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Processo n.º 142/09
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I ? Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é
recorrente A., e recorrido o Instituto de Solidariedade e Segurança Social, IP,
e o Ministério Público, foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo
do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal
Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
«A., recorrente no processo à margem referenciado, inconformado com a apreciação
e decisão desse Venerando Tribunal, vertido no Acórdão da conferência, acerca da
invocada inconstitucionalidade material do artigo 380.º da CPP, quando
interpretado no sentido em que este normativo legal ?estabelece um regime
próprio de correcção das decisões judiciais que difere substancialmente dos
artigos 667.° e 669.º, ambos do Código do Processo Civil, desde logo porque a
discordância relativamente a uma decisão judicial, assim como os erros de
julgamento ou as suas omissões como omissões de pronúncia, só pode motivar
recurso, se o mesmo for admissível e não um pedido de aclaração que iria
implicar, a ser aceite, uma modificação essencial da decisão em causa, o que o
artigo 380.º, n.°1 do CPP não consente?;
e em consequência ?nos termos do disposto no artigo 411.º do Código do Processo
Penal (CPP) o prazo para interposição do recurso é de 20 dias a contar de,
tratando-se de sentença, do respectivo depósito. Se o recurso tiver por objecto
a reapreciação da prova gravada aquele prazo é elevado para 30 dias (?);
pelo que em Processo Penal, à data da apresentação do recurso ? antes de 2 de
Janeiro de 2008 ? era inaplicável o ?art.º 686.º do Código do Processo Civil ao
processo penal? por força do art.º 4.° do CPP.
E, em consequência, entendeu esse Venerando Tribunal que tal interpretação do
art.º 380.º do CPP não viola os princípios constitucionais consagrados nos
artigo 205.º, n.°1 ? dever de fundamentação das sentenças na forma prevista por
lei ? e 32, n.° 1 da CRP ? princípio das garantias de defesa de processo
criminal, incluindo o direito de recurso ?
Da ?decisão surpresa?:
Sem que nada o fizesse prever, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
agora posto em crise sustenta que: ?O art.º 686.º do Código do Processo Civil
foi revogado pelo artigo 9 do Dec.- Lei 303/2007, de 24 de Agosto?. Pelo que
seria inaplicável ao processo em causa já que ?Este Novo regime foi ditado pela
necessidade de imprimir maior celeridade processual, evitando a formulação de
pedidos de correcção, arguição de nulidades, e pedidos de esclarecimento
manifestamente dilatórios com o único propósito de dilatar o prazo de
interposição de recurso.
Celeridade processual que se acentua no âmbito do processo criminal...?
Salvo devido respeito que é sempre muito, ainda que se aceite e compreenda a
necessidade da aceleração processual que, em boa verdade se diga, na maioria das
vezes não depende das partes (?in casu? do arguido/recorrente), sempre se dirá
que sustentar como sustenta o Aresto da Veneranda Relação de Guimarães que a
revogação do artigo 686.º do CPP o tornaria inaplicável ao caso em concreto
sempre será uma decisão ilegal e inconstitucional.
Isto porque, o art.º 11.º, n.º1, do DL 303/2007, determina expressamente a sua
inaplicabilidade aos processos em curso, como é o caso deste que se aprecia.
Sendo ainda certo que, a revogação do art.º 686.º do CPC só operou em 1 de
Janeiro de 2008, ou seja, bem depois da interposição do recurso em 8-11-2007.
Para além da violação expressa da lei decorrente da aplicabilidade da revogação
do art.º 686.º do CPP ao caso em apreço, sempre se dirá que a redução das
garantias dos cidadãos, concretamente do direito de conhecerem com o rigor
exigível a real fundamentação de sentenças (neste caso condenatória), para dela
poderem interpor recurso cabal (sobretudo atento o principio da preclusão),
ainda que esta limitação decorra da alteração de leis processuais redutoras
desse direito (de interposição de recurso quando haja rectificação, aclaração ou
reforma de sentença) viola expressamente o artigo 18.º, n.°3 da Lei fundamental.
Pelo exposto, nos termos da alínea b), do n.° 1, do art.º 70, da Lei do Tribunal
Constitucional (doravante LTC), aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro,
atentas as sucessivas alterações que lhe foram introduzidas, interpõe-se o
presente recurso para o Venerando Tribunal Constitucional.
É recurso ordinário a subir nos próprios autos. Art.º 78.º, n.° 3 a LTC.
Desde já requer a sua admissão, por estar em tempo e recorrente ter legitimidade.
Pede e espera deferimento»
2. Convidado a aperfeiçoar o requerimento de interposição do recurso,
nomeadamente, no que respeita à identificação da norma ou interpretação
normativa cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie, o
recorrente veio dizer o seguinte:
«O que está em causa no presente recurso é a interpretação normativa perfilhada,
inicialmente, na decisão sumária proferida no Venerando Tribunal da Relação de
Guimarães e posteriormente assumida e reiterada no Douto Acórdão do redito
Tribunal da Relação de que aqui se recorre.
Segundo aquele Acórdão, o artigo 380.º do CPP ?estabelece um regime próprio de
correcção das decisões judiciais que difere substancialmente dos artigos 667.° e
669.º, ambos do Código do Processo Civil, desde logo porque a discordância
relativamente a uma decisão judicial, assim como os erros de julgamento ou as
suas omissões como omissões de pronúncia, só pode motivar recurso, se o mesmo
for admissível e não um pedido de aclaração que iria implicar, a ser aceite, uma
modificação essencial da decisão em causa, o que o artigo 380.º, n.°1 do CPP não
consente?.
Em consequência, aquele Venerando Tribunal da Relação rejeitou o conhecimento de
um recurso penal, interposto pelo aqui recorrente,
Esse recurso, foi interposto dentro do prazo de 20 dias após a recepção de uma
rectificação da sentença de primeira instancia.
Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, a interpretação normativa que o
Acórdão aqui recorrido perfilha para o artigo 380.º do CPP viola materialmente o
art. 32.º, n.° 1 da CRP.
Este normativo constitucional garante, em processo penal, o direito ao recurso.
Por sua vez, este está sujeito a normas próprias quanto à sua elaboração e
sobretudo, está sujeito, ao princípio da preclusão.
