daquele diploma legal julgava ela serem inconstitucionais.
Por último, refira-se que não se devem apreciar as questões, colocadas pela recorrente, relativas à sucessão no tempo – e alegada revogação – dos regimes jurídico-disciplinares aplicáveis aos trabalhadores da recorrida, uma vez que a função deste Tribunal, em sede de fiscalização sucessiva concreta se limita a apreciar se as normas jurídicas aplicadas ou recusadas aplicar por um tribunal comum são ou não conformes à Lei Fundamental.
4. E, ainda que a recorrente o tenha feito de modo processualmente desadequado, acresce que não se compreende o que pretende extrair da referência, de passagem, à alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, como um pedido de fiscalização de eventual contradição entre a decisão recorrida e o Acórdão n.º 804/93 do Tribunal Constitucional.
Com efeito, o que a recorrente peticionou foi que fosse apreciada a ilegalidade de todas as normas do Estatuto Disciplinar de 1913. Ora, o referido Acórdão n.º 804/93 nunca se pronunciou sobre questões de “ilegalidade normativa”, em sentido próprio, tendo antes sido confrontado com uma questão de inconstitucionalidade normativa, em sede de fiscalização sucessiva abstracta, a pedido do Provedor de Justiça. Acresce ainda que o referido pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral apenas versava sobre o artigo 37º daquele Estatuto Disciplinar, quando, em bom rigor, tal norma não constitui “ratio decidendi” da decisão recorrida nos presentes autos. Assim sendo, nunca poderia a decisão recorrida estar em contradição com o Acórdão n.º 804/93.
O Tribunal Constitucional deve pois recusar conhecer do objecto do presente recurso, igualmente ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, na medida em que o Acórdão n.º 804/93 nem sequer julgou ilegal a norma extraída do artigo 37º daquele diploma e, muito menos, julgou ilegais todas as respectivas normas.
5. Por último, a recorrente formula um pedido contraditório, pois invoca a alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, ao mesmo tempo que faz alusão ao facto de a decisão recorrida – segundo o seu entendimento – se ter recusado “a aplicar o ED84 da FP, 16.01, norma cuja aplicabilidade foi defendida pelo RECORRENTE durante o processo” (fls. 584).
Conforme já supra demonstrado, a recorrente não invocou nos autos recorridos qualquer contradição entre uma precisa norma do Estatuto Disciplinar de 1913 e uma norma constante de lei com valor reforçado, pelo que falece a invocação da alínea f). Por outro lado, a referência a uma recusa de aplicação não pode ser interpretada como uma alusão aos recursos interpostos ao abrigo das alíneas a), c), d) ou e), na medida em que tal pressupõe que a decisão recorrida tenha desaplicado determinada norma com fundamento em inconstitucionalidade ou ilegalidade, em sentido próprio. Ora, da análise da decisão recorrida resulta que a mesma não procedeu a qualquer desaplicação de norma, tendo-se limitado a julgar aplicável uma lei anterior, em detrimento de uma lei posterior, mas sem que para tal se visse forçada a invocar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade do Estatuto Disciplinar de 1984.
III – Decisão
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, pelos fundamentos supra expostos, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.»
2. Inconformada com a referida decisão, a recorrente veio reclamar, nos seguintes termos, que ora se sintetizam:
«(…)
3. Respondendo ao n°3 da decisão sumária, a REC reconhece a necessidade legal de delimitar com precisão o objecto de recurso. Se não o fez, também reconhece que, nos termos do n. °6 do art.°75.° - A, i. é, o juiz convidará o requerente a prestar essa indicação no prazo de dez dias
4. Como quer que seja, e sem prejuízo de eventual convite se se entender pertinente, as normas que entende inconstitucionais são os artigos 50, 6°,n° 10,7° nº 4,e & 2, 8°, n°1 e 19° do reg F.P. de 1913 e a omissão de normativo sobre a aposentação compulsiva no ED 1913, possível de ponderar contudo nos termos do disposto n° art°56° do D.L. 498/72 de 09.12, não aplicado, e que desiguala os funcionários da Caixa dos Funcionários públicos que em igualdade de circunstâncias têm essa ponderação da aposentação compulsiva possível no ED24/84, como tudo decorre quer da deliberação punitiva do C. A. B. do Ac. do S. T.A. e do recurso de Revista interposto.
5. Por outro lado, há violação do seu direito de audiência e defesa se a REC, ao responder à NC apresentada (como invocou no recurso ao STA), é orientada por uma determinada qualificação jurídica dos factos. São substancialmente diferente nas suas previsões, seja por efeito do sistema de penas que é diferente nos dois ED’S em confronto — O ED84 e o ED1913, seja por efeito da listagem aos factos a que se aplicam.
