Imprimir acórdão
Processo n.º 850/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
(Conselheiro Cura Mariano)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. intentou no Tribunal do Comércio de Lisboa (processo n.º
1270/07.3TYLSB, do 1.º Juízo) procedimento cautelar de suspensão de deliberações
sociais contra B., Limitada.
2 – Após produção de prova, foi proferida sentença em 13-5-2008 que
julgou improcedente a providência cautelar requerida.
3 – O requerente interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da
Relação de Lisboa que, por acórdão proferido em 7-10-2008, negou provimento ao
recurso.
4 – O requerente interpôs então recurso para o Tribunal
Constitucional nos seguintes termos:
“O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º
da Lei 28/22, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei 85/89, de 7 de
Setembro.
Pretende o ora recorrente ver apreciada a inconstitucionalidade da
norma do art. 255º nº 1 e nº 2, do Código das Sociedades Comerciais, segundo a
interpretação que lhe foi dada pela 1ª instância e que foi confirmada pelo
Acórdão dessa Relação de 08/10/2008.
Com efeito nas Alegações de Recurso o ora Recorrente demonstrou à
saciedade que o PRINCÍPIO DA LIVRE REDUÇÃO da Remuneração dos Gerentes, como é
consagrado no Acórdão Recorrido, viola PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS do nosso
ordenamento jurídico.
Como diz, e muito bem o Prof. Raul Ventura (Sociedade por Quotas,
Vol. III, pág. 70) a possibilidade da redução da remuneração só poderá ter lugar
através do recurso ao Tribunal.
É facto inquestionável que a relação jurídica da gerência
consubstancia um contrato que há-de ser regulado pelos princípios gerais de
direito civil, designadamente as normas sobre contratos da sociedade por força
do disposto no art. 2º do C. S. Comerciais.
Ora, estando-se no domínio da matéria contratual, é inequívoco que
um elemento do contrato – remuneração – só por mutuo acordo pode ser alterado,
como resulta do disposto no art. 406º nº 1, do Código Civil, conjugado com o
art. 987º nº 1, do mesmo Código.
Aceitar-se o Livre Principio da Remuneração dos Gerentes é
aceitar-se normas que atentam contra a protecção dos cidadãos que, desse modo,
viam a sua estabilidade e a do seu agregado familiar sofrer as alterações ao
sabor das deliberações arbitrárias e prepotentes dos sócios maioritários das
sociedades por quotas.
Ora, o Estado de direito democrático, ínsito no art. 2º da Lei
Fundamental, repudia frontalmente interpretações como a que é sufragada pela
Decisão recorrida, sem esquecer que no art. 255º do Código das Sociedades
Comerciais não está, de modo algum, consagrado o principio da livre redução da
remuneração dos gerentes pela Assembleia Geral dos sócios de uma sociedade por
quotas.
O Código das Sociedade Comerciais não precisou de proibir a redução
da remuneração de gerentes, pela razão simples de que tal redução é repelida
pelos princípios gerais de direito ínsitos no art. 406º nº 1, do Código Civil e
232º nº 1 do Código Comercial.
A verdade é que as normas do art. 255º nº 1 e nº 2 do C.S.
Comerciais interpeladas com o sentido que lhes foi atribuído, constituí um
atentado ao Princípio da Confiança e dos Direitos Adquiridos consagrado no art.
2º da Lei Fundamental.
Por outro lado, conceder às assembleias gerais das sociedades o
direito de redução da remuneração do gerente constitui um verdadeiro entrave ao
recurso ao Tribunal para impugnar a deliberação, já que a assembleia de sócios
se substituí ao Tribunal, impedindo o Acesso aos Tribunais, e dessa forma
violando o disposto no art. 20º nº 1 da C.R. Portuguesa, e impedindo, também por
esse lado, o Tribunal de dirimir o conflito, viola-se o disposto no art. 202º nº
2 da C. R. Portuguesa.
É, assim, mais que evidente que a norma prevista no art. 255 nº 1 e
nº 2 do Código das Sociedades Comerciais na interpretação e sentido que lhe foi
dado pelo Acórdão Recorrido, está ferida do vício de inconstitucionalidade
material.
A questão da inconstitucionalidade foi suscitada pelo Recorrente nos
artigos 42 a 66 e nas conclusões 26ª a 38ª das Alegações de Recurso para o
Tribunal da Relação de Lisboa, que aqui se reproduzem para todos os efeitos
legais (cfr. art. 72º nº 2 da L.T. Constitucional, na redacção da Lei 13-A/98,
de 26 de Fevereiro).
Das decisões proferidas nos procedimentos cautelares não há recurso
para o Supremo Tribunal de Justiça, por força do disposto no art. 397º A, do
Código de Processo Civil, e, por isso, a Douta Decisão não admite recurso
ordinário (cfr. art. 70 nº 2 da LTC, na redacção da Lei 13-A/98, de 26 de
Fevereiro).
Os recursos para o Tribunal Constitucional estão isentos de custas
nos termos do art. 84º nº 1, da L.T. Constitucional na redacção dada pela Lei
85/89, de 7 de Setembro.
Nestes termos, e porque o Recorrente tem legitimidade para recorrer
e estão verificados os pressupostos exigidos para a interposição do recurso,
requer a V. Exa. se digne admitir o presente recurso com efeito suspensivo,
seguindo-se os demais termos legais.
Embora as alegações de recurso devam ser sempre produzidas no
Tribunal Constitucional, por força do disposto no art. 79º da Lei do Tribunal
Constitucional, aprovado pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e sem abdicar de
exercer o direito de alegar no referido Tribunal, e por mera cautela, desde já,
ainda que de forma sumária, vem o ora Recorrente apresentar ligeiras alegações;
Interpretar o art. 155º nº 1 e nº 2 do C.S. Comerciais no sentido de permitir às
assembleias gerais das sociedades por quotas reduzir a remuneração dos gerentes
constitui uma afronta aos princípios gerias de direito que rodeiam os contratos,
ainda que atípicos, como é o contrato de gerência;
A remuneração é elemento essencial de um contrato bilateral e só
pode ser reduzida por acordo das partes, pelo que aceitar o contrário se viola o
disposto no art. 406º nº 1, conjugado com o art. 987º nº 1, ambos do Código
Civil, e, ainda, o disposto no art. 232º § 1º, do Código Comercial;
O Princípio da Livre Redução da Remuneração dos Gerentes atenta
contra a protecção dos cidadãos, que têm na remuneração de gerentes a sua única
fonte de rendimento;
O Estado de Direito Democrático ínsito no art. 2º da Lei Fundamental
assenta no princípio da Confiança e na protecção dos Direitos Adquiridos;
Tal Princípio da Confiança e dos Direitos Adquiridos é um elemento essencial dos
contratos, pelo que a redução da remuneração dos gerentes sem recurso a Tribunal
viola o art. 2º da Lei Fundamental;
Dando-se às assembleias gerais o direito da redução da remuneração
dos gerentes da sociedade por quotas, impede-se o recurso ao tribunais em caso
de as deliberações dos sócios violarem direitos fundamentais dos gerentes, o que
constitui violação do art. 20º nº 1 da Constituição da República;
Por outro lado, tal direito das assembleias gerais de redução da
remuneração de gerência, ao decretar a redução sem recurso ao Tribunal viola o
disposto no artigo 202 nº 2, da C.R.P..