Se o recorrente não poder conhecer todos os motivos, de facto e de direitos, que
presidiram à elaboração da sentença, não pode, em consequência, exercer de forma
cabal o seu direito de recurso para um tribunal superior.
É que, como é consabido, devido ao princípio da preclusão, posteriormente à
apresentação do recurso no tribunal superior, está vedado ao recorrente
acrescentar-lhe ou modificar a argumentação daquele.
Na interpretação normativa do art. 380.º do C.P.P perfilhada no Acórdão
recorrido, ao se entender (à data do Acórdão e considerando a legislação
processual aplicável aos autos) veda-se a possibilidade de aguardar por uma
aclaração de sentença em primeira instância (que aliás a veio a modificar).
Na linha dessa interpretação normativa impõe-se que o recorrente use (forçosamente)
a faculdade de interposição de recurso da primeira para a segunda instância, sem
que conheça de forma sustentada os fundamentos que presidiram á elaboração da
sentença (que repete-se veio a ser modificada na aclaração).
A interpretação normativa perfilhada no Acórdão recorrido (doutrinária e
jurisprudencialmente minoritária, diga-se por amor à verdade) produz um
resultado avesso às garantias de defesa e de recurso subjacentes no artigo 32.º,
n.º 1 da lei Fundamental.
Para além disso, o dever de fundamentação das sentenças judiciais (art.º 205.º,
n.° 1 da CRP) prende-se, na modesta opinião do recorrente, precisamente, na
necessidade de dar a conhecer os motivos, de facto e de direito que presidiram à
prolação de uma dada sentença judicial.
A lei (penal) prevê a correcção da sentença (art.º 380.º do CPP) que permite no
caso de erro, lapso, obscuridade, ou ambiguidade que não importem uma
modificação essencial, que o Sr. Juiz ?a quo? melhor conforme o seu dever
constitucional de fundamentar, para posteriormente o arguido poder, sobre os
motivos da fundamentação exercer o direito de recurso.
Por isso, afirma o recorrente, sem prejuízo doutra e melhor opinião, que o
acórdão recorrido, na interpretação normativa que perfilha relativamente ao
artigo 380.º do CPP, até seria violador do artigo 205.º, n.°1 da CRP porquanto
ao impedir, antes de recurso e por requerimento do arguido, a correcção da
sentença ao Juiz do tribunal ?a quo? estaria a permitir, em abstracto, que as
sentenças proferidas em primeira instancia não estivessem obrigadas ao dever de
fundamentação constitucionalmente consagrada e legalmente fixado.
A rematar diga-se que em causa está a interpretação normativa perfilhada pelo
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães aqui recorrido, relativamente ao
artigo 380.º do CPP, no sentido em que impõe que a interposição de um recurso
penal para o Tribunal da Relação se faça nos prazos fixados no artigo 411.º do
CPP, independentemente de ter havido um pedido prévio de correcção da sentença.
Consequentemente impõem que o recurso seja interposto antes de ser conhecido o
resultado da rectificação requerida
Tal interpretação normativa, pelos motivos antes expandidos contraria
materialmente as garantias de defesa consignadas no artigo 32.º, n.°1 da CRP e
permitiria a prolação de sentenças judiciais sem cumprimento cabal do dever
constitucional e legal de fundamentação, nos termos do art. 205.º, n.° da CRP
A invocação de tal inconstitucionalidade foi expressamente arguida pelo
recorrente, nos termos aqui desenhados, na reclamação para a conferência que
interpôs da redita decisão sumária que rejeitou o conhecimento do recurso em
segunda instância e que o Acórdão aqui recorrido não reconheceu.
Para além, o Acórdão recorrido contém uma decisão surpresa, que o recorrente não
podia prever.
Sem que nada o fizesse prever, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
agora posto em crise sustenta que: ?O art.º 686.º do Código do Processo Civil
foi revogado pelo artigo 9 do Dec.-Lei 303/2007, de 24 de Agosto?. Pelo que
seria inaplicável ao processo em causa já que ?Este Novo regime foi ditado pela
necessidade de imprimir maior celeridade processual evitando a formulação de
pedidos de correcção, arguição de nulidades, e pedidos de esclarecimento
manifestamente dilatórios com o único propósito de dilatar o prazo de
interposição de recurso.
Celeridade processual que se acentua no âmbito do processo criminal??
Salvo devido respeito, sempre se dirá que sustentar como sustenta o Aresto da
Veneranda Relação de Guimarães que a revogação do artigo 686.º do CPP o tornaria
inaplicável ao caso em concreto sempre será uma decisão ilegal e
inconstitucional.
Isto porque, o art.º 11.º, n.°1, do DL 303/2007, determina expressamente a sua
inaplicabilidade aos processos em curso, como é o caso deste que se aprecia.
Sendo ainda certo que, a revogação do art.º 686.º do CPC só operou em 1 de
Janeiro de 2008, ou seja, bem depois da interposição do recurso em 8-11-2007.
Para além da violação expressa da lei decorrente da aplicabilidade da revogação
do art.º 686.º do CPP ao caso em apreço, diga-se que aplicar ao processo ?sub
judicio? uma disposição normativa processualmente mais célere e que importaria a
redução das garantias dos cidadãos, concretamente do direito de conhecerem com o
rigor exigível a real fundamentação de sentenças (neste caso condenatória), para
dela poderem interpor recurso cabal (sobretudo atento o principio da preclusão),
ainda que esta limitação decorra da alteração de leis processuais redutoras
desse direito (de interposição de recurso quando haja rectificação, aclaração ou
reforma de sentença) viola expressamente o artigo 18.º, n.°3 da Lei fundamental.»
3. O recorrente apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«A- O entendimento levado ao Acórdão aqui recorrido é clara e materialmente
violador de normas e princípios Constitucionais
B- Sendo-o também a aplicação da norma contida no art. 9 do DL 303/2007, de 24-8,
ao processo aqui em causa.
