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Processo n.º 619/09
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos foi proferida a seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério
Público, B., S.A., C., Instituto de Emprego e Formação Profissional, I.P., Banco
D., S.A., E., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
280º da Constituição e da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão
proferido, em conferência, pela Secção Criminal do Tribunal da Relação de
Coimbra, em 28 de Janeiro de 2009 (fls. 5349 a 5470), posteriormente
complementado por acórdão, proferido pela mesma Secção e Tribunal, em 06 de Maio
de 2009, que indeferiu a arguição de diversas nulidades do anterior acórdão.
O recorrente pretende que seja apreciada a constitucionalidade das seguintes
interpretações normativas:
i) “Artigos 97º, 277º, 374º, 379º, 340º, 358º, 359º,
368º, 425º, todos do CPP e os artigos 26º e 28º do Código Penal, quando
interpretados no sentido de que a alteração não substancial da qual resultou a
alteração dos factos contidos nos pontos 5.3., 5.7. e 7 da Acusação com a
consequente destruição da co-autoria, estabelecida na «história» descrita na
Acusação, entre Liquidatário e o ora Arguido, excluindo a aplicação do artigo
28º do C.P. não configura alteração do objecto do processo é inconstitucional na
medida em que violam os artigos 1º; 2º; 18º nº 2; 20º em especial nº 4; 32º;
202º nº 2 e 205º nº 1 da CRP” (fls. 5572);
ii) “Artigos 26º e 28º, a alínea c) do artigo 386º, o
artigo 377º, todos do C.P., quando interpretados no sentido de que o Arguido tem
qualidade de funcionário para efeitos de enquadramento da sua conduta no crime
de Participação Económica em Negócio, quando o Tribunal destruiu a co-autoria
daquele com o Liquidatário Judicial e consequentemente afastou a aplicabilidade
do artigo 28º do C.P., excluindo ainda a conduta dolosa dos Liquidatários, é
inconstitucional por violar os artigos 1º, 2º, 18º nº 2, 20º em especial nº 4;
32º nºs 1, 2, 4, 5; 202º nº 2 e 205º nº 1 da CRP” e ainda quanto decorre do
princípio da legalidade criminal (fls. 5573);
iii) “Artigos 26º e 28º, a alínea c) do artigo 386º, o
artigo 377º, todos do C.P., quando interpretados no sentido de que é possível
condenar o Arguido pelo crime p.p. no artigo 377º do C.P., sem que este seja
funcionário, sem que este assuma uma intervenção verdadeiramente activa para
efeitos da al c) do artigo 386º do C.P. é inconstitucional por violar os artigos
1º, 2º, 18º nº 2, 20º em especial nº 4; 29º nº 1, 32º;nºs 1, 2, 4, 5; 202º nº 2
e 205º nº 1 da CRP e ainda em quanto decorre do princípio da legalidade
criminal, o que se deixa desde já arguido” (fls. 5579);
iv) “A interpretação efectuada pelos Acórdãos recorridos
do Princípio da Imediação entendido no sentido de que o Julgador pode formar a
sua própria convicção na ausência de prova e desta feita suprir este ónus a
cargo da Acusação é inconstitucional por violadora dos preceitos constitucionais
consagrados nos artigos 1º, 2º, 18º nº 2, 20º em especial nº 4; 32º; 202º nº 2 e
205º nº 1 da CRP” (fls. 5574);
v) “A interpretação efectuada pelos Acórdãos recorridos
do Princípio da Imediação entendido no sentido de que o Julgador pode afirmar a
inexistência de validade e credibilidade do Contrato de Mútuo dos Autos, quando
nada foi investigado no sentido de apurar se o mesmo corresponde à verdade
material, é de igual modo violadora das garantias e direitos de defesa do
Arguido e do princípio do contraditório, mormente os nºs 1 e 5 do artº 32º da
CRP, o nº 7 do artº 327º, a alínea c) do nº 3 do artº 328º e o nº 2 do artº 121º
todos do CPP” (fls. 5575);
vi) “A interpretação efectuada pelos Acórdãos recorridos
do Princípio da Imediação entendido no sentido de que o Julgador pode proferir
decisão condenatória contra o ora Arguido sem que se verifique prova suficiente
de todos os elementos do crime e da responsabilidade criminal, quer os de ordem
objectiva, quer os de ordem subjectiva, é inconstitucional por violar os artigos
1º, 2º, 18º nº 2, 20º em especial nº 4; 29º nº 1, 32º;nºs 1, 2, 4, 5; 202º nº 2
e 205º nº 1 da CRP e por violar, de igual modo, o princípio da culpa” (fls.