Termos em que o sentido com que foi interpretado o art. 255º nº 1 e
nº 2 pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa está ferido do vicio de
inconstitucionalidade material, por violar o disposto nos artigos 2º, 20º nº 1 e
202º nº 2, da C. R. P.”.
4 – O primitivo relator proferiu decisão sumária de não conhecimento
do recurso, abonando-se nas seguintes considerações:
“A tutela cautelar é caracterizada pela sua instrumentalidade,
provisoriedade e sumariedade.
Em primeiro lugar, é a sua função meramente instrumental que a
distingue as providências cautelares das providências definitivas, tomadas como
resultado final de acção judicial. Não a instrumentalidade que qualquer processo
reveste perante o direito substantivo cuja tutela procura realizar, mas uma
instrumentalidade relativa a essa tutela de cariz definitivo. Na verdade, as
providências cautelares não se destinam a solucionar, com autonomia, uma
situação de conflito, mas apenas a assegurar que as soluções definitivas possam
ser adoptadas pelas instâncias jurisdicionais, sem que o decurso do tempo as
inviabilize ou prejudique. São simples instrumentos dessas decisões definitivas,
concebidos para intervirem em casos de urgência, de forma a assegurar que
aquelas consigam conceder às partes idêntica satisfação de interesses à que elas
obteriam através da realização “pacífica” dos seus direitos. São, nas palavras
de Calamandrei, “a garantia da garantia judiciária”.
Destinando-se elas a servir a tutela de um direito a determinar num
determinado processo, necessariamente encontram-se dependentes desse processo,
podendo dizer-se que, nesse aspecto, não gozam de autonomia, O seu nascimento, a
sua vida e a sua morte estão dependentes do processo do qual são dependentes,
porque é nele que encontram a sua razão de existência, reflectindo-se nelas as
vicissitudes da tutela a encontrar no processo-mãe.
Também como consequência da sua função instrumental, as providências
cautelares são meramente provisórias, tendo uma duração, apesar de incerta,
limitada no tempo (dies certus an, incertus quando). São providências a termo
incerto.
Tendo elas como única finalidade obviar ao perigo da demora de um
determinado processo, o não nascimento deste ou a sua extinção provocam o seu
fim.
E sendo a sua existência justificada pela urgência não é possível
seguir uma tramitação que permita apurar com certeza da existência do direito
cuja tutela se pretende assegurar, a qual apenas é possível apurar no processo
principal. É suficiente para alcançar uma decisão cautelar provisória, uma prova
informatória, um fumus boni iuris.
Este juízo de probabilidade séria deve recair não só sobre a
existência dos factos constitutivos do direito ameaçado, mas também sobre a
verificação dos pressupostos jurídicos da existência do direito. O juízo de
probabilidade é aplicável quer às questões de facto, quer às questões de
direito, colocadas ao juiz nos procedimentos cautelares. O juiz não tem que se
convencer da veracidade dos factos que integram a causa de pedir, nem de que o
direito invocado existe perante a prova desses factos, bastando que a existência
dos factos seja provável, tal como a existência do direito.
São estas características específicas das providências cautelares
que tem obstaculizado a que a jurisprudência constitucional admita a
recorribilidade para o Tribunal Constitucional de muitas das questões de
constitucionalidade suscitadas em procedimentos cautelares (vide, a título de
exemplo, os acórdãos n.º 151/85, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 6.º
vol, pág. 351, n.º 400/97, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 37.° vol,
pág. 235, n.º 664/97, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 38.º vol, pág.
257, n.º 442/2000, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, n.º 48.º vol, pág.
709, n.º 235/2001, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 50.° vol, pág. 431,
e n.º 457/07, disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
Na verdade, a provisoriedade das providências cautelares implicaria
sempre que a formulação de um juízo pelo Tribunal Constitucional, de
(in)constitucionalidade de norma aplicada por um tribunal judicial, nas vestes
de juiz cautelar, constituiria um juízo meramente provisório. Isto é, a eventual
decisão do Tribunal Constitucional apenas produziria efeitos jurídicos enquanto
não fosse proferida decisão definitiva sobre o incidente de
inconstitucionalidade suscitado no âmbito da respectiva acção principal.
E ainda que o Tribunal Constitucional se pronunciasse
perfunctoriamente pela inconstitucionalidade de norma aplicada em procedimento
cautelar, aquela decisão apenas produziria os seus efeitos (ou seja, a
desaplicação da norma em causa) de modo provisório. Esta decisão de desaplicação
apenas poderia formar caso julgado formal, restrito ao procedimento cautelar,
pelo que não poderia afectar a liberdade de apreciação quer do tribunal, em sede
de julgamento da acção principal, quer do próprio Tribunal Constitucional, caso
voltasse a ser chamado a pronunciar-se, em sede de recurso de
inconstitucionalidade interposto da decisão final da acção principal.
Entendimento diverso, isto é, admitir a possibilidade de a decisão
deste Tribunal formar caso julgado material, conduziria a que o juiz
constitucional se substituísse ao juiz do processo principal, pois aquele juízo
determinaria previamente o sentido da decisão final a proferir nesse processo.
Ora, o sistema de fiscalização da constitucionalidade nem se
compadece com uma solução em que o juiz constitucional se substitui ao juiz do
processo principal, nem comporta a possibilidade de decisões de
inconstitucionalidade provisórias.
Além disso, o julgamento pelo Tribunal Constitucional, em sede de
recurso, sobre uma questão de inconstitucionalidade suscitada em autos de
procedimento cautelar, coloca em causa a natureza instrumental das providências
cautelares, dado que implica uma antecipação do juízo sobre a
inconstitucionalidade de normas a aplicar na acção principal. Juízo esse a
formular quer pelos tribunais judiciais que julgam em primeira instância e,
eventualmente, em recurso (artigo 204.° da CRP), quer pelo próprio Tribunal
Constitucional, caso venha, nesses autos, a ser interposto o competente recurso
(artigo 280.° da CRP).
Só assim não será, se se tratar do conhecimento de questões de
inconstitucionalidade de normas que sejam exclusivamente aplicáveis em sede de
processo cautelar – v.g., normas processuais que regulem a sua tramitação –,
visto que a decisão sobre a inconstitucionalidade se restringe aos autos de
processo cautelar, não se recolocando no processo principal.