C- Isto é, não podia, o Tribunal recorrido, desaplicar o artigo 686.° do C.P.C.,
?ex vi? art. 4 do C.P.P., para integrar a lacuna do C.P.C. ? quanto ao prazo
para interposição de recurso quando tenha havido pedido de aclaração/rectificação
de sentença;
D- Porquanto, por força da norma de direito transitório contida no art. 11.°, n.°
1 do mesmo DL 303/2007, de 24-8, ao processo ?Sub Júdice?, aquele art. 686.° do
C.P.C. era-lhe aplicável ?ex vi? art. 4.º do C.P.P. simplesmente por se tratar
de um processo já em curso aquando da entrada em vigor daquele DL 303/2007, de
24-8.
Vem assim violando, por força daquele entendimento, o art. 18.°, n.° 3 do CP.P..
E- Já o art. 380.° do C.P.P. deveria ser considerado inconstitucional, por
violação dos artigos 205.°, n.°1 e 32.°, n.° 1 da CR.P., quando interpretado no
sentido em que este artigo do C.P.P. estabelece um regime próprio de correcção
das decisões judiciais, uma vez que os erros de julgamento, as suas omissões e
as omissões de pronuncia, só podem motivar recurso, se o mesmo for admissível e
não um pedido de aclaração que iria implicar, a ser aceite, uma modificação
essencial da decisão, o que o artigo 380.°, n.° 2 não consente e,
Em consequência,
F- O pedido de aclaração ou correcção de uma Sentença em processo penal não tem
a virtualidade de suspender ou atingir o prazo de interposição de recurso
consagrado no art. 411.° do C.P.P..
G- Termos em que deverá proceder o presente recurso.»
4. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional
contra-alegou, concluindo da seguinte forma:
«1- Só são passíveis de correcção, nos termos do artigo 380.º do Código de
Processo Penal, as deficiências da sentença cuja correcção não importe
modificação essencial.
2- A discordância relativamente a uma decisão só pode motivar recurso e já não o
seu pedido de correcção, quando o seu deferimento implique uma modificação
essencial dessa decisão.
3- Dada a pouca relevância no conteúdo da decisão que as correcções implicam num
caso (n.º 1) e a exclusiva competência do tribunal de recurso para delas
conhecer no outro (n.º 2), não viola o direito de defesa do arguido (artigo 32.º,
n.º 1, da Constituição) a interpretação daquela norma que exige que os pedidos
de correcção tenham de ser feitos simultaneamente com a interposição do recurso.
4- Consequentemente, também não é violadora do direito ao recurso (artigo 32.º,
n.º 1, da Constituição) a interpretação do artigo 380.º, em conjunção com o
artigo 411.º, n.º 1, ambos do CPP, segundo a qual a arguição de irregularidades
pedidos de aclaração ou correcção de decisões, não têm a virtualidade de
suspender ou alongar o prazo de interposição de recurso.
5- Termos em que deverá improceder o presente recurso.»
5. Dos autos emergem os seguintes elementos, relevantes para a presente decisão:
? Por sentença do Tribunal Judicial de Monção, o arguido, A., foi condenado pela
prática de um crime de abuso de confiança à segurança social, p. e p. pelas
disposições conjugadas dos artigos 105.º, n.º 1, e 107.º, n.º 1, ambos do Regime
Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na pena de seis meses de prisão,
suspensa na sua execução pelo prazo de dezoito meses sob condição de o mesmo
proceder ao pagamento à Segurança Social, no prazo de quatro meses, a contar do
trânsito, da quantia de ?7.525,95, acrescida de juros de mora (cfr. fls. 435/458
dos autos).
? Por requerimento entrado em 06.09.2007, o arguido requereu a ?aclaração? da
sentença quanto a duas questões, uma respeitante à matéria de facto dado como
provada e outra respeitante à motivação da matéria de facto (cfr. fls. 473 e s.
dos autos).
? Por despacho de 9.10.2007, o juiz apreciou apenas a primeira questão ? tendo,
quanto a esta, procedido à correcção da sentença, alterando a referência que
nela se faz à quantia de ??7525,95? pela de ??7526,05? ? por ter considerado que
apenas esta consubstanciava um verdadeiro pedido de aclaração da sentença, nos
termos do artigo 380.º do CPP, enquanto que a segunda questão implicava uma
reapreciação do mérito da sentença, pelo que só poderia ser analisada pelo
tribunal superior (cfr. fls. 484).
? Por requerimento, entrado em 7.11.2007, o arguido interpôs recurso da sentença
proferida em 1.ª instância (cfr. fls. 530 e s.).
? O recurso foi rejeitado por decisão sumária do relator no Tribunal da Relação
de Guimarães, com fundamento em extemporaneidade (cfr. fls. 603/605).
? Desta decisão o arguido reclamou para a conferência, que por acórdão, de 15.12.2008,
manteve a decisão de rejeição do recurso, por extemporaneidade (cfr. fls. 631/637).
? É deste acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que vem interposto o
presente recurso de constitucionalidade.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II ? Fundamentação
A) Delimitação do objecto do recurso
6. Importa começar por delimitar o objecto do recurso.
Na resposta ao convite ao aperfeiçoamento, o recorrente esclarece que pretende
ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 380.º do Código de
Processo Penal, quando interpretada no sentido de impor a interposição de um
recurso penal para o Tribunal da Relação, nos prazos fixados no artigo 411.º do
CPP, independentemente de ter havido um pedido prévio de correcção da sentença,
obrigando, em consequência, que o recurso seja interposto antes de ser conhecido
o resultado da rectificação requerida.
Nas conclusões das respectivas alegações, o recorrente invoca ainda uma outra
questão, a da inconstitucionalidade do entendimento do tribunal recorrido que
levou à não aplicação do artigo 686.º do Código de Processo Civil ao presente
processo, defendendo que preceito seria aplicável por força do artigo 4.º do CPP
e da norma de direito transitório contida no artigo 11.º, n.º 1, do citado
Decreto-Lei n.º 303/23007, por se tratar de processo em curso antes da sua
entrada em vigor (cfr. conclusões A. a D.).
Acontece que, embora o recorrente refira o artigo 686.º do CPC no requerimento
de interposição de recurso e na resposta ao convite ao aperfeiçoamento, fá-lo em
termos de considerar que o tribunal recorrido violou a lei ao não considerar
aplicável tal preceito ao caso concreto. Em momento algum enunciou qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa respeitante a este preceito legal (ou
à sua aplicabilidade no âmbito do processo penal). De igual modo, não suscitou
tal questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido.