5577).
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr.
fls. 5582), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não
vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito
legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os
pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº
2, da LTC.
Sempre que o Relator verifique que não foram preenchidos algum ou alguns
daqueles pressupostos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento,
conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Em primeiro lugar, importa notar que as interpretações normativas relativas à
condição de “funcionário” do recorrente [cfr. alíneas i), ii) e iii) supra
identificadas], para efeitos da sua condenação, nos autos recorridos, por crime
específico impróprio, entendidas como alegadamente inconstitucionais pelo
recorrente, não foram efectivamente aplicadas pela decisão recorrida.
Sucede que o recorrente, em sede de recurso de constitucionalidade, insiste numa
tese perfilhada por Faria Costa (através de parecer, junto aos autos), segundo a
qual a condição de “funcionário” atribuída a outros arguidos – in casu, por
força da sua qualidade de liquidatários judiciais – não poderia comunicar-se ao
ora recorrente – que não era liquidatário judicial, na medida em que aqueles
tinham sido absolvidos da acusação promovida pelo Ministério Público. Ora,
apesar de o recorrente insistir, nos presentes autos, nesta tese, a verdade é
que a decisão recorrida não adoptou a tese contrária.
Em boa verdade, o que aconteceu foi que a decisão recorrida sufragou
favoravelmente o entendimento de Faria Costa, considerando que, com efeito, a
qualidade de “funcionário” que recaía sobre os liquidatários judiciais não era
comunicável ao ora recorrente. Porém, a mesma decisão recorrida considerou que,
ainda assim, o recorrente detinha essa mesma qualidade de “funcionário”, não por
força dessa comunicabilidade, mas antes por via directa, na medida em que o
recorrente detinha uma agência de leilões, que colaborou directamente no
processo de negociação particular tendente à venda de diversos imóveis da massa
falida.
A fundamentação do acórdão recorrido é claríssima nesse ponto:
“Cremos que não merece contestação que só pode ser comparticipante quem, por
alguma forma participa na prática do crime. Não tendo ficado demonstrada a
participação dos liquidatários judiciais nos actos praticados, não pode, para
efeitos de comunicabilidade da qualidade de funcionário dar-se qualquer
relevância à indiciada mas não provada comparticipação destes.
Como conclui o Professor Faria Costa no parecer junto aos autos:
«(…)
O artigo 28º, n.º 1, primeira parte, importa como consequência
jurídica a punição de um “extraneus” ou “extranei” em situações de
comparticipação com “intraneus” ou “intranei”. Ora, uma vez que os liquidatários
judiciais (“intranei”) foram absolvidos da prática do crime de peculato inexiste
qualquer situação de comparticipação.
(…)»
Afastada a tese sustentada no acórdão recorrido, importa averiguar se o
Recorrente A., por força das funções que desempenhava, pode ser considerado
funcionário, para efeitos do art. 386º do Código Penal, como sustenta o
Ministério Público na sua resposta.
(…)
Transpondo o supra exposto para os autos, não restam dúvidas que quando o
Recorrente A., como máximo responsável da Agência de Leilões da Covilhã foi
incumbido, conjuntamente com o liquidatário judicial, no âmbito dos processos de
falência em causa, de negociações particulares e directas para venda dos imóveis
que faziam parte das massas falidas, assumiu a qualidade de funcionário para
efeitos jurídico-penais, nos termos do art. 386º nº 1 a. c) do Código Penal.
