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Processo n.º 694/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., por acórdão proferido em 5 de Fevereiro de 2010, no processo n.º 6954/08.1TDPRT, da 2.ª Vara Criminal do Porto, foi condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de vinte e dois meses de prisão efectiva, pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de dois crimes de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, com referência ao artigo 202.º, alínea a), e de dois crimes de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas d) e e), e n.º 3, com referência ao artigo 255.º, alínea a), todos do Código Penal.
O arguido interpôs recurso desta decisão e, por despacho de 24 de Março de 2010, da 2.ª Vara Criminal do Porto, foram consideradas ineficazes as suas alegações de recurso, nos termos do artigo 80.º, n.º 3, do Código das Custas Judicias, devido à omissão do pagamento da taxa de justiça devida pela apresentação de recurso.
O arguido recorreu então deste despacho para o Tribunal da Relação do Porto e, por despacho 7 de Junho de 2010, da 2.ª Vara Criminal do Porto, foram novamente consideradas ineficazes as suas alegações de recurso, nos termos do artigo 80.º, n.º 3, do Código das Custas Judicias, devido à omissão do pagamento da taxa de justiça devida pela apresentação de recurso.
O arguido reclamou deste despacho para o Presidente do Tribunal da Relação do Porto.
Por decisão de 12 de Julho de 2010, do Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto, foi julgada improcedente a reclamação.
Tendo sido notificado desta decisão por carta registada remetida em 13 de Julho de 2010, o arguido apresentou em 1 de Setembro de 2010 um requerimento reclamando para a conferência do despacho proferido pelo Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto.
Este requerimento foi indeferido por despacho do Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 03 de Setembro de 2010, com os seguintes fundamentos:
“O A. alegando não se conformar com a “decisão singular” veio “reclamar para a conferência”.
Acontece que a decisão em causa não é uma “decisão singular” mas a decisão da reclamação contra um despacho que não admitiu o recurso.
Ora sendo assim a decisão em causa é definitiva não admitindo a pretendida impugnação como resulta claro do art. 405º nº 4 do CPPenal.”
Este despacho foi notificado ao arguido, por carta registada expedida em 6 de Setembro de 2010 e, em 13 de Setembro de 2010, aquele apresentou então requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
“[…]
O arguido foi condenado na 2ª vara Criminal do Porto, a 22 meses de prisão efectiva, como autor de um crime de Burla e Falsificação.
Inconformado interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto.
Requereu apoio judiciário que lhe veio a ser indeferido.
Notificado para pagar a taxa de justiça e Sanção, não o fez por insuficiência económica, tendo a Senhora Juiz dado sem efeito a interposição de recurso que havia feito.
O arguido recorreu deste despacho por entender que estando em causa a aplicação de uma pena de prisão efectiva, o arguido está dispensado do pagamento da taxa de justiça.
É que refere o art. 522º n.º 2 do CPP que – «Os arguidos presos gozam de isenção de taxa de justiça pela interposição de recurso em 1.ª instância;...»
Ora a Jurisprudência tem entendido que, esta disposição deve também ser entendida no sentido em que o seu campo de actuação abrange casos em que por força de uma decisão condenatória, haja lugar ao cumprimento imediato de uma pena de prisão aplicada ao arguido, ou seja, de o arguido ser preso se não recorrer - Ac STJ de 21.10.1992, In Col. de Jur., 1992, 4, 28.
Assim não entendeu o Digno Tribunal da Relação do Porto, que rejeitou o recurso.
Ora, entendemos salvo melhor opinião que a interpretação e aplicação do disposto no art. 522º n.º 2, pelo Insigne Tribunal da Relação do Porto, na interpretação de que «não se encontrando o arguido preso à data do acórdão, ser devido o pagamento da taxa de justiça pela interposição do recurso, constitui uma violação do seu direito à igualdade e consequentemente também do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidades essas invocadas previamente no seu recurso da Vara Criminal do Porto para o Tribunal da Relação do Porto.
Com efeito, o arguido caso não recorresse, ia preso, e a não admissão do referido recurso, conforme consta no douto despacho recorrido, implica a prisão do recorrente, violando o seu direito à igualdade, uma vez que vai ser prejudicado pela sua situação económica, e em violação também do art.º 32º da CRP.
Violou assim também o douto acórdão recorrido o principio da Igualdade.
Pretende assim o recorrente a apreciação da constitucionalidade das normas jurídicas em causa, por ambiguidade e falta de clareza dessas mesmas normas jurídicas, por colidirem em função dessas debilidades com uma norma constitucional.”
Foi proferida em 3 de Novembro de 2010 decisão de não conhecimento do recurso, com os seguintes fundamentos:
“De acordo com o disposto no artigo 70.º, n.º 2, da LTC, “os recursos previstos nas alíneas b) e f) do número anterior apenas cabem das decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam, salvo os destinados a uniformização de jurisprudência”, acrescentando o n.º 3 desse preceito que “são equiparadas a recursos ordinários as reclamações para os presidentes dos tribunais superiores, nos casos de não admissão ou de retenção do recurso, bem como as reclamações dos despachos dos juízes relatores para a conferência”.