Sendo assim, apenas se conhecerá da questão de constitucionalidade da referida
interpretação do artigo 380.º do Código de Processo Penal - a única suscitada no
requerimento de interposição do recurso e melhor esclarecida na resposta ao
convite ao aperfeiçoamento.
Como salienta o Ministério Público, essa questão, embora preencha os
pressupostos necessários ao conhecimento do objecto do recurso, encontra-se
imperfeitamente enunciada, sendo, por isso, preferível recorrer à formulação
presente na própria decisão recorrida (acórdão do Tribunal da Relação de
Guimarães, de 15.12.08), onde se refere: «a arguição de irregularidades, pedidos
de aclaração ou correcção de despacho ou decisões [ao abrigo do disposto no
artigo 380.º do CPP] não têm a virtualidade de suspender ou alongar o prazo de
interposição do recurso consagrado no n.º 1 do artigo 411.º do CPP».
Mas mesmo esta formulação carece de ser precisada. Na realidade, a dimensão
normativa efectivamente aplicada para decisão do caso em apreço tem pressupostos
mais limitados que os enunciados em tal formulação, uma vez que está em causa
apenas um pedido de aclaração formulado pelo próprio arguido que é também o
recorrente.
Deve considerar-se, em suma, que o presente recurso tem por objecto a apreciação
da constitucionalidade da interpretação do artigo 380.º, em conjugação com o
artigo 411.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, segundo a qual o pedido
de correcção de uma decisão, formulado pelo arguido, não suspende o prazo para
este interpor recurso dessa mesma decisão.
É esta a única questão de que cumpre conhecer, ficando fora do campo de
apreciação outras dimensões da questão, como sejam, a conjugação entre a
arguição de nulidades da sentença e a interposição de recurso, ou a correcção da
sentença, pelo próprio tribunal ou a requerimento de outros, que não o arguido,
e a sua conjugação com o direito ao recurso do arguido.
B) Mérito do recurso
7. Os preceitos do Código de Processo Penal aqui em causa têm a seguinte
redacção:
«Artigo 380.º
Correcção da sentença
1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença
quando:
a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não
tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;
b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação
não importe modificação essencial.
2 - Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível,
pelo tribunal competente para conhecer do recurso.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos
restantes actos decisórios previstos no artigo 97.º»
«Artigo 411.º
Interposição e notificação do recurso
1 - O prazo para interposição do recurso é de 20 dias e conta-se:
a) A partir da notificação da decisão;
b) Tratando-se de sentença, do respectivo depósito na secretaria;
c) Tratando-se de decisão oral reproduzida em acta, a partir da data em que
tiver sido proferida, se o interessado estiver ou dever considerar-se presente.
2 - O recurso de decisão proferida em audiência pode ser interposto por simples
declaração na acta.
3 - O requerimento de interposição do recurso é sempre motivado, sob pena de não
admissão do recurso, podendo a motivação, no caso de recurso interposto por
declaração na acta, ser apresentada no prazo de 20 dias, contado da data da
interposição.
4 - Se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada, os prazos
estabelecidos nos n.ºs 1 e 3 são elevados para 30 dias.
5 - No requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se
realize audiência, especificando os pontos da motivação do recurso que pretende
ver debatidos.
6 - O requerimento de interposição ou a motivação são notificados oficiosamente
aos restantes sujeitos processuais afectados pelo recurso, devendo ser entregue
o número de cópias necessário.
7 - O requerimento de interposição de recurso que afecte o arguido julgado na
ausência, ou a motivação, anteriores à notificação da sentença, são notificados
àquele quando esta lhe for notificada, nos termos do n.º 5 do artigo 333.º»
Como vimos, a questão sub judicio é a constitucionalidade da interpretação do
artigo 380.º, em conjugação com o artigo 411.º, n.º 1, ambos do Código de
Processo Penal, segundo a qual o pedido de correcção de uma decisão, formulado
pelo arguido, não suspende o prazo para este interpor recurso dessa mesma
decisão.
No entender do recorrente, esta interpretação viola o direito ao recurso,
incluído entre as garantias constitucionais do processo criminal (artigo 32.º, n.º
1, da Constituição) e o dever de fundamentação das sentenças judiciais de forma
?clara e transparente?, por força do disposto no artigo 205.º, n.º 1, da CRP.
O Ministério Público contrapõe que tal interpretação ? que exige que os pedidos
de correcção tenham de ser feitos simultaneamente com a interposição do recurso
? não é violadora do direito ao recurso (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição),
salientando que só são passíveis de correcção, nos termos do artigo 380.º do CPP,
as deficiências da sentença cuja correcção não importe modificação essencial.
Pelo que o tribunal recorrido apenas pode efectuar correcções que têm pouca
relevância no conteúdo da decisão, sendo as demais da exclusiva competência do
tribunal de recurso (cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 380.º do CPP).
8. Embora o recorrente invoque dois parâmetros constitucionais ? direito ao
recurso e dever de fundamentação das sentenças judiciais ? a verdade é que a
questão colocada se resume à compatibilidade da referida interpretação com a
garantia constitucional do direito ao recurso. Na verdade, não vem invocado que
tal interpretação dispense as indicações obrigatórias que consubstanciam a
fundamentação da decisão, mas antes se alega a necessidade de conhecer essa
mesma fundamentação ? depois de esclarecida ou aclarada ? antes que se inicie o
prazo para interposição do recurso. Ou seja, a questão é saber se a
interpretação em causa contraria, ou não, a exigência de um processo que seja
estruturado de modo a tornar efectivo o direito ao recurso.
A interpretação dos artigos 380.º e 411.º do CPP impugnada considera que o prazo
para interposição do recurso continua a correr, a partir do termo inicial fixado
no artigo 411.º, mesmo quando o arguido requeira a correcção da sentença ao
abrigo do artigo 380.º do CPP. O que significa que o arguido poderá ter que
interpor recurso da sentença antes de conhecer a resposta ao requerimento
formulado nos termos do artigo 380.º, sob pena de intempestividade do dito
recurso.