(…)
A qualidade de funcionário para efeitos jurídico-penais que o Recorrente A.
assume, comunica-se ao Recorrente Alberto Gomes que conhecia as funções que este
exercia, por força do disposto no nº 1 do art. 28º do Código Penal, já que tanto
o crime de peculato como o de participação económica em negócio prevista no nº 1
do art. 377º do Código Penal são crimes específicos impróprios e verificam-se as
condições de comunicabilidade.” (fls. 5462 a 5465).
Da fundamentação da decisão recorrida resulta, então, que: i) nunca se associou
a qualidade de “funcionário” dos liquidatários judiciais ao recorrente, antes se
tendo concluído que aquele assume, por via directa, a qualidade de
“funcionário”; ii) nunca se concluiu que o recorrente não fosse “funcionário” –
antes pelo contrário, conforme já supra demonstrado.
Consequentemente, por não terem sido efectivamente aplicadas pela decisão
recorrida, não pode este Tribunal conhecer da alegada inconstitucionalidade das
interpretações normativas melhor identificadas supra nas alíneas i), ii) e iii),
por força do disposto no artigo 79º-C da LTC.
4. Quanto à pretendida inconstitucionalidade de diversas interpretações
normativas do princípio da imediação [cfr. alíneas iv), v) e vi) supra
identificadas], importa, desde logo, frisar que o Tribunal Constitucional apenas
sindica da conformidade de normas jurídicas com a Constituição, conforme
determina o n.º 1 do artigo 277º da CRP. Ainda assim – e apesar de o recorrente
não o indicar expressamente – é possível concluir-se que o princípio da
imediação, enquanto comando orientador que exige o contacto imediato do julgador
com a prova em processo penal, mediante a sua exclusiva produção em audiência de
julgamento, encontra-se consagrado no n.º 1 do artigo 355º do CPP.
Como tal, deve entender-se como arguida de inconstitucional a norma extraída do
n.º 1 do artigo 355º, do CPP, em qualquer das interpretações normativas que o
recorrente elegeu como objecto do presente recurso [cfr. alíneas iv), v) e vi)
supra identificadas].
Porém, importa notar que este Tribunal apenas dispõe de poderes para controlar a
constitucionalidade de normas jurídicas (ou interpretações normativas) que
tenham sido efectivamente aplicadas pelas decisões recorridas, conforme decorre
do artigo 79º-C da LTC. Ora, compulsados os autos, verifica-se que a mesma: i)
nem concluiu que era possível condenar o recorrente, por força da formação de
uma “convicção na ausência de prova”; ii) nem tão pouco considerou “a
inexistência de validade e credibilidade do Contrato de Mútuo dos Autos, quando
nada foi investigado no sentido de apurar se o mesmo corresponde à verdade
material”; iii) nem muito menos julgou bastante condenar o recorrente “sem que
se verifique prova suficiente de todos os elementos do crime e da
responsabilidade criminal, quer os de ordem objectiva, quer os de ordem
subjectiva”.
Pelo contrário, a decisão recorrida – neste caso, o acórdão de fundo, proferido
em 28 de Janeiro de 2009 – considerou suficientemente provados os factos que
eram imputados ao recorrente pela Acusação. Vejam-se os seguintes extractos:
“Como já se afirmou repetida e explicadamente não houve ausência de prova e,
consequentemente, no sentido que o Recorrente parece querer emprestar ao
princípio da imediação, não se observa a violação deste princípio, já que a
convicção do julgador se formou tendo em atenção a sua própria análise da prova
documental e testemunhal com que se deparou directamente. (…)
Porém, em audiência, os arguidos e as testemunhas pertinentes foram confrontadas
com o teor do documento em causa e com as perplexidades que o mesmo suscitava,
na confluência com outros elementos probatórios, foram permitidas amplas
instâncias por parte da defesa e realizadas todas as diligências de prova
consideradas pertinentes. O Recorrente não suscitou em audiência a necessidade
de realização de qualquer outra diligência de prova que considerasse fundamental
para a descoberta da verdade, nada tendo sido indeferido. Aparece, assim,
desprovida de sentido a afirmação de que nada foi investigado no sentido de
apurar se o documento que pretendia titular a existência de um mútuo
correspondia à realidade.” (fls. 5458 e 5449).