Segundo o artigo 75.º, n.º 1, da LTC, o prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é de 10 dias, estabelecendo-se no n.º 2 desta disposição legal que “interposto recurso ordinário, mesmo que para uniformização de jurisprudência, que não seja admitido com fundamento em irrecorribilidade da decisão, o prazo para recorrer para o Tribunal Constitucional conta-se do momento em que se torna definitiva a decisão que não admite recurso”.
Este prazo de interposição de recurso conta-se nos termos previstos no C.P.C. (artigo 69.º da LTC), tendo o seu início, em regra, na data da notificação da decisão recorrida (artigo 685.º, n.º 1, do C.P.C.).
Neste caso, o arguido pretende impugnar a decisão de 12 de Julho de 2010, proferida pelo Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto e da qual foi notificado por carta registada remetida em 13 de Julho de 2010 (considerando-se, assim, a notificação efectuada em 16 de Julho de 2010 – cfr. artigo 254.º, n.º 3, do CPC).
Contudo, o recurso para o Tribunal Constitucional só foi interposto em 13 de Setembro de 2010, ou seja, muito para além do referido prazo de dez dias.
É certo que o arguido, após ter sido notificado da referida decisão de 12 de Julho de 2010, apresentou requerimento em que pretendeu reclamar de tal decisão para a conferência, pelo que, poderá colocar-se a questão de saber se, neste caso, a contagem do aludido prazo de 10 dias só deve iniciar-se com a notificação da decisão que não admitiu a pretendida “reclamação para a conferência”.
Ora, se é certo que o n.º 2 do artigo 75.º da LTC estabelece uma “prorrogação” legal do prazo para interpor recurso de fiscalização concreta nos casos em que o interessado começou por interpor recurso ordinário, o qual não é, porém, admitido com fundamento em irrecorribilidade da decisão, a prorrogação aqui prevista não tem lugar no caso dos autos.
Com efeito, vem sendo entendimento reiterado deste Tribunal que o uso de um meio impugnatório atípico, manifestamente inexistente no ordenamento processual e que, como tal, apenas possa caracterizar-se como um incidente processual anómalo, não tem a virtualidade de suspender ou interromper o prazo de impugnação perante o Tribunal Constitucional da decisão judicial já anterior e definitivamente proferida, como é o caso, designadamente, da pretensão de reclamar para a conferência ou recorrer para o Plenário de Tribunal Superior da decisão (irrecorrível) do Presidente desse mesmo Tribunal, proferida em procedimento de reclamação (vide, neste sentido, os Acórdãos n.ºs 618/2003, 1/2004, 278/2005, 173/2007, 279/2007, 80/2008 e 241/2008, acessíveis na Internet em www.tribunalconstitucional.pt).
No caso dos autos, o recorrente, na sequência do despacho do Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto que indeferiu a reclamação da decisão que não admitiu o recurso, deduziu nova reclamação para a conferência e, só depois de notificado da decisão que indeferiu tal reclamação para a conferência, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do aludido despacho do Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto.
Ora, da consulta do Código de Processo Penal constata-se que não está prevista a reclamação para a conferência da decisão do Presidente do Tribunal da Relação que julgue improcedente a reclamação contra despacho que não admita o recurso, confirmando o despacho de indeferimento (mecanismo que, no caso, é claramente afastado pelo n.º 4 do artigo 405.º do CPP), mas apenas dos despachos proferidos pelo relator, em sede de exame preliminar do recurso, nos termos dos n.ºs 6 e 7 do 417.º do CPP (cfr. n.º 8 do art. 417.º do CPP).
Verifica-se assim que o recorrente lançou mão de um expediente processual que não tem qualquer fundamento legal, absolutamente alheio a uma estratégia processual minimamente atenta às respectivas disposições legais e que, como tal, não tem a virtualidade de suspender o prazo de interposição do recurso de constitucionalidade, pelo que a situação dos autos não se enquadra no disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional.
Consequentemente, é de concluir, em razão da sua intempestividade, pelo não conhecimento do recurso interposto, devendo, assim, ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
O Recorrente reclamou desta decisão com os seguintes argumentos:
“O Tribunal a quo entende que “O Recurso para o Tribunal Constitucional não é admissível pois não está prevista a reclamação para a conferência da decisão do Presidente do Tribunal da Relação que julgue improcedente a reclamação contra despacho que não admita recurso.»
Todavia, nesta parte, o arguido alude aos art.s 29º e 32º da CRP, por entender que a não admissão do recurso em causa configura uma violação de tais artigos.
Por outro lado, é claro que o arguido/recorrente não poderia arguir em momento anterior tal inconstitucionalidade – pela simples razão de não poder prever que a mesma se registaria em fase de Recurso!
É a interpretação que o Digno Supremo Tribunal de Justiça fez dos preceitos invocados (artigo art. 2º, nº 4 do Código Penal) que gera o vício da inconstitucionalidade que se invocou.