6. Se à REC é aplicado um diploma já revogado em todo um procedimento disciplinar que o STA sancionou com uma aparente fundamentação na tradição, só pode recorrer, invocando os artigos constantes da nota de culpa.
Em todo o caso, tudo lhe parece mera formalidade, já que ao TC, importaria a revogação de todo o diploma o ED1913, como já o havia decidido (insiste-se...). É que o “todo” revogado contém aqueles preceitos aplicados pelo STA e que a REC considera ilegais, revogados e, como tal, violadores do art.°3. ° da CRP e, como tal inconstitucionais.
7. Se à REC têm de ser garantidos “os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático” (art. °9. °, b, CRP e art. °266. °da CRP), o respeito pela igualdade (com os funcionários públicos, conf.art.31.°, 2. °DL 48953, de 05.04.69 e respectiva lei de bases e art. °13. ° do preâmbulo) e o respeito pela segurança jurídica.
8. Parece verdade que a análise da ilegalidade de um diploma, no seu todo, não faz parte das tarefas do TC, é situação que deve ser resolvida com recurso a outros argumentos, para além do maior conter o menor.
9. Disse a REC, oportunamente e parece que bem, que o ED1913 foi revogado pelos sucessivos ED’S da função pública e que regularam a mesma matéria.
Nesse sentido, se não há qualquer vinculação legal à utilização desse ED1913, a sua aplicação constitui uma violação de uma lei com valor reforçado, no caso o a lei de bases da função pública em que se inclui o ED84. A sua aplicação viola as regras da interpretação das leis do CC, art.°7. ° e ss.
10.Se tomarmos como exemplo a questão da aplicação da aposentação compulsiva (art. °26. °do ED84 que não tem comparação no ED1913) — porventura mais importante questão suscitada no processo e no recurso, verifica-se que era clara no ED84 e tal como muita jurisprudência o entendeu, a ponderação da sua aplicação no caso da REC. E o que se verifica- Porque isso não é taxativo no ED1913 nem existe, a Caixa não a ponderava. Mas como o problema se começou a levantar com o seu ED104/93 (vide AC STA (P) 873/04 de 1612.2004), a Caixa começou a fazê-lo, recorrendo a um diploma revogado de 1931. No caso da REC diz que fez essa ponderação, mas só ponderou que não podia ponderar, é o que se pode conclui da fundamentação conclusiva, nem foi consultada a CGA, nem houve coerência entre a gravidade das infracções invocadas e a inidoneidade moral prevista na lei dita corro aplicada.
11. Ora aí tem o TC um problema concreto. Aquele diploma de 1913 viola um diploma de valor reforçado que lhe é posterior - o ED84 da FP, de valor reforçado e, nesse sentido, há inconstitucionalidade na desigualdade com a FP, tendo a RLC urna relação de emprego pública, e há ilegalidade porque, não existindo o ED1913 na ordem jurídica, não contém tal norma. O STA sancionou a aplicação do ED1913 que a REC nunca conheceu nem viu publicado até à elaboração do processo disciplinar e que conformou toda a sua defesa. Mas não há dúvidas que foram aplicadas todas aquelas que constam do PD, invocadas pela Caixa e que o STA sancionou. No mínimo são todas essas, porque estão revogadas, tanto quanto o ED1913 na sua totalidade. Se O TC não tem poderes para o todo, tem poderes de cognição para o “minus” — as normas concretamente aplicadas pela Caixa, apenas essas, o que, convenhamos, vai conduzir ao mesmo resultado.
12. Sobre o nº. °4 da decisão sumária em análise, dirá a REC tão só que o objecto do recurso 804/93 foi o da declaração da ilegalidade com força obrigatória geral do art037.C do referido ED1913. E a “ratio decidendi” da decisão negativa é a de que tal diploma se encontrava revogado, portanto, não havia interesse jurídico em responder ao pedido, mas o referido ED1913 não ficou, por isso, em vigor. Isso é que é substancial, não formal. E bastante incompreensível.
13.Resumindo: Se o TC não tem poderes para conhecer da ilegalidade por revogação do E01913, na sua globalidade, tem poderes para reconhecer a sua inconstitucionalidade, além do mais, por desigualdade dos trabalhadores da função pública em questões essenciais e a ilegalidade de todos os artigos do diploma invocados pela Caixa e todos aceites pelo STA.