Cumpre salientar que, no âmbito do artigo 380.º do CPP, estão em causa pedidos
de correcção que respeitam a questões que não importam uma modificação essencial
do teor da decisão: ou são casos em que os vícios de que a sentença enferma não
consubstanciam nulidade, embora aquela não cumpra todas as indicações ou menções
exigidas no artigo 374.º (cfr. alínea a) do n.º 1 do artigo 380.º); ou são
situações em que a sentença contém erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja
eliminação não importa uma modificação essencial (cfr. alínea b) do mesmo artigo).
O âmbito limitado do mecanismo de correcção previsto no artigo 380.º, n.º 1,
alínea b), do CPP, foi já salientado pelo Tribunal no Acórdão n.º 89/2007, que
julgou não inconstitucional essa norma, na interpretação segundo a qual não é
possível a correcção da decisão judicial quando tal correcção importa alteração
substancial do decidido. Neste aresto, afirma-se que o mecanismo processual
previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 380.º «consubstancia um meio célere de
correcção de determinados aspectos da decisão (os que não implicam alteração
substancial do sentido desta), subsistindo os demais meios processuais».
No caso concreto dos presentes autos, como vimos, o pedido de aclaração
formulado pelo arguido levou a que o tribunal de 1.ª instância procedesse a uma
correcção da sentença, ao abrigo do disposto no citado artigo 380.º, alterando a
quantia de ??7525,95? pela de ??7526,05?; e tendo entendido, quanto à outra
questão colocada na aclaração e respeitante à ?motivação da matéria de facto?,
que esta implicava uma reapreciação do mérito da sentença, pelo que só poderia
ser apreciada pelo tribunal superior.
9. A redacção do artigo 380.º do CPP é a conferida pelo Decreto-Lei n.º 78/87,
de 17 de Fevereiro, que aprovou o actual Código de Processo Penal (com excepção
de uma pequena alteração do seu n.º 3, resultante da Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto).
No plano do direito ordinário e a propósito desta norma legal, controvertia-se a
questão de saber se, no âmbito do processo penal, era aplicável o disposto no
artigo 686.º do CPC (entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de
Agosto), que estabelecia que o prazo para o recurso só começava a correr depois
de notificada a decisão proferida sobre requerimento de rectificação, aclaração
ou reforma da sentença.
Como refere VINÍCIO A. P. RIBEIRO, Código de Processo Penal, Notas e Comentários,
Coimbra, 2008, 808 s., «[E]ntendiam uns que, não dispondo o CPP de norma sobre a
eventual suspensão do prazo para interposição de recurso nos casos em que
tivesse sido pedida a reforma, aclaração ou correcção da sentença, devia tal
omissão ser suprida com o regime constante do CPC, nos termos do artigo 4.º do
CPP. Outros, pelo contrário, defendiam a inaplicabilidade do disposto no cit.
Artigo 686.º do CPC, dado que o CPP contém uma regulamentação dos recursos
autónoma e independente do CPC.»
Como referido, o artigo 686.º do CPC foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 303/2007,
de 24 de Agosto (artigo 9.º). Este diploma operou, no âmbito do processo civil,
a revisão do regime de arguição dos vícios e da reforma da sentença, ao
estabelecer que, cabendo recurso da decisão, o requerimento de rectificação,
esclarecimento ou reforma é sempre feito na respectiva alegação (cfr., no que
respeita ao esclarecimento ou reforma da sentença quanto a custas e multa, o
artigo 669.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, na redacção actual).
Em contrapartida, o regime processual civil passou a prever a possibilidade de
abertura de novo contraditório, nos termos, nomeadamente, do disposto no n.º 3
do artigo 670.º do CPC, segundo o qual o «recurso que tenha sido interposto fica
a ter por objecto a nova decisão, podendo o recorrente, no prazo de 10 dias,
dele desistir, alargar ou restringir o respectivo âmbito, em conformidade com a
alteração sofrida, e o recorrido responder a tal alteração, no mesmo prazo.»
Tendo-se mostrado necessário, para melhor enquadrar a questão em apreço, este
excurso pelo processo civil, não importa, no entanto, aprofundar o respectivo
regime, nem tal seria possível atento o objecto do presente recurso, que, como
vimos, não abrange a questão de saber se as regras do processo civil são, nesta
parte, aplicáveis ao processo penal.
10. Desde a revisão constitucional de 1997 que o direito ao recurso se inclui
expressamente entre as garantias de defesa em matéria penal (artigo 32.º, n.º 1,
da Constituição). O que significa que o direito de defesa pressupõe a existência
de um duplo grau de jurisdição.
A vertente do direito ao recurso que aqui importa convocar é a que exige que o
processo esteja estruturado de modo a permitir o efectivo exercício desse
direito, pois a sua proclamação constitucional implica que o Estado fique
vinculado a emitir as normas organizatórias e procedimentais adequadas e
necessárias ao seu cabal exercício por parte dos interessados.
A interpretação questionada é, prima facie, susceptível de contender com essa
dimensão do direito ao recurso, na medida em que obriga o recorrente a formular
um recurso e respectivas alegações sem poder aguardar o resultado de um pedido
de esclarecimento ou correcção da sentença.
Sob este ponto de vista, não se mostra desprovida de fundamentação, nos planos
conceptual e funcional, uma distinção entre dois grupos de situações, reguladas
na alínea b) do n.º 1 do artigo 380.º Aí, debaixo da epígrafe ?correcção da
sentença?, estão contemplados os casos de erro ou lapso, por um lado, e os de
obscuridade ou ambiguidade, por outro.
Ora, ainda que a lei processual-penal os regule unitariamente, contrariamente ao
que faz o Código de Processo Civil (cfr. os artigos 667.º e 669.º), poderá dizer-se
que, pelo menos em teoria, o segundo grupo de situações levanta obstáculos mais
sérios à efectividade do direito ao recurso.
Na verdade, quando está em causa uma obscuridade ou ambiguidade, o arguido
defronta-se com uma opacidade, maior ou menor, do conteúdo da sentença, que pode
não lhe permitir alcançar, com um mínimo de certeza, o seu sentido e alcance, de
modo a ter por definido o objecto da sua contra-argumentação.