Ora, não é este o caso que se verifica no recurso interposto, pelo
que a instrumentalidade da providência cautelar ficaria prejudicada pela
prolação de juízo perfunctório sobre a inconstitucionalidade por parte deste
Tribunal, ou estaríamos a admitir recursos de constitucionalidade de decisões de
cariz provisório, fundamentadas num juízo sumário”.
5 – Desta decisão reclamou o recorrente para a conferência ao abrigo
do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
sustentando, em resumo, que o carácter cautelar da decisão recorrida não afecta
a utilidade da decisão de constitucionalidade, no caso concreto, na medida em
que pode minorar os danos decorrentes da ilegalidade dos actos impugnados
judicialmente, na pendência da acção principal, e que a jurisprudência em que se
abona a decisão reclamada está eivada de inconstitucionalidade por vedar ao
recorrente o direito ao recurso, nos termos do art.º 20.º da CRP.
6 – Não havendo unanimidade na conferência e tendo intervindo o
plenário da Secção (artigo 78.º-A, n.º 4, da LTC) e ficando o relator vencido,
ocorreu mudança de relator, tendo ocupado essa posição o Senhor Conselheiro
Mário Torres. Mas porque este deixou de prestar funções, passou o processo para
o actual relator.
Cumpre, assim, proferir decisão dentro das linhas de força do
vencimento.
B – Fundamentação
7.1 – A inadmissibilidade de recurso de constitucionalidade nos
processos de providências cautelares não corresponde a uma orientação pacífica e
com fundamentação sempre coincidente.
O primeiro acórdão em que tal tese foi sustentada – o Acórdão n.º
151/85 (Diário da República, II Série, n.º 301, de 31 de Dezembro de 1985, pág.
12 205; Boletim do Ministério da Justiça, Suplemento ao n.º 360, pág. 710; e
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 6.° vol., pág. 351) – proferido em processo
de suspensão judicial de despedimento, desenvolveu fundamentação assim
sumariada:
“I — Como todos os procedimentos da mesma natureza, o respeitante à
providência cautelar da suspensão do despedimento não visa a resolução
definitiva da questão jurídica que lhe está subjacente, mas apenas a sua solução
interina ou provisória, ou seja, a regulamentação da situação de facto que
haverá de existir entre as partes até que chegue a final a acção destinada a
dirimir aquela questão.
II — Nos procedimentos cautelares, dada a sua índole, não cabe senão
uma decisão «provisória» da questão da constitucionalidade de normas de que
substantivamente dependa a resolução da questão a decidir no processo principal
e, portanto, a concessão da providência.
III — De tal decisão não cabe recurso para o Tribunal
Constitucional, pois que de outro modo se teria de admitir ou que também este
Tribunal proferisse uma decisão provisória sobre a constitucionalidade (o que
seria absurdo e incongruente com o sistema de fiscalização da
constitucionalidade delineado na lei fundamental), ou então que ele decidisse no
próprio procedimento cautelar questão que haveria de ser resolvida na acção de
que tal procedimento depende (o que significaria a subversão da índole e
finalidade do próprio procedimento).
IV — Os recursos previstos no n.º 1 do artigo 280.° da Constituição
só são de admitir de decisões definitivas (scil., para o tribunal que as tiver
proferido) respeitando, ainda que só implicitamente, à questão de
inconstitucionalidade de normas jurídicas.”
Desse entendimento se afastou logo o Acórdão n.º 92/87 (Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 365, pág. 261; e Acórdãos do Tribunal Constitucional,
9.º vol., pág. 625), sublinhando que “decisões judiciais”, para efeitos de
recurso de constitucionalidade, “não serão apenas aquelas que, afinal, resolvem
o conflito entre dois sujeitos sobre um determinado caso concreto; mas também
todas aquelas que intermediamente, e segundo a sequência processual legalmente
estabelecida, foram necessárias, já que, sem elas, os tribunais não poderão
nunca decidir esses mesmos conflitos”, acrescentando que “distinguir neste
sector entre decisões provisórias e decisões definitivas, e só se admitir o
recurso de constitucionalidade, do tipo em causa, em relação às últimas, seria
violar um princípio elementar da interpretação jurídica: ubi lex non distinguit,
nec nos distinguere debemus”, para além de que, a enveredar-se por essa via,
chegar-se-ia a uma situação de indefinição quanto a saber “quais as decisões
definitivas e susceptíveis, por isso, de recurso de constitucionalidade” e
“quais as decisões provisórias que, pelo seu baixo grau de provisoriedade,
seriam ainda passíveis de recurso para o Tribunal Constitucional”, indefinição
essa que “poria gravemente em xeque a operatividade do sistema de fiscalização
concreta de constitucionalidade”.
A orientação no sentido da admissibilidade do recurso, traçada pelo
Acórdão n.º 92/87, foi reiterada no Acórdão n.º 466/95 (Diário da República, II
Série, n.º 259, de 9 de Novembro de 1995, pág. 13 414), proferido em processo de
restituição provisória de posse, onde se consignou:
“(...) No modo específico por que se realiza a aplicação das normas
dos artigos 8.° e 9.°, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 507-A/79, de 24 de
Dezembro, há-de ver-se que a eventual emergência de uma decisão de não
restituição provisória da posse provoca já efeitos materiais na esfera de
existência do interessado cuja reversibilidade não pode à partida ter-se por
assegurada. E, porque é assim, porque na «ordem prática das coisas» (JORGE
MIRANDA) a decisão provisória é capaz de, no seu espaço de aplicação, produzir
efeitos definitivos na esfera do titular do direito ou interesse em causa, não
pode afirmar-se a irrecorribilidade para o Tribunal Constitucional dessa mesma
decisão. Não pode porque não está assegurada a consumpção dos efeitos da
sentença provisória nos efeitos da sentença definitiva. Para mais, é o próprio
teor dos enunciados relativos aos pressupostos do recurso para o Tribunal
Constitucional, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, a não distinguir entre
sentenças provisórias e definitivas em ordem à tutela do princípio da
constitucionalidade. Do que se deriva aqui uma conclusão que já não é a dos
acórdãos n.º 151/85 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 6.° volume, pág. 351 e
seguintes), e n.º 267/91 (Diário da República, II Série, de 23 de Outubro de
1991). Daí que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça haja de
considerar-se uma decisão recorrível para efeitos do artigo 70.°, n.º 1, alínea
b), da Lei do Tribunal Constitucional.”
