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Processo n.º 712/10
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, foi proferida a seguinte decisão sumária:
“I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, com natureza urgente, por força do artigo 28º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, relativamente ao acórdão proferido, em conferência, pela 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 07 de Setembro de 2010 (fls. 485 a 510).
Entende o recorrente que a norma extraída do n.º 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido de que a comunicação da alteração não substancial de factos não podia ter ocorrido no momento processual em que foi proferido o despacho de fls. 142 e 143 “porque já tinha sido encerrada a produção de prova e já estava designada data para a leitura da sentença” e, portanto “porque já estava inequivocamente encerrada a audiência e, por isso, não podia ser reaberta a não ser para leitura da sentença (…)” (fls. 524 e 525).
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 529), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator constatar que os mesmos não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Em primeiro lugar, importa afirmar que o Tribunal Constitucional funciona como mero órgão de recurso relativamente a decisões sobre questões de constitucionalidade normativa que tenham sido adoptadas pelos tribunais recorridos. Dito de outro modo, este Tribunal apenas pode conhecer de questões normativas que tenham sido efectivamente aplicadas pelos tribunais recorridos, conforme decorre, aliás, do artigo 79º-C, da LTC.
Consequentemente, esta não é a sede própria para questionar a aplicação das normas aos casos concretos pelas decisões recorridas. Antes é a sede para o confronto entre os princípios e normas constitucionais e a interpretação normativa efectivamente acolhida pelo tribunal “a quo”. Por conseguinte, há que apurar qual a concreta interpretação normativa acolhida pela decisão recorrida, pois só essa pode ser alvo de apreciação pelo Tribunal Constitucional, sob pena de este se substituir ao tribunal “a quo” na determinação do direito infra-constitucional aplicável.
Impõe-se, portanto, começar por delimitar a interpretação normativa que serviu de sustentação à decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Ora, da leitura e análise do referido acórdão extraem-se, por decisivos, os seguintes excertos:
“Finda a produção da prova, tiveram lugar as alegações finais, foi cumprido o art. 361.º, n.º 1 do CPP e o tribunal declarou encerrada a discussão, retirando-se para deliberar após designar data para a leitura da decisão.
É esse o momento próprio – o da deliberação – para o tribunal analisar e valorar as provas produzidas e fixar a matéria de facto. Só nesse momento – e não antes – o tribunal pode chegar à conclusão se os factos resultam provados ou constituem ou não alteração aos factos imputados na acusação. (…)
Contrariamente ao alegado pelo recorrente, a audiência não termina com o encerramento da discussão em causa, que é coisa diversa do encerramento da audiência.
(…) Em regra, a audiência só termina com a leitura da decisão, podendo mesmo prolongar-se para além desta, caso sejam suscitadas questões incidentais (…).
É entendimento deste tribunal que a expressão do art. 358.º, n.º 1, do CPP «no decurso da audiência» - abrange todo o período que vai da respectiva abertura até à leitura da sentença. Só com tal leitura é que fica precludida a possibilidade de o tribunal proceder à alteração dos factos nos termos dos arts. 358.º e 359.º, do CPP.” (fls. 495 e 496).
Tudo visto, conclui-se que a decisão recorrida não aplicou a interpretação normativa reputada de inconstitucional pelo recorrente. Pelo contrário, afirmou expressamente que o despacho que comunicou a alteração não substancial de facto foi proferido no decurso da audiência, tendo em conta que considerou que o acto de leitura da sentença ainda integra o conceito jurídico-processual de audiência.
Ora, não cabe aqui questionar tal interpretação normativa – que, conforme patente nos autos, é contrariada pelo recorrente. A este Tribunal incumbe apenas verificar se tal interpretação normativa seria inconstitucional. Sucede, porém, que cabe aos recorrentes delimitar o objecto dos recursos de constitucionalidade e que, no presente recurso, não se incluiu aquela interpretação normativa como objecto do mesmo. Ao invés, o recorrente afirma que a decisão recorrida teria interpretado o n.º 1 do artigo 358º do CPP no sentido de que seria admissível proferir despacho de comunicação de alteração não substancial dos factos após finda a audiência.
Em conclusão, em estrito cumprimento do artigo 79º-C da LTC, não pode este Tribunal conhecer da constitucionalidade de normas que não tenham sido efectivamente aplicadas pelos tribunais recorridos, pelo que, consequentemente, não pode conhecer-se do objecto do presente recurso.
III – Decisão
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, pelos fundamentos supra expostos, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.»
2. Inconformado com a referida decisão, o recorrente veio apresentar a reclamação, cujos termos ora se sintetizam:
«(…)
8.
Efectivamente, a questão magna a apreciar e decidir consiste em saber se o Despacho do T. Seixal foi proferido em audiência ou fora da audiência e é isto que o Tribunal Constitucional ainda não conheceu, mas deve conhecer.
9.
Aliás, o objecto do recurso de constitucionalidade tanto pode ser delimitado pela positiva, como pela negativa.
(…)
10.
Afirma a Decisão Sumária, em crise, o seguinte: “Ao invés, o recorrente afirma que a decisão recorrida teria interpretado o nº 1 do art. 358º do CPP no sentido de que seria admissível proferir despacho de comunicação de alteração não substancial dos factos finda a audiência.”
11.
Chegados aqui, o Venerando Tribunal Constitucional, em sede de Decisão Sumária, na base deste surpreendente INVÉS, extrai a conclusão final de que, “em estrito cumprimento do art. 79º - C da LTC, não pode conhecer da constitucionalidade de normas que não tenham sido efectivamente aplicadas pelos tribunais recorridos, pelo que, consequentemente, não pode conhecer-se do objecto do presente recurso”.