Se o recorrente não pudesse invocar as inconstitucionalidades resultantes da interpretação e aplicação das normas feitas pelos Tribunais Superiores (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça) ficaria fora da alçada do Tribunal Constitucional uma grande parte da fiscalização concreta da constitucionalidade que cabe a esse alto tribunal.
Como é óbvio, também nesta particular questão o arguido/recorrente não podia pressupor, intuir, que o Digno Tribunal da Relação, agiria como agiu, e interpretaria as normas do Código Penal e da própria Constituição como interpretou e aplicou.
É com a prolação da Decisão, e só nessa altura, que se tornam patentes os vícios e manifesta a interpretação inconstitucional dada às normas, afrontando de maneira gritante e inadmissível o Estado de Direito e processo Democrático, pondo em causa princípios que deviam estar mais do que consolidados na ordem jurídica portuguesa:
Assim sendo, o recorrente tem o Direito a ver apreciado o Recurso interposto para o Tribunal Constitucional no sentido de controlar a constitucionalidade:
a) Ora, entendemos salvo melhor opinião que a interpretação e aplicação do disposto no aludido art. 2º, pelo Insigne Supremo Tribunal de Justiça, ao não admitir o recurso em causa constitui uma violação dos artigos 29º e 32° da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidades essas invocadas previamente no seu recurso do Tribunal da Relação do Porto, para o Supremo Tribunal de Justiça.
É, pois, um vício que se regista somente na Decisão, que se pretende seja analisado à luz das normas da Constituição.
Desta forma, tem o recorrente o direito a ver apreciado o Recurso interposto para o Tribunal Constitucional.”
O Ministério Público respondeu do seguinte modo:
“1º Pela Decisão Sumária nº 466/2010, não se conheceu do recurso porque este fora interposto para além do prazo legalmente fixado.
2º Efectivamente, a utilização de meios impugnatórios - como a reclamação para a conferência da decisão do Senhor Vice-Presidente da Relação que julgou improcedente a reclamação contra despacho de não admissão do recurso – inexistentes no nosso ordenamento jurídico, não pode ter a virtualidade de suspender ou interromper o prazo de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
3.º No entanto, tendo a carta para notificação ao recorrente da decisão recorrida, sido remetida a 13 de Julho de 2010, face às alterações introduzidas no artigo 143º do Código de Processo Civil, pelo Decreto-Lei nº 35/2010 de 15 de Abril, quando o recurso foi interposto, a 13 de Setembro de 2010, ainda poderia ser considerado, desde que o recorrente pagasse a multa nos termos do artigo 145º, nºs 5 e 6, do Código de Processo Civil
4º Entendemos, no entanto, que, no caso, sempre seria de proferir Decisão Sumária a negar provimento ao recurso, uma vez que a questão de constitucionalidade colocada pelo recorrente deve ser considerada simples.
5º Na verdade, tendo em atenção a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a exigência do pagamento de custas e multas pelos arguidos em processo penal, face ao princípio das garantias de defesa, designadamente quando está em causa o recurso de uma decisão condenatória em pena de prisão, verifica-se que não ocorre qualquer violação de princípios constitucionais (cfr. v.g. Acórdãos nºs 100/98, 491/2003 e 352/2007).
6º Efectivamente, na situação que se verifica nos presentes autos, não estava a liberdade do arguido dependente, de forma imediata, de interposição do recurso e foram – lhe dadas diversas oportunidades para efectuar pagamento das taxas e multas devidas.
Fundamentação
A decisão reclamada não conheceu do recurso interposto pelo Reclamante para o Tribunal Constitucional por ter considerado que este foi interposto fora de prazo.
A decisão recorrida (o despacho do Vice-Presidente da Relação do Porto, indeferindo a reclamação apresentada) foi notificada por carta enviada em 13 de Julho de 2010 e o recurso foi interposto em 13 de Setembro de 2010.
Se é certo que a reclamação para a conferência do despacho do Vice-Presidente da Relação é um incidente processual anómalo que não teve a virtualidade de suspender ou interromper o prazo de impugnação perante o Tribunal Constitucional da decisão judicial já anterior e definitivamente proferida, constata-se que o dia em que o Reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional era o primeiro dia útil após ter terminado o prazo de interposição de recurso para este tribunal, pelo que o recurso pode ser considerado tempestivo desde que seja paga a multa prevista no artigo 145.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, devendo para esse efeito proceder-se à necessária notificação.
Estando a admissão do recurso dependente do pagamento desta multa, não pode ser aceite a sugestão do Ministério Público de ser proferida decisão sumária sobre o mérito do recurso, devendo antes ser ordenada a baixa do processo ao tribunal recorrido, a fim de ser dada oportunidade ao Recorrente de pagar a multa prevista no artigo 145.º, n.º 6, do Código de Processo Civil.
Deste modo deve ser julgada procedente a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a reclamação apresentada e, em consequência, revoga-se a decisão reclamada, determinando-se a baixa do processo ao tribunal recorrido, a fim do Recorrente ser notificado para proceder ao pagamento da multa prevista no artigo 145.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, relativamente à apresentação do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Novembro de 2010.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.