Porém, a orientação do acórdão n.º 151/85 viria a ser retomada no
Acórdão n.° 400/97 (Diário da República, II Série, n.º 163, de 17 de Julho de
1997, pág. 8543; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 467, pág. 194; e Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 37.° vol., pág. 235), proferido em processo de
embargos a providência cautelar não especificada, que reproduziu a fundamentação
daquele aresto, sublinhando que “os procedimentos cautelares, pela sua própria
natureza, visam apenas uma solução provisória, tendente a evitar os prejuízos
que a demora da resolução da acção principal pode ocasionar ao requerente”, o
que acarreta que, “bastando, para tanto, a aparência ou probabilidade séria da
existência do direito, também o tribunal decidirá essa questão, numa apreciação
sumária, formulando assim uma decisão meramente provisória, quer sobre a
existência do direito, quer quanto às medidas – por natureza, provisórias – a
decretar”.
E nesta mesma linha jurisprudencial, sem aditamento de novos
argumentos aos expendidos nos Acórdãos n.ºs 151/85 e 400/97, viria a inserir-se
o Acórdão n.º 664/97 (Diário da República, II Série, n.º 65, de 18 de Março de
1998, pág. 3490; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 38.° vol., pág. 257),
proferido em providência cautelar de suspensão de despedimento colectivo.
A questão foi objecto de reanálise no Acórdão n.º 442/00 (Diário da
República, II Série, n.º 280, de 5 de Dezembro de 2000, pág. 19 592; e Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 48.° vol., pág. 709), proferido em reclamação do
representante do Ministério Público neste Tribunal Constitucional contra decisão
sumária da respectiva Relatora, que seguira a orientação traçada pelos Acórdãos
n.ºs 151/85, 400/97 e 664/97, reproduzindo a fundamentação do primeiro e
considerando que a situação em nada era alterada pela circunstância de o recurso
então em causa (recurso de decisão de tribunal de 1.ª instância que deferira
providência cautelar visando impedir a celebração de escritura pública da
aquisição compulsiva de acções de sociedade anónima detidas por accionistas que
não aceitaram a oferta, tendo, para tanto, recusado a aplicação, com fundamento
em inconstitucionalidade, da norma do artigo 490.° do Código das Sociedades
Comerciais) ter sido interposto ao abrigo da alínea a) (e não da alínea b), como
sucedera nos três casos anteriores) do n.º 1 do artigo 70.° da LTC.
Nessa reclamação, o representante do Ministério Público sustentara a
revisão da orientação expressa no acórdão n.º 151/85, argumentando:
“4 – Na verdade – e desde logo – parece-nos que não fará sentido
distinguir – enquanto objecto idóneo da fiscalização concreta – as decisões
adjectivas proferidas no decurso do procedimento cautelar (admitindo, quanto a
elas, a possível interposição de recursos de constitucionalidade) e a decisão de
mérito, concedendo ou denegando a providência requerida — com o argumento de que
nela se não contém regulação definitiva do litígio.
5 – Sendo tais decisões adjectivas meramente instrumentais da que
dirime a final o procedimento, mal se compreende que se admita a fiscalização da
constitucionalidade quanto a decisões puramente interlocutórias, proferidas no
decurso do procedimento cautelar – considerando, pelo contrário, objecto
inidóneo de tal recurso a decisão final, que compõe, embora em termos
provisórios e meramente cautelares, o litígio entre as partes.
6 – Por outro lado – e como se salienta no citado acórdão n.º 466/95
– a circunstância de tal decisão final conter uma composição provisória da lide
não significa que a mesma não possa produzir efeitos definitivos e irremovíveis
na esfera jurídica dos interessados – insusceptíveis de virem a ser inteiramente
«apagados» ou precludidos com a solução definitiva dada ao litígio, através da
sentença proferida na acção principal.
7 – É que a circunstância de ter vigorado transitoriamente (ou de
ter sido rejeitada) certa providência cautelar requerida – entre os momentos da
decisão que a apreciou e da sentença que julgou a causa principal – é
susceptível de afectar direitos – inclusivamente direitos fundamentais das
partes – sendo tal ofensa insusceptível de «desaparecer» como mera consequência
do julgamento da acção principal, não se encontrando qualquer razão válida para
denegar à parte cujos direitos foram afectados por uma aplicação (ou
desaplicação) normativa inconstitucional a possibilidade de a fazer sindicar,
nos termos gerais, pelo Tribunal Constitucional.
8 – Acresce que – a partir da Revisão Constitucional de 1997 – a
justiça cautelar goza inclusivamente de tutela constitucional, ao ser
perspectivada como meio de assegurar o acesso ao direito e aos tribunais «em
prazo razoável» – cumprindo à lei assegurar, para defesa dos direitos,
liberdades e garantias pessoais, «procedimentos judiciais caracterizados pela
celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra
ameaças ou violações desses direitos» (artigo 20.°, n.º 5, da Constituição da
República Portuguesa).
9 – Parecendo-nos manifestamente incompatível com tal relevância
constitucional, conferida aos procedimentos cautelares, a orientação, fundada em
acórdão tirado em 1985, que «desvaloriza» tais decisões, privando, em absoluto,
do controlo da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional as decisões
judiciais que concedam ou rejeitam as providências requeridas.
10 — Deste modo e em conclusão:
– a justiça cautelar goza presentemente de relevância – e tutela –
constitucionais, estando expressamente consagrada no artigo 20.°, n.º 5, da
Constituição como uma das formas de acesso, célere e prioritário, ao direito e
aos tribunais;
– a disciplina jurídica «provisória» instituída por decisão que
conceda ou denegue providência cautelar é susceptível de afectar, em termos
irremediáveis, direitos dos litigantes, não sendo necessariamente a eficácia de
tal decisão «apagada», «consumida» ou «precludida» em resultado do que vier a
ser decidido na causa principal (fenómeno que, aliás, justifica que tais
decisões sejam normalmente recorríveis na ordem dos Tribunais Judiciais);
– tais direitos – afectados pela decisão proferida no procedimento
cautelar – podem inclusivamente ser direitos fundamentais, constitucionalmente
tutelados;
– face ao conteúdo do artigo 20.°, n.º 5, da Constituição da
República Portuguesa, não há razão para negar aos litigantes, no âmbito da
justiça cautelar, o acesso ao Tribunal Constitucional, nos termos gerais, para
sindicar questões de constitucionalidade normativa co-envolvidas na decisão
proferida no termo do procedimento cautelar.
11 – Neste termos – e em consonância com o entendimento de que a
decisão de mérito, proferida em procedimento cautelar, deverá constituir objecto
idóneo dos recursos de fiscalização concreta – deverá determinar-se o normal
prosseguimento do presente recurso.”
Esta reclamação foi indeferida pelo referido Acórdão n.º 442/00, com
base na seguinte fundamentação:
“3. Cabe começar por reconhecer que existe efectivamente divergência
na jurisprudência constitucional quanto à questão da recorribilidade de que aqui
se trata; considera-se, todavia, que é de manter a que é seguida na decisão
reclamada, como se passa a justificar.