Já quando está em causa um erro, sobretudo quando se trata de um erro de escrita
ou de cálculo, ele, em regra, não só é manifesto ou patente, como a sua
rectificação não levanta dificuldades de maior, sendo possível por uma leitura
integrada da sentença. Na maioria das vezes, o erro não é, pois, susceptível de
afectar a posição do recorrente. Nomeadamente, naqueles casos em que este,
independentemente do despacho que venha a recair sobre aquele pedido, dispõe,
desde logo de todos os elementos indispensáveis à elaboração do seu recurso,
podendo formulá-lo contando com a rectificação, ou em termos de condicionalidade,
de fácil conformação, sem ónus excessivos.
Como salienta o Ministério Público, o caso dos autos é disso um bom exemplo,
atento o tipo de rectificação que foi efectuada. Deve, no entanto, salientar-se
que, neste caso, a irrelevância dessa rectificação só pode ser afirmada, com
segurança, uma vez conhecido o despacho que recaiu sobre o requerimento de
aclaração, pois o teor desse requerimento não deixava antever necessariamente um
tal desfecho (cfr. fls. 477/479 dos autos).
Outros casos, no entanto, haverá, em que, não obstante estarem em causa pedidos
de correcção que podem resultar em ?modificações não essenciais? da sentença, e
portanto subsumíveis no âmbito do artigo 380.º do CPP, o teor de tais pedidos
revela a impossibilidade de formular adequadamente um recurso, antes de
conhecida da decisão sobre ele. A título de exemplo, pense-se no caso em que o
tribunal de primeira instância condena determinado arguido na pena de ?x? meses
de prisão, quando do teor da respectiva fundamentação de facto e de direito
resulta, inequivocamente, que se trata de um lapso de escrita, pois a pena
pretendida aplicar era de ?x? anos de prisão. Situações como esta têm sido
entendidas como consubstanciando modificações não essenciais, como tal,
enquadráveis no artigo 380.º do CPP ? cfr., por exemplo, o Acórdão do STJ de 27.02.1992
(CJ, XVII, 1992, I, 48-51), onde se decidiu que é lícito corrigir a sentença
através do processo estabelecido no art. 380.º do CPP, quando, por manifesto
erro, o tribunal escreveu no dispositivo pena diferente da que quis aplicar, e
que indicara até na fundamentação.
Note-se que, no caso exemplificado (em que na condenação se escreve ?meses? de
prisão, em vez de ?anos?, como resulta da fundamentação) o erro colocaria o
arguido numa posição de não poder decidir se interpunha, ou não, recurso,
ficando para tal dependente da resposta que viesse a ser dada ao seu pedido de
correcção, pois eventualmente estaria conformado com uma pena de ?meses? de
prisão, mas já não com uma condenação em ?anos? de prisão.
Outro exemplo pode facilmente ser conjecturado: num caso em que A e B são co-arguidos,
pode, por manifesto lapso, constar da decisão (na parte final) a condenação de A
em pena de prisão e a absolvição de B, quando, na verdade, resultava da
fundamentação que se queria condenar B e absolver A. Também aqui se pode ter por
admissível a correcção do erro da sentença, pois, como se decidiu, embora em
caso não exactamente idêntico, no Acórdão do STJ de 11.03.2003 (CJ / STJ, ano I,
T. I, 1993, 212 s.), havendo a sentença laborado em confusão de nomes e de
nacionalidade da pessoa física submetida a julgamento, o caminho a seguir, em
tais circunstâncias, é o da correcção do erro cometido, cuja eliminação não
importa modificação essencial do julgado.
Tal como no anterior, igualmente neste caso não estarão reunidas as condições
para que os arguidos possam recorrer em simultâneo, ou na pendência, de um
pedido de correcção da sentença. Na verdade, A (que foi condenado, mas que devia
ter sido absolvido) ver-se-á obrigado a recorrer, por cautela, sendo certo que,
após a correcção, perderá interesse (e até legitimidade) no recurso; enquanto
que B não tem (antes dessa correcção) interesse em recorrer de uma sentença que,
na decisão final, o absolve, mas já poderá tê-lo, uma vez efectuada a correcção.
Estes exemplos e outros que se poderiam alinhar são demonstrativos de que nem
sempre os erros ou lapsos ? exclusivamente imputáveis ao tribunal, frise-se ?
são superáveis pelo arguido sem ónus desproporcionados. De resto, as tipologias
fenoménicas são muito .variadas e de diferenciação gradativa, pelo que,
sobretudo tratando-se de inexactidões ou omissões, a sua qualificação como erro
ou lapso, ou obscuridade ou ambiguidade, é de molde a suscitar funda incerteza.
Tudo ponderado, não cremos que se justifique decidir, nesta matéria, por um
tratamento diferenciado dos dois grupos.
Nessa decisão, há que ter em conta que a interpretação normativa que vem
questionada tem o efeito perverso de se mostrar inócua (leia-se, irrelevante
para o exercício do direito ao recurso, que desde logo pode ser interposto em
condições de total conhecimento dos seus pressupostos), nos casos em que o
pedido de correcção da sentença se baseia num erro, ambiguidade ou obscuridade
inexistente (podendo até constituir, como muitas vezes acontece, mera manobra
dilatória do recorrente), revelando-se, pelo contrário, prejudicial quando
confrontada com situações em que verdadeiramente se verifique tal erro,
ambiguidade ou obscuridade da sentença. Nesta segunda hipótese, a decisão de que
se pretende recorrer não é integralmente conhecida, ou porque contém uma
divergência entre o que ficou escrito e o que estava no pensamento do tribunal
decidir, ou porque é obscura (por não se poder alcançar o seu sentido exacto) ou
porque é ambígua (comporta dois ou mais sentidos distintos).
Para estes casos (os que são verdadeiramente casos de aplicação do artigo 380.º
do CPP), a ideia de que o prazo para interpor recurso deve começar a contar,
para o arguido que pediu a correcção da sentença, do conhecimento da decisão que
recaia sobre tal pedido de correcção (a qual é complemento e parte integrante da
sentença corrigida ou aclarada) é o corolário lógico de se considerar que este
incidente pós-decisório é necessário ao cabal conhecimento, por parte do
recorrente, da decisão final do tribunal recorrido (a quem incumbe, em primeira
linha, a apreciação de tal requerimento ? cfr. artigo 380.º, n.º1, do CPP) e,
consequentemente, do exercício, em concreto, do direito ao recurso.