(…)
IV. CONHECIMENTO DE TODAS AS QUESTÕES DE ILEGALIDADE / INCONSTITUCIONALIDADE SUSCITADAS DE MODO PROCESSUALMENTE ADEQUADO; RECURSO DE AMPARO.
14.
O verso ou o anverso da interpretação da norma do nº 1 do art. 358º do CPP constituem sempre a “cara”e a “coroa” da mesma norma objecto de recurso na perspectiva bifocada dos seguintes:
a. “no decurso da audiência”; e
b. após finda a audiência.”
15.
Pretende-se a interpretação autêntica em termos constitucionais do encerramento da audiência de discussão e julgamento, isto é, qual o momento preciso e inequívoco em que encerra a audiência, porque há Acórdãos divergentes sobre esta matéria relevante de saber em que momento exacto encerra efectivamente a audiência.
16.
De facto o julgador está obrigado a pronunciar-se sobre todas as questões de ilegalidade/inconstitucionalidade suscitadas de modo processualmente adequado, como sucede no presente caso ainda que ao “invés”, “a contrario sensu” – Cfr. Artº 668º, nº 1, alínea d) – 1ª parte do CPC, sob forma da nulidade prolatada.
(…)
21.
Enfim, o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL é um ponto de excelência e de aposto para as esperanças dos portugueses.
Não é só uma referência. Mais do que isso. É o que mais garantias oferece de segurança e confiança jurisdicional.
22.
Afirmar esta convicção não é menosprezar as INSTÂNCIAS.
É sim reconhecer uma evidência, que serve os desígnios do País, no plano da cidadania, “maxime” quando for instituído o tão necessário RECURSO DE AMPARO.
23.
Mas, na decisão ora reclamada está arredada a justiça substancial, quedando-se na forma pela forma, apesar do assinalado prestígio do Venerando Tribunal Constitucional.
24.
O recorrente / ora reclamante considera-se profundamente prejudicado pela Decisão Singular em crise.
25.
O aludido Despacho não é de mero expediente e o recorrente pode requerer que sobre a matéria de tal decisão recaia um ACÓRDÃO.
26.
Neste caso, a Exma. Juíza Conselheira Relatora Dra. Ana Guerra Martins deve submeter o caso à conferência, depois de ouvida a parte contraditória (art. 780º, nº 3 do CPC e art. 78º - A nº 3 da LTC).
Termos em que requer a V. Exas., se dignem tomar conhecimento do objecto do recurso interposto, abrangendo expressamente o verso e o anverso da interpretação da norma do nº 1 do art. 358º do CPP; porque tal resulta de todo o discurso recursivo.
Consequentemente, requer o deferimento da presente reclamação.» (fls. 560 a 576)
3. O Ministério Público apresentou a seguinte resposta:
«1º
Tal como se decidiu na Decisão Sumária de fls. 534 a 537, parece-nos claro que o acórdão recorrido não aplicou a interpretação normativa reputada de inconstitucional pelo recorrente.
2º
Pelo que, não correspondendo a dimensão normativa questionada à que foi aplicada na decisão recorrida, não se verifica a existência de um dos requisitos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do Artigo 70º da LTC.
3.º
Assim, e como a reclamação em nada abala os fundamentos da decisão reclamada, deve a mesma manter-se integralmente.»
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Antes de mais, deve esclarecer-se que, ao contrário do que parece defender o reclamante, sobre o Tribunal Constitucional não recai um dever constitucional de apreciar, de fundo, todas as questões que lhe sejam dirigidas, com vista à protecção dos direitos fundamentais dos particulares.
Com efeito, nos termos da Constituição e da lei, este Tribunal, em sede de fiscalização concreta, só dispõe de poderes para sindicar, em sede de recurso, a constitucionalidade de normas que tenham sido alvo de aplicação ou desaplicação por parte dos tribunais comuns. Esta característica do sistema português de fiscalização da constitucionalidade tem por consequência a impossibilidade de apreciação “ex novo” de questões que não tenham sido devidamente colocadas perante o tribunal da causa, incluindo, a apreciação da constitucionalidade de normas que não tenham sido efectivamente aplicadas pelos tribunais recorridos.
Ora, conforme já notado pela decisão reclamada, a decisão do tribunal “a quo” nunca aplicou o entendimento interpretativo que o ora reclamante elegeu como objecto do presente recurso. O que sucedeu foi que o reclamante discordou da interpretação normativa adoptada pelo tribunal recorrido, tendo optado por insistir, perante este Tribunal, na inconstitucionalidade de uma interpretação normativa que não foi efectivamente aplicada.
Por muito que o reclamante discorde da interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida, era aquela – e não outra – que aquele deveria ter indicado como objecto do presente recurso.
Esta é, aliás, a jurisprudência consolidada neste Tribunal acerca do paralelismo entre a interpretação normativa aplicada (ou desaplicada) pelo tribunal “a quo” e o objecto fixado do recurso de constitucionalidade interposto. Nos termos dessa jurisprudência unânime do Tribunal Constitucional, não são de conhecer os recursos cujo objecto não corresponda à interpretação normativa efectivamente aplicada pela decisão recorrida (artigo 79º-C da LTC).
Em suma, mais não resta do que confirmar a decisão reclamada e indeferir presente a reclamação.
III – Decisão
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 25 de Novembro de 2010.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.