Assim, e em primeiro lugar, porque a razão que levou à decisão
reclamada de não conhecimento do recurso, que se baseou no acórdão n.º 151/85,
não foi, nem a de que havia que distinguir, para o efeito de admissibilidade do
recurso de fiscalização da constitucionalidade, entre decisões adjectivas e
decisões de mérito, nem a de que era o carácter definitivo ou provisório da
decisão que concedia (ou não) a providência solicitada que relevava.
Em segundo lugar, porque a revisão constitucional operada em 1997 —
anterior à prolação do acórdão n.º 664/97 — não obriga de forma alguma a
resolver de forma diferente a questão de admissibilidade do recurso que aqui se
coloca.
4. Com efeito, quando a decisão reclamada, fazendo sua a
justificação apresentada no acórdão n.º 151/85, julgou não ser admissível o
recurso interposto para o Tribunal Constitucional, não se baseou na
circunstância de se pretender a apreciação da constitucionalidade de uma norma
claramente substantiva, cuja aplicação era determinante para o juízo de mérito
proferido no âmbito da providência requerida; assentou, sim, na verificação de
que dessa mesma norma dependia o juízo de mérito a proferir, quer no âmbito da
providência, quer no domínio da acção correspondente.
A referência a normas de tramitação dos procedimentos cautelares que
aparece no acórdão n.º 151/85 é feita, apenas, a título de exemplo, O critério
distintivo ali definido assenta, não na natureza adjectiva ou substantiva da
norma em causa, mas na circunstância de estar ou não em causa a sua aplicação,
simultaneamente, na acção principal e na providência cautelar, o que não é
equivalente. Assim, por exemplo, pode ser questionada a constitucionalidade de
uma norma que defina os requisitos substanciais de concessão da providência cuja
aplicação não tenha cabimento da acção principal.
Ora a circunstância de a mesma norma ser aplicável em ambos os casos
é que torna inadmissível o recurso interposto no âmbito da providência cautelar,
atento o valor meramente provisório, não da decisão de mérito nela proferida,
como aponta o reclamante, mas do juízo de constitucionalidade emitido igualmente
ao julgar a providência cautelar.
5. Na verdade, as duas razões são indissociáveis. Como claramente se
afirma no acórdão n.º 151/85, seria a natureza provisória do juízo de
constitucionalidade efectuado ao julgar a providência cautelar que,
fundamentalmente, justifica a inadmissibilidade do recurso.
Com efeito, se fosse julgada a questão de constitucionalidade numa
hipóteses destas, ou o julgamento não constituía caso julgado relativamente à
acção principal, admitindo-se que, nesta, se viesse a emitir novo julgamento,
eventualmente não coincidente, com possibilidade de outro recurso para o
Tribunal Constitucional; ou constituía, subvertendo a lógica inerente à relação
de instrumentalidade existente entre a acção e o procedimento, pois que a sorte
daquela era traçada por uma decisão tomada no âmbito deste.
6. É incontestável a afirmação de que as medidas cautelares podem
afectar de forma irreversível a situação das partes. Essa observação – que,
aliás, prova demais, pois levaria a que o recurso de constitucionalidade, para
além de ser admissível, tivesse sempre efeito suspensivo –, todavia, não conduz
à conclusão sustentada pelo reclamante.
Desde logo, e sendo exacto que esse efeito só é relevante se a
providência vier a caducar ou a ser julgada injustificada, a lei prevê a
hipótese de o requerente ter de indemnizar o requerido se lhe causou danos
culposamente (n.º 1 do artigo 390.° do Código de Processo Civil). Esta
obrigação, associada à eventual necessidade de prestação de caução, são os meios
através dos quais se tenta proteger a parte prejudicada.
Para além disso, a vantagem eventualmente conseguida não
prevaleceria sobre os inconvenientes atrás apontados.
7. Finalmente, não se vê em que medida é que o acrescentamento do
n.º 5 do artigo 20.° da Constituição pela revisão constitucional de 1997 altera
a conclusão de que o recurso não é admissível. Na verdade, a consagração
constitucional da necessidade de a lei prever «procedimentos judiciais
caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e
em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos» ão obriga a que se
considerem recorríveis para o Tribunal Constitucional todas as decisões
proferidas nesses procedimentos.”
O processo onde foi proferido o Acórdão n.º 442/00 voltaria a este
Tribunal Constitucional, então por força de recurso interposto, de novo ao
abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.° da LTC, do acórdão do Tribunal da
Relação do Porto, que confirmara o deferimento da providência decretada na 1.ª
instância, para tanto tendo, igualmente, recusado a aplicação, fundado num juízo
de inconstitucionalidade material, da norma vertida no artigo 490.° do Código
das Sociedades Comerciais.
Mas este Tribunal Constitucional, pelo Acórdão n.º 235/01 (Diário da
República, II Série, n.º 243, de 19 de Outubro de 2001, pág. 17 462) – com dois
votos de vencido –, continuou a entender, de acordo com a Acórdãos n.ºs 151/85,
400/97, 664/97 e 442/00, que deste tipo de decisões, tomadas em providências
cautelares, não cabia recurso de constitucionalidade (isto independentemente da
questão de saber se não se teria formado caso julgado, no processo, pela decisão
contida no Acórdão n.º 442/00).
Na linha desenhada pelo Acórdão n.º 151/85 se inseriu, por último, o
Acórdão n.º 81/02, proferido em processo de suspensão de eficácia de acto
administrativo, sendo questionadas normas que também seriam relevantes no
processo principal.
Para terminar esta resenha jurisprudencial cabe referir, por último,
o Acórdão n.º 457/07. Nele, concluiu-se, uma vez mais, pela inadmissibilidade do
recurso de constitucionalidade de decisões proferidas pelos tribunais em
processo cautelar, com base, essencialmente, em dois argumentos: o da natureza
provisória do julgamento cautelar (a norma aplicada na decisão proferida no
processo cautelar deverá ser de novo apreciada no processo principal) e o da
provisoriedade do julgamento do Tribunal Constitucional decorrente da
provisoriedade do julgamento cautelar, já que o julgamento constitucional só
poderia produzir efeitos jurídicos enquanto não fosse proferida decisão
definitiva sobre o incidente de inconstitucionalidade suscitado na acção
principal.
A nível doutrinário, cumpre assinalar que Jorge Miranda (Manual de
Direito Constitucional, tomo II, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1991,
pág. 449), após referir que da circunstância de o juiz, na providência cautelar,
não formular “um juízo definitivo, mas tão-só um juízo sobre a probabilidade
séria da ocorrência da inconstitucionalidade” se poderia fazer derivar que desse
juízo provisório não cabia recurso para o Tribunal Constitucional, sustenta,
porém, que “na ordem prática das coisas o direito ou interesse em causa pode
justificar a interposição do recurso”.