O pedido de correcção da sentença surge porque o seu destinatário (arguido) a
considera errónea, obscura ou ambígua. Até ser proferida decisão quanto a esse
pedido, o requerente está (ou pode estar) colocado num estado de incerteza
quanto aos termos finais da sentença em relação à qual tem que definir o seu
interesse em recorrer e, na hipótese afirmativa, conformar o teor do seu recurso.
O mesmo é dizer que, em determinadas circunstâncias, o resultado daquele
incidente pós-decisório, qualquer que ele seja, é condicionante do adequado
exercício do direito ao recurso, pois mesmo que o pedido de correcção venha
indeferido, só com o conhecimento desta decisão poderá o arguido estar certo do
alcance da sentença de que recorre e, consequentemente, construir a sua defesa
em sede de recurso (ou até, decidir se toma, ou não, essa iniciativa processual).
Só nesse momento, o arguido fica certificadamente, e em definitivo, na posse de
todos os dados a ponderar na determinação da sua vontade, quanto ao se e ao modo
do exercício do direito ao recurso.
11. Em face desta projecção da decisão quanto ao pedido de correcção sobre a
efectivação do direito ao recurso, reconhecer-se-á, sem dificuldade, que a
solução que, em grau máximo, preserva a garantia constitucional é a de
estabelecimento de uma tramitação sucessiva, sem sobreposições temporais.
Solução que exigiria que o termo inicial para a contagem do prazo de recurso
viesse dado pela notificação da decisão do pedido de correcção da sentença de
que se pretende recorrer.
Contrapor-se-á que a interpretação dos artigos 380.º e 411.º do CPP adoptada na
decisão recorrida persegue o objectivo legítimo de assegurar celeridade
processual e de contrariar puros expedientes dilatórios, com isso se
contribuindo para a boa administração da justiça. Nessa medida, a questão por
ela suscitada distingue-se da apreciada no Acórdão n.º 384/98, que decidiu
julgar inconstitucional a norma contida no artigo 172.º, n.º 4, da Lei n.º 21/85,
de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais), na interpretação feita pelo
Plenário Geral do Tribunal de Contas, no sentido de o recorrente dever interpor
o recurso de deliberação classificativa do concurso para juízes do Tribunal de
Contas num momento em que ignora os fundamentos da decisão que pretende impugnar.
Para além de aqui estar em causa a ignorância total dos fundamentos da decisão,
foi entendido que tal exigência traduz-se antes na imposição de uma formalidade
limitadora do efectivo exercício do direito ao recurso e absolutamente alheia ao
que possa ser a prossecução de um interesse racional e teleologicamente
justificado.
Mas há que ver que o facto de a finalidade da solução em causa aparecer
credenciada constitucionalmente não dispensa a apreciação da observância da
proporcionalidade, quanto aos meios concretos de a atingir. Cumpre apreciar,
designadamente, se essa solução se contém dentro dos limites da necessidade e da
justa medida, isto é, se ela é indispensável e não sacrifica desmesuradamente os
valores associados à efectividade do direito ao recurso.
Neste juízo, não pode ignorar-se que, na sua formulação geral e abstracta, a
interpretação normativa em causa é susceptível de abranger situações em que o
arguido é colocado numa posição real de impossibilidade de formular
adequadamente o seu recurso (ou até de tomar a decisão de recorrer, ou não), por
desconhecer os contornos e a extensão exacta da decisão objecto desse recurso.
Por isso mesmo, a interpretação sub juditio não pode partir do pressuposto de
que apenas são abrangidos casos em que o conhecimento da decisão sobre o pedido
de correcção da sentença é absolutamente irrelevante para o exercício do direito
ao recurso. Tendo exclusivamente na mira as situações de aproveitamento abusivo,
com intuitos dilatórios, de uma previsão de incidentes pós-decisórios, o
legislador, nesta interpretação, acaba por penalizar os arguidos para quem o
conhecimento da decisão quanto ao pedido de correcção (e, com ele, da
configuração última da sentença) é, genuinamente, condição de um adequado
exercício do direito ao recurso.
Isso mesmo é reconhecido pelo Ministério Público, quando refere, nas respectivas
alegações, que «em casos extremos, se essa correcção levar a que a motivação do
recurso perca algum sentido, então terá de ser dada oportunidade ao arguido para
alterar essa motivação, adequando-a à decisão corrigida». E o mesmo pensamento
está subjacente ao legislador da reforma dos recursos em processo civil de 2007,
quando prevê a possibilidade de abertura de novo contraditório, nos termos do
artigo 670.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, acima referido.
Uma ?válvula de escape? deste tipo permite atender suficientemente ao interesse
em combater dilações totalmente injustificadas, pois, nos casos (presumivelmente
os mais numerosos) em que o teor da decisão sobre o pedido de correcção da
sentença vem revelar que o seu conhecimento era irrelevante para a formulação do
recurso, não há qualquer alongamento do prazo para recorrer. Mas, ao mesmo tempo,
não deixa sem protecção as situações, que não podem ser desconsideradas, em que
se verifica o inverso. A incerteza existente, quanto à relevância da decisão
sobre o pedido de correcção, no momento da sua interposição, e só desfeita no
momento em que ele é decidido, não paralisa desnecessariamente o ritmo
processual normal, mas também não obstaculiza o exercício adequado do direito ao
recurso. O que se consegue facultando ao arguido, a posteriori, quando tal se
justifica, e em excepção ao princípio da preclusão, um ajustamento do recurso
aos termos finais da sentença corrigida. Solução que, é certo, acarreta para o
arguido o ónus suplementar de reformulação de uma peça processual já apresentada.
Mas esse é um ónus claramente não excessivo, em face das vantagens associadas.
Simplesmente, é tudo menos certa a aplicabilidade desta solução em processo
penal.