14. Pede-se, nos, a releitura dos pedidos da REC à luz desta reclamação, que apela» (fls. 684 a 688).
3. Após devidamente notificado para responder, a recorrida veio aos autos pronunciar-se nos seguintes termos:
“(…)
5. (…)
Quer isto dizer que, no caso em apreço, a admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional está condicionada, para além do respeito pelo prazo respectivo, pela verificação de cinco pressupostos processuais, a saber:
A identificação de uma norma jurídica cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada;
A aplicação pela decisão judicial recorrida dessa mesma norma jurídica;
A suscitação durante o processo da questão da inconstitucionalidade;
A interposição do recurso pela parte que suscitou a questão da inconstitucionalidade;
A não admissibilidade de recurso ordinário da decisão judicial em causa.
6. Ora, se os pressupostos a que se referem nas alíneas d) e e) acima não constituiriam óbice à admissibilidade do presente recurso, já parece que a demonstração da verificação dos pressupostos constantes das alíneas a) a c) – cujo ónus competia obviamente à Recorrente – falta em absoluto.
7. Assim, no tocante ao primeiro pressuposto, a que se refere a alínea a) supra, não pode perder-se de vista, desde logo, dois dados essenciais.
Por um lado, no sistema português de fiscalização concentrada da constitucionalidade, o objecto do processo é constituído apenas e tão-só por normas jurídicas. É o que resulta, designadamente, do artigo 277.º da Constituição, que logo a abrir o título sobre fiscalização da constitucionalidade estipula que “são inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”. Por isso mesmo, este pressuposto não respeita apenas aos recursos previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição, mas a todos os processos de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Por outro lado, convirá igualmente ter presente que a determinação da lei aplicável, a interpretação da lei e a sua aplicação ao caso concreto são, fundamentalmente, tarefas dos tribunais ordinários (cfr. Rui Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, Lisboa, 1999, págs. 359 e segs.). O Tribunal Constitucional não é, na realidade, “um tribunal de supervisão legitimado para apreciar a justeza das decisões de fundo dos tribunais ordinários”, não lhe cabendo apreciar “a justeza das decisões judiciais segundo o direito ordinário (lei, regulamento), pois isso é questão dos tribunais da causa” (cfr. Gomes Canotilho, Para uma teoria pluralística da jurisdição constitucional, in RMP, 1988, n.º 33/43, pág. 27).
8. É a incompreensão destes dados fundamentais que conduz a Recorrente a intentar um recurso para o Tribunal Constitucional contra todo um diploma legal ou a sustentar agora, na reclamação para a conferência, que as objecções suscitadas no douto despacho da Exma. Conselheira Relatora hão-de ser “resolvidas com recurso a outros argumentos, para além do maior conter o menor” – cfr. § 8 do requerimento.
Mas é o próprio Recorrente que, nas suas próprias palavras, se trai, ao afirmar, no § 9 do mesmo requerimento, que a aplicação do Regulamento Disciplinar de 1913 “viola as regras de interpretação das leis do CC, art.º 7.º e ss.”, quando é certo que ao Tribunal Constitucional não compete sindicar a escolha da lei aplicável.
Bem se vê, pois, que aquilo que está verdadeiramente em causa no caso sub judice é uma pretensão à revisão pelo Tribunal Constitucional do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo. Não está, portanto, em causa a inconstitucionalidade de qualquer norma jurídica, mas antes a própria ilegalidade da decisão judicial recorrida e o modo concreto como foi julgado o caso sub judice.
9. É certo que, segunda alega agora a Recorrente, “as normas que entende inconstitucionais são os artigos 5.º, 6.º, n.º 10, 7.º, n.º 4 e § 2, 8.º, n.º 1 e 19.º do reg F.P. de 1913 e a omissão de normativo sobre a aposentação compulsiva no ED 1913” – cfr. § 4 do respectivo requerimento. No entanto, esta alegação depara-se com as dificuldades que decorrem dos pressupostos do recurso mencionados nas alíneas b) e c) do § 5 supra.
Na verdade, é jurisprudência constante do Tribunal Constitucional que a apreciação da questão de inconstitucionalidade está condicionada pela aplicação efectiva da norma em causa, o que só acontece quando esta constitui a ratio decidendi da decisão.
Da mesma forma, é ponto assente que a necessidade de suscitar a questão da inconstitucionalidade durante o processo significa que a mesma tem de ser levantada enquanto a causa se encontra pendente, ou seja, antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final. E tem de sê-lo em moldes suficientemente claros e inequívocos, não bastando para o efeito alusões vagas ou genéricas.
Ora, a Recorrente falha em absoluto na demonstração destes dois pressupostos, sendo manifesto que o aresto recorrido não versou sobre a inconstitucionalidade daquelas concretas normas legais, mas antes, fundamentalmente, sobre a determinação do regime disciplinar aplicável, tarefa que se prende antes com a sucessão de leis no tempo e a articulação de diplomas legais segundo um critério de especialidade.