Por seu turno, José Joaquim Gomes Canotilho (Direito Constitucional
e Teoria da Constituição, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 974),
referindo que a questão de constitucionalidade deve ser levantada num “feito
submetido a julgamento” perante um tribunal (artigo 204.° da CRP), sustenta que
esse enunciado “abrange (…) os processos cautelares em que a parte interessada
«ao chorar antes de doer» (na expressão sugestiva do juiz americano Benjamin
Cardoso), suscita também a excepção de inconstitucionalidade”.
Dentro da mesma linha, José Manuel Sérvulo Correia (A Jurisprudência
Constitucional Portuguesa e o Direito Administrativo, comunicação efectuada por
ocasião do XXV Aniversário do Tribunal Constitucional, de que se cita versão
policopiada), em comentário, precisamente, ao Acórdão n.º 457/07, defende
convictamente a tese da admissibilidade do recurso de constitucionalidade de
decisões proferidas pelos tribunais em processo cautelar, com base em
diversificada argumentação.
Entre o mais, para este Autor, “a resolução da questão de
constitucionalidade poderá obrigar à reforma da decisão do tribunal a quo, mas
não determina inexoravelmente o sentido da decisão deste. E, ainda quando assim
suceda, tratar-se-á apenas de uma consequência indirecta, a ser retirada da
decisão do Tribunal Constitucional pelo juiz a quo” “[…]. O bom senso poderá
recomendar ao juiz da causa principal que se atenha ao sentido da decisão de
constitucionalidade formulada pelo Tribunal Constitucional a propósito da
aplicação de certa norma no âmbito do correspondente processo cautelar”, mas “a
verdade é que ele não estará vinculado por esse julgamento, do qual sempre
poderá afastar-se” e “a provisoriedade que caracteriza a decisão cautelar não
significa apenas que esta se destina a caducar quando for proferida a decisão na
causa principal. Ela significa também que as razões de decidir na decisão
principal poderão divergir daquelas que foram sumariamente adoptadas em face da
necessidade de decidir com urgência no processo cautelar, de modo a assim se
neutralizar o periculum in mora. Em suma, que a apreciação da questão de
constitucionalidade de uma norma relevante possa ser levada a cabo com resultado
diferente a propósito da decisão da causa principal em nada choca, antes pelo
contrário, com a natureza do processo cautelar”.
7.2 – Indicadas as posições jurisprudenciais e doutrinais
conhecidas, há que tomar posição.
Antes de tudo cumpre diferenciar duas espécies distintas de decisões
judiciais: as decisões precárias por natureza, como, por exemplo, a de admissão
de recurso no tribunal a quo, que não só não vincula o tribunal ad quem, como
neste é objecto de revisão (ao menos implícita), quer oficiosa quer a
requerimento do recorrido, que só pode questionar a admissão do recurso nas
respectivas contra-alegações (artigo 687.°, n.º 1, do Código de Processo Civil),
e as decisões provisórias, no sentido de que procedem a uma composição
provisória do litígio, como acontece nas providências cautelares. Foi sobre as
primeiras (decisões precárias) que recaiu o Acórdão n.º 267/91 (Diário da
República, II Série, n.º 244, de 23 de Outubro de 1991, pág. 10 625; Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 408, pág. 120; e Acórdãos do Tribunal Constitucional,
19.° vol., pág. 373), nenhum reparo merecendo o entendimento, aí, sufragado no
sentido da inadmissibilidade de recurso de constitucionalidade de decisão de
admissão de recurso (ordinário) proferida com fundamento na
inconstitucionalidade de determinada norma.
Com efeito, essa inadmissibilidade em nada prejudica a finalidade
prevista para o recurso de constitucionalidade, visto que o mesmo poderá ser
sempre interposto da decisão do tribunal superior, quer este não admita o
recurso (ordinário), com o que dará aplicação às normas cuja constitucionalidade
é questionada, quer o admita, com confirmação, mesmo não expressa, da decisão da
instância inferior, caso em que tal recurso (de constitucionalidade) será de
interposição obrigatória para o Ministério Público, sendo certo, por outro lado,
que a solução oposta conduziria a que a decisão do Tribunal Constitucional sobre
o despacho (“precário”) do tribunal a quo faria caso julgado no processo sobre a
questão de constitucionalidade, vindo assim a condicionar, por forma radical, o
tribunal ad quem, ao qual verdadeiramente competiria resolver em definitivo a
questão da admissibilidade do recurso.
Do que se trata, agora, não é dessas decisões precárias, mas antes
das aludidas decisões provisórias, com o alcance assinalado.
Ora, dentre destas há que distinguir duas situações, conforme a
questão de constitucionalidade respeite a normas específicas da própria
providência cautelar (respectivos requisitos, sua tramitação especial, etc.) ou
a normas respeitantes à relação material litigiosa que irão ser relevantes no
processo principal a que a providência cautelar respeita.
Quanto ao primeiro grupo de normas, que só relativamente às
providências cautelares têm operatividade, não se vê como se possa negar a
admissibilidade de recurso de constitucionalidade que as tenha por objecto, sob
pena de se excluir em absoluto o controlo do Tribunal Constitucional sobre esses
domínios normativos.
A questão verdadeiramente só se coloca relativamente a normas que
sejam susceptíveis de ser aplicadas quer no processo da providência cautelar,
quer no processo da acção principal.
A tese da inadmissibilidade do recurso de constitucionalidade nos
procedimentos cautelares assenta, basicamente, em três argumentos: na asserção
de que a natureza provisória do julgamento cautelar postula que a norma aplicada
no procedimento cautelar deva ser apreciada novamente no processo principal; na
premissa de que essa provisoriedade do julgamento cautelar acarretaria, também,
a provisoriedade do julgamento do Tribunal Constitucional (este só poderia
produzir efeitos jurídicos enquanto não fosse proferida decisão definitiva), e,
finalmente, no argumento de que a tramitação célere e simplificada que
caracteriza a tutela cautelar não se ajustaria com “os tempos próprios da
fiscalização de constitucionalidade”.
Não se acompanham, porém, tais argumentos. Em primeiro lugar,
importa notar que, na fiscalização concreta, que é a que está, aqui, em causa, o
juízo de inconstitucionalidade se traduz sempre num juízo de compatibilidade ou
de não compatibilidade da norma infraconstitucional com os princípios e as
normas constitucionais, com reflexo directo sobre os termos em que, no caso,
fica concedida a tutela cautelar.