Ela só poderia afirmar-se ao abrigo do princípio geral do contraditório ou de
juízo interpretativo que considere supletivamente aplicável a regra do artigo
670.º, n.º 3, do CPC ao processo penal.
Não cabe a este Tribunal Constitucional tomar posição, por se tratar de
aplicação de norma no plano do direito ordinário. Cumpre apenas chamar a atenção
para que a disciplina dos prazos processuais constitui matéria de direito
estrito, por razões óbvias de segurança e certeza jurídicas. Faz-se aqui sentir,
com redobrada intensidade, o princípio da determinabilidade da lei. E no âmbito
do processo penal, em que o direito ao recurso é uma das garantias de defesa
constitucionalmente reconhecidas ao arguido, qualquer esbatimento da segurança
jurídica quanto à disciplina da articulação entre um pedido de correcção e o
direito ao recurso é de molde a comprometer a efectividade deste.
Ora, a aplicação supletiva de normas de processo civil está dependente do juízo,
sempre sujeito a controvérsia, como, aliás, já se verificou neste campo, da
existência ou não de uma lacuna. Pode duvidar-se ser esse o caso, atenta a
exaustiva regulação dos recursos em processo penal, contida no respectivo código.
Por outro lado, a questão de saber qual o momento a partir do qual se conta o
prazo para recorrer não pode ficar dependente de interpretações que convoquem
princípios jurídicos. Estes não nos dão, de forma acabada e imediata, uma
solução do caso, apenas apontam o sentido da solução a construir por mediação
judicial.
Só uma regra de fixação precisa do termo inicial do prazo de recurso, quando
requerida uma aclaração ou correcção da sentença, de aplicação certa em processo
penal e dotada de um conteúdo que preserve a utilidade, para efeitos da
interposição e da formulação do recurso, em todos os casos, do conhecimento do
despacho que recair sobre aquele pedido, se apresenta capaz de cumprir
satisfatoriamente as exigências de conformação do direito ao recurso em termos
compatíveis com a garantia constitucional.
Não pode considerar-se que as normas dos artigos 380.º e 411.º, n.º 1, do CPP,
na interpretação em juízo, contentem todas estas condições. Tal como formulada,
sem qualquer resguardo adaptativo, ela, ainda que na prossecução de um interesse
legítimo, sacrifica desnecessária e excessivamente a efectividade do direito ao
recurso ? uma garantia pessoal do arguido, revestida de toda a força jurídico-constitucional
que às garantias desta natureza cabe.
Em suma, a interpretação questionada, segundo a qual o prazo para interposição
do recurso continua a correr, a partir do termo inicial fixado no artigo 411.º,
mesmo quando o arguido requeira a correcção da sentença ao abrigo do artigo 380.º
do CPP, é inconstitucional, por revelar uma estruturação do processo penal
incompatível com o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Lei
Fundamental.
III ? Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição,
a interpretação do artigo 380.º, em conjugação com o artigo 411.º, n.º 1, ambos
do Código de Processo Penal, segundo a qual o pedido de correcção de uma decisão,
formulado pelo arguido, não suspende o prazo para este interpor recurso dessa
mesma decisão.
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida
ser reformulada em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2010
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano (vencido em parte de acordo com declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Divergi da amplitude do entendimento de que é inconstitucional, por violação do
direito ao recurso, a interpretação do artigo 380.º, em conjugação com o artigo
411.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal (CPP), segundo a qual qualquer
pedido de correcção de uma decisão formulado pelo arguido, não suspende o prazo
para interpor recurso dessa mesma decisão.
Entendo que se justifica um maior rigor na declaração de inconstitucionalidade,
importando efectuar a distinção entre os dois grupos de situações reguladas na
alínea b), do n.º 1, do artigo 380.º, do CPP.
Neste preceito estão contemplados quer os casos de erro ou lapso material da
decisão penal, por um lado, quer os casos de obscuridade e ambiguidade dessa
decisão, por outro.
Como se distingue neste acórdão quando se está perante uma obscuridade ou
ambiguidade da decisão, o arguido defronta-se com uma opacidade, maior ou menor,
do seu conteúdo que não lhe permite compreender, com um mínimo de certeza, todo
o seu alcance, o que inviabiliza a definição pelo arguido do objecto da sua
contra-argumentação nas alegações de recurso.
Nestes casos, a exigência que o arguido opte pela interposição de recurso,
apresentando as razões de discordância da decisão, sem que entretanto tenha sido
elucidado sobre o conteúdo integral desta, põe em causa um efectivo direito ao
recurso do arguido.
Na verdade, a efectividade deste direito exige que as normas processuais que o
regulamentam assegurem que o arguido recorrente tenha a possibilidade de
analisar e avaliar criteriosamente os fundamentos da decisão recorrida, de forma
a permitir-lhe um exercício consciente, fundado e eficaz desse seu direito, o
que não sucede quando a dedução de um pedido de esclarecimento sobre o real
conteúdo da decisão recorrida não interrompe o prazo para a dedução do recurso.
Já quando se está perante um mero erro ou lapso da decisão, cuja eliminação não
importe a sua modificação substancial, a sua existência e possibilidade de
rectificação não levantam dificuldades de maior à posição do arguido.
Em todas estas situações, sem possibilidade de excepção, o arguido, conhece
perfeitamente o conteúdo da decisão emitida, mas entende que ela enferma de um
erro ou lapso, pelo que independentemente do despacho que venha a recair sobre o
respectivo pedido de rectificação, ele dispõe de todos os elementos
indispensáveis à elaboração do seu recurso, podendo formulá-lo, em termos de
condicionalidade, cobrindo as hipóteses de correcção ou de não correcção do erro
ou lapso. Basta utilizar uma argumentação subsidiária.
Trata-se de um ónus cujo cumprimento não encerra uma dificuldade excessiva e que
se revela proporcional face ao objectivo constitucional perseguido de assegurar
uma maior celeridade processual (artigo 20.º, n.º 5, da Constituição), com isso
contribuindo para a boa administração da justiça.
Atenta a importância da distinção de situações acima revelada, apenas declararia
inconstitucional a referida interpretação, relativamente aos casos em que é
deduzido um pedido de aclaração duma obscuridade ou ambiguidade da decisão.
João Cura Mariano