10. Finalmente, no que se refere à parte em que a Recorrente alicerça o presente recurso numa alegada “omissão de normativo sobre a aposentação compulsiva no ED 1913” – cfr. § 4 do requerimento da Recorrente –, basta aqui recordar, muito simplesmente, que não há recurso de inconstitucionalidade por omissão em sede de fiscalização concreta (cfr. artigos 283.º da Constituição e 67.º e 68.º da Lei do Tribunal Constitucional).
E assim se comprova, inteiramente, que nenhuma razão assiste à Recorrente, devendo a conferência confirmar o despacho da Exma. Conselheira Relatora e, em consequência, julgar o recurso inadmissível.” (fls. 693 a 697)
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A ora reclamante não logra apontar qualquer argumento que desminta as conclusões já extraídas pela decisão reclamada.
Como resulta da decisão reclamada, a fixação do objecto do presente recurso coube inteiramente à reclamante, a qual solicitou a “declaração de ilegalidade de todas as normas do Estatuto (RGU) Disciplinar dos Funcionários Civis, aprovado pelo Decreto de 22 de Fevereiro de 1913” (fls. 583, com sublinhado nosso). Assim sendo, não pode vir agora, em sede de reclamação, ampliar o objecto do recurso e peticionar que seja apreciada a inconstitucionalidade das normas extraídas dos artigos 50º, n.ºs 6 e 10, 7º, n.º 4, 8º, n.º 1 e 19º do referido Regime Disciplinar. O momento próprio para fixação do objecto do recurso é, precisamente, o da apresentação de requerimento de interposição de recurso e não outro.
Ora, não tendo sido peticionada a fiscalização da constitucionalidade de quaisquer normas – mas apenas a fiscalização da legalidade – não pode a reclamante vir agora alterar o objecto do presente recurso.
E nem sequer é invocável, a favor desse entendimento, a faculdade legal concedida ao Relator que consiste no convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso, tal como resulta do n.º 6 do artigo 75º-A da LTC. É que tal convite pressupõe que determinado recorrente não tenha indicado um ou mais dos elementos exigidos pelo referido preceito legal. Ora, no caso dos presentes autos, a reclamante indicou tais elementos, afirmando expressamente que apenas pretendia a fiscalização da ilegalidade de todas as normas constantes de determinado acto normativo. Questão diversa é a de saber se era efectivamente isso que a reclamante pretendia. Mas, como é óbvio, não cabe a este Tribunal substituir-se aos sujeitos processuais.
O convite ao aperfeiçoamento visa suprimir a falta de identificação de elementos legalmente exigidos, mas não já a errónea indicação do próprio objecto do recurso, pelo que este argumento do reclamante não abala, de modo nenhum, o bem fundado da decisão sumária reclamada.
5. Sucede, porém, que, prevenindo-se contra a sua própria omissão na fixação do objecto do recurso, a reclamante vem ainda esgrimir uma tese segundo a qual subsistiria nos autos uma questão de “ilegalidade normativa”, em sentido próprio, na medida em que as normas extraídas do Regime Disciplinar de 1913 seriam contrárias ao Regime Disciplinar de 1984, que – segundo a reclamante – integraria conteúdo regulado pela lei de bases da função pública, e que, portanto, seria uma lei de valor reforçado.
Ora, a questão que a reclamante levanta não assenta na “ilegalidade normativa”, em sentido próprio e autêntico, das normas do Regime Disciplinar de 1913, por contradição com as normas constantes do Regime Disciplinar de 1984, mas antes num problema típico de sucessão de leis no tempo. Em bom rigor, não se verifica qualquer relação de subordinação paramétrica entre as normas do regime jurídico de 1913 e do regime jurídico de 1984. Sucede apenas que existiu controvérsia nos autos recorridos acerca de qual daqueles regimes jurídicos deve ser aplicado à situação controvertida nos autos. Tal decisão cabe exclusivamente aos tribunais comuns, não estando o Tribunal Constitucional autorizado pelo legislador constituinte a rever as decisões dos tribunais recorridos que visem exclusivamente a interpretação e a aplicação do Direito infra-constitucional.
6. Quanto à alegada contradição entre a decisão do tribunal recorrido e o Acórdão n.º 804/93 do Tribunal Constitucional, a reclamante não avança qualquer argumento adicional que faça abalar a justeza da decisão reclamada já supra transcrita.
Em síntese, não subsiste qualquer fundamento para reformar a decisão reclamada.
III – Decisão
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 25 de Novembro de 2010.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.