A circunstância de a apreciação da questão de constitucionalidade
“se inserir entre os critérios de decisão sobre um pedido cautelar não lhe
retira utilidade. A decisão cautelar não constitui objecto de uma reserva do
juiz em face do legislador constituinte, nem uma área da jurisdição estanque aos
imperativos de constitucionalidade” (cf. José Manuel Sérvulo Correia, op. cit.,
p. 67).
Enquanto não for proferida a decisão na causa principal, a tutela
efectiva e eficaz, possível de ser judicialmente obtida, é a tutela cautelar.
Deste modo, o juízo de constitucionalidade tem o efeito de tornar possível uma
tutela cautelar da relação material que está em causa com respeito pelos
princípios e normas constitucionais, podendo obrigar à reforma da decisão
recorrida.
Por outro lado, se se releva a provisoriedade que caracteriza a
decisão cautelar para justificar a tese de inadmissibilidade do recurso
constitucional nos processos cautelares, não pode deixar de atender-se, então,
também, a que esse juízo de provisoriedade assenta no pressuposto de que as
razões de decidir na acção principal “poderão divergir daquelas que foram
sumariamente adoptadas, em face da necessidade de decidir com urgência no
processo cautelar, de modo a assim se neutralizar o periculum in mora”. E assim,
congruentemente, tem de admitir-se, igualmente, que a questão de
constitucionalidade de uma norma relevante para a decisão do caso possa ser
resolvida em termos diferentes a propósito da decisão da causa principal.
De qualquer modo, a circunstância de a resolução da questão de
constitucionalidade, feita no processo cautelar, não determinar
“inexoravelmente” o sentido da decisão do tribunal a quo sobre a relação
material em litígio, a tomar no processo principal, não retira utilidade à
decisão cautelar.
Desde logo, porque torna possível, para além dos ganhos advenientes
do funcionamento sistema de controlo difuso da constitucionalidade, a obtenção
de uma tutela cautelar da relação material conforme aos ditames constitucionais,
qualquer que seja a tutela cautelar pedida.
Enquanto não for substituída pela tutela conseguida na acção
principal, a tutela que vigora e, consequentemente, se apresenta como útil é a
obtida no processo cautelar.
Depois, porque não deixam de existir algumas consequências
indirectas de relevo que estão associadas à decisão do Tribunal Constitucional.
“
Por outro lado, não obstante a decisão do recurso faça caso julgado,
quanto à questão de constitucionalidade, apenas no âmbito do processo em que foi
proferida, certo é que “a decisão produz outros efeitos, potenciando ou
desencadeando mecanismos de aperfeiçoamento da ordem jurídica através da
eliminação de normas inconstitucionais” (cf. José Manuel Sérvulo Correia, op.
cit., p. 70): a criação de um precedente torna obrigatório para o Ministério
Público o recurso de novas decisões de aplicação da norma anteriormente julgada
inconstitucional e tem, igualmente, a relevância de contar para o efeito
previsto no artigo 281.º, n.º 3, da CRP (declaração de inconstitucionalidade de
qualquer norma pelo Tribunal Constitucional em três casos concretos).
Finalmente, também o argumento de que a tramitação célere e
simplificada que caracteriza a tutela cautelar não se ajusta com os tempos
próprios da fiscalização de constitucionalidade não procede.
Na verdade, pode dizer-se com José Manuel Sérvulo Correia (op. cit.,
pp. 73-74):
“Em primeiro lugar, nos termos conjugados do artigo 78.º, n.ºs 1 e
3, da Lei do Tribunal Constitucional e do artigo 143.º, n.º 2, do CPTA, os
recursos das decisões em processo cautelar para o Tribunal Constitucional têm
efeito meramente devolutivo. A morosidade na decisão do Tribunal Constitucional
não contende, pois, com a célere concretização das providências cautelares,
quando seja o caso.
Em segundo lugar, cumpre ter presente que, na maioria das lides, as
providências cautelares só caducam no termo do processo principal (CPTA, artigo
123.º, n.º 1, alíneas c), f) e g). Assim sendo, a superveniência de uma decisão
do Tribunal Constitucional que, dando provimento ao recurso, ordene a reforma da
decisão cautelar recorrida em conformidade com o julgamento sobre a questão de
inconstitucionalidade ocorrerá frequentemente antes do termo da causa principal,
produzindo efeitos úteis.
E, em terceiro e último lugar, quando a causa principal findar antes
da pronúncia do Tribunal Constitucional no recurso interposto da decisão
cautelar, este recurso extinguir-se-á por perda de utilidade actual e efectiva
na declaração de inconstitucionalidade. A inutilidade superveniente da lide
neutralizará assim a disfunção gerada pela dessintonia entre processo cautelar e
recurso perante o Tribunal Constitucional.
Note-se que a Lei do Tribunal Constitucional procura obviar tanto
quanto possível ao risco daquela dessintonia: nos termos conjugados dos artigos
79.º-B, n.º 3 e 43.º, n.º 5, nos recursos de constitucionalidade interpostos de
decisões proferidas em processo cautelar (e, logo, urgente – CPTA, artigo 36.º,
n.º 1, e) ), os prazos são reduzidos a metade e o relator deve conferir lhes
prioridade”.
A garantia do efeito útil da decisão final da acção principal que,
segundo o requerente, dependeria do deferimento de adequada providência
cautelar, ficaria gravemente comprometida se, sustentando o requerente que ela
passaria pela desaplicação pelo tribunal comum de norma arguida de
inconstitucional e não acolhida essa tese por esse tribunal, lhe fosse vedado o
acesso ao Tribunal Constitucional, a quem constitucionalmente compete a última
palavra nesse domínio.
No presente caso, o indeferimento do pedido de suspensão da
deliberação social que diminuiu a retribuição do gerente de €3.345,77 para
€1.929,00 com base em normas que o requerente argui de inconstitucionais
pode-lhe causar prejuízos insusceptíveis de serem completamente compensados com
eventual procedência da acção de anulação da deliberação social, como sejam a
não satisfação das necessidades passadas do recorrente e dos membros do seu
agregado familiar.
Em suma: quer, porque a “provisoriedade” da decisão da providência
cautelar não contagia o juízo de constitucionalidade a emitir pelo Tribunal
Constitucional, com relevância sobre o caso concreto, quer porque, apenas, dessa
forma se respeita a relevância constitucional da tutela cautelar, devem
considerar-se susceptíveis de recurso de constitucionalidade as decisões
proferidas naquelas decisões, mesmo que versem sobre normas que irão também ser
utilizadas na decisão da acção principal.
Esta solução é, de resto, aquela que se posiciona na linha do
princípio da máxima expansividade da eficácia e da força jurídica dos direitos
fundamentais, como é o caso do direito de acesso aos tribunais, consagrado no
artigo 20.º da CRP, de que o direito ao recurso de constitucionalidade constitui
uma dimensão.
Estas considerações valem, quer o recurso de constitucionalidade
haja sido interposto ao abrigo da alínea a), quer ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70.° da LTC.
Assim sendo, a reclamação é de deferir.
8 – A recorrida pediu a condenação do recorrente com litigante de má
fé, alegando que o mesmo apenas pretendeu com a reclamação obstar ao trânsito em
julgado da decisão recorrida.
Ora, verificando-se ser a reclamação de deferir, torna-se evidente a
improcedência de tal pedido.
C – Decisão
9 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Deferir a reclamação e, consequentemente, revogar a decisão sumária reclamada
e ordenar a notificação do recorrente e recorrida para, respectivamente, alegar
e contra-alegar, no prazo legal;
b) Julgar improcedente o pedido de condenação como litigante de má fé do
recorrente.
Lisboa, 2 de Dezembro de 2009
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
João Cura Mariano (vencido conforme declaração que junto)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por entender que não é admissível recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da competência prevista na alínea b), do n.º 1, do
artigo 70.º, da LTC, questionando a constitucionalidade de norma de direito
substantivo invocada em sentença proferida em procedimento cautelar.
As razões desta minha posição constam da decisão sumária revogada e que se
encontra transcrita neste acórdão.
Perante a fundamentação que fez vencimento e que optou pela desconsideração da
provisoriedade da aplicação pelo tribunal recorrido da norma questionada, faz-se
notar que a Constituição não admitiu o direito ao recurso para o Tribunal
Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma inconstitucional
de forma absoluta, tendo ela própria estabelecido alguns limites (na própria
alínea b), do n.º 1, do artigo 280.º, e nos n.º 4 e 6 do mesmo artigo) e
conferido ao legislador ordinário liberdade para fixar os requisitos de admissão
deste tipo de recursos (artigo 280.º, n.º 4, da C.R.P.).
Um desses requisitos, nos recursos interpostos ao abrigo da competência
estabelecida na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, foi o da exaustão das
instâncias (artigo 70.º, n.º 2). Visou-se poupar o Tribunal Constitucional a
intervenções dirigidas à aplicação de normas sem carácter definitivo no processo
em causa. Quando essa aplicação tem um cariz ainda provisório, uma vez que a
decisão que fundamenta encontra-se sujeita a recurso perante uma instância
superior, o Tribunal Constitucional não se pode pronunciar sobre a
constitucionalidade das normas aplicadas, devendo aguardar que essa aplicação se
torne definitiva no processo. Sendo este tipo de recurso mais volúvel a uma
utilização dilatória ou extemporânea pelas partes, exigiu-se que previamente à
intervenção do Tribunal Constitucional tenham sido esgotados todos os recursos
ordinários.
Preferiu-se uma intervenção selectiva do Tribunal Constitucional apesar dos
riscos da produção de efeitos prejudiciais para as partes de decisões
provisórias (uma vez que estas podem ser muitas vezes executadas, face ao efeito
meramente devolutivo da maior parte dos recursos).
Como consequência da sua função instrumental, as providências cautelares são
meramente provisórias, tendo uma duração, apesar de incerta, limitada no tempo.
São providências a termo incerto.
Tendo elas como única finalidade obviar ao perigo da demora de um determinado
processo, o não nascimento deste ou a sua extinção provocam o seu fim, pelo que
as decisões tomadas nos procedimentos cautelares tem também uma natureza
provisória, assim como a aplicação do direito que as fundamenta.
Além disso, sendo a existência dos procedimentos cautelares justificada pela
urgência de intervenção, não é possível seguir uma tramitação que permita
averiguar com certeza da existência do direito cuja tutela se pretende
assegurar, a qual apenas é possível apurar no processo principal. É suficiente
para alcançar uma decisão cautelar provisória, uma prova informatória, um fumus
boni iuris. Este juízo de probabilidade séria deve recair não só sobre a
existência dos factos constitutivos do direito ameaçado, mas também sobre a
verificação dos pressupostos jurídicos da existência do direito. O juízo de
probabilidade é aplicável quer às questões de facto, quer às questões de
direito, colocadas ao juiz nos procedimentos cautelares. O juiz não tem que se
convencer da veracidade dos factos que integram a causa de pedir, nem de que o
direito invocado existe perante a prova desses factos, bastando que a existência
dos factos seja provável, tal como a existência do direito.
Assim, a aplicação das normas que permitem formular um juízo sobre a
probabilidade de existência do direito cuja tutela se pretende assegurar com a
providência não só é provisória como além disso é meramente hipotético.
Daí que na lógica de um sistema que impõe a obrigatoriedade da exaustão das
instâncias para que o Tribunal Constitucional intervenha, o simples juízo de
verificação da probabilidade de aplicação futura de uma norma, não justifica a
intervenção imediata do Tribunal Constitucional, devendo o recurso a este ser
apenas admissível quando essa norma seja definitivamente aplicada no processo
principal de que o procedimento cautelar é instrumental.
Note-se que a interpretação das normas de direito constitucional e ordinário que
estabelecem os requisitos do recurso constitucional, de modo a racionalizar a
actividade do Tribunal Constitucional, segundo a qual não é admissível submeter
a este tribunal a apreciação da constitucionalidade de norma aplicada como
direito substantivo em sentença proferida em procedimento cautelar,
considerando o carácter provisório desta decisão, não retira ao interessado a
possibilidade de submeter à fiscalização do Tribunal Constitucional a norma
aplicada pelo tribunal que entende violar a Constituição, impondo apenas que o
exercício desse direito se faça somente quando ocorra uma pronúncia definitiva
na acção de que aquele procedimento é meramente instrumental.
Se este deferimento na apreciação da questão de constitucionalidade pode
permitir que se concretizem os danos que a providência requerida visava evitar,
isso não é razão suficiente para que se subvertam os princípios que configuram o
nosso sistema de recursos de constitucionalidade, uma vez que a possibilidade da
demora processual permitir a ocorrência ou o agravamento de danos para as
partes também se verifica relativamente às sentenças proferidas nas acções
declarativas susceptíveis de recurso para os tribunais superiores, também elas
dotadas de um cariz provisório, sem que se questione a vigência da regra de que
só após a exaustão das instâncias se poderá recorrer para o Tribunal
Constitucional.
A solução defendida na decisão reclamada é a única que se integra coerentemente
na lógica do nosso sistema de recursos de fiscalização sucessiva concreta para o
Tribunal Constitucional, pelo que a extensão destes recursos ao juízo que
verifica a probabilidade da existência de um determinado direito para determinar
a aplicação de uma medida cautelar, só poderá ser feita excepcionalmente pelo
legislador, não podendo o próprio Tribunal Constitucional, abrir uma brecha
naquele sistema.
Por estas razões teria indeferido a reclamação apresentada.
João Cura Mariano