Em suma, conclui-se que a decisão recorrida não aplicou qualquer das
interpretações reputadas de inconstitucionais, relativamente à norma extraída do
n.º 1 do artigo 355º, do CPP, que consagra o princípio da imediação da prova em
processo penal, pelo que mais não resta a este Tribunal que decidir pela
impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso, também quanto a esta
parte, conforme imposto pelo artigo 79º-C da LTC.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se não conhecer do objecto do presente
recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos
termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.»
2. Inconformado com esta decisão, veio o recorrente apresentar reclamação, que
se pode sintetizar nos seguintes termos:
«(…)
2. Não pode o ora Reclamante/Arguido concordar com a presente decisão, na medida
em que, este não é, como erradamente se refere no citado Despacho, o objecto do
Recurso dirigido ao Tribunal Constitucional.
3. O objecto do desse Recurso assenta na inconstitucionalidade normativa
constante na decisão recorrida, arguida em sede própria, com os seguintes
fundamentos:
a) Que a interpretação efectuada pelo Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação
de Coimbra sobre o Principio da Imediação ao interpretá-lo no sentido de que o
Julgador pode proferir decisão condenatória contra o ora Arguido sem que se
verifique a prova suficiente de todos os elementos do crime e da
responsabilidade criminal, quer os de ordem objectiva, quer os de ordem
subjectiva, é Inconstitucional por violadora dos artigos 1°, 2°, 18° nº 2, 20º
em especial nº 4, 29° nº 1, 32° nºs 1,2,4,5; 202° nº 2 e 205°, nº 1 da CRP e por
violadora, de igual modo, do principio da culpa.
b) Que a interpretação efectuada pelo Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação
de Coimbra sobre os artigos 26° e 28°, alínea c) do artigo 386°, o artigo 377º,
todos do C.P., quando interpretados no sentido de que é possível condenar o
Arguido pelo crime p.p. no artigo 377° do C.P., sem que este seja funcionário,
sem que este assuma uma intervenção verdadeiramente activa para efeitos da al.
c) do artigo 386° do C.P, sem que subsista a co-autoria com o Liquidatário
Judicial por via da regra consagrada no artigo 28° do C.P., é inconstitucional
por violar os artigos 1°, 2°, 18º nº 2, 20° em especial nº 4, 29° nº 1, 32° nºs
1,2,4,5, 202° nº 2 e 205°, nº 1 da CRP e ainda em tudo quanto decorre do
princípio da legalidade criminal.
4. Pelo que, o objecto do presente Recurso não se reconduz, única e
exclusivamente à apreciação da conformidade constitucional dos artigos 26° e
28°, a alínea c) do artigo 386°, o artigo 377°, todos do C.P., quando
interpretados no sentido de que o Arguido têm qualidade de funcionário para
efeitos de enquadramento da sua conduta no crime de Participação Económica em
Negocio, por via da comunicabilidade operada pela citada norma.
5. É, de igual modo, objecto do aludido Recurso, a apreciação das
inconstitucionalidades normativas na interpretação e aplicação que a decisão
recorrida fez às normas legais supra indicadas e em especial à norma contida no
artigo 386° do C.P., em confronto com o Parecer junto aos Autos da autoria do
Professor Doutor Faria Costa, e que se reconduz ao preenchimento objectivo e
subjectivo das previsões normativas contidas nas diversas alíneas do artigo 386°
do C.P. e em especial ao conceito alargado de funcionário.
6. A decisão recorrida interpreta e aplica a alínea c) do artigo 386° do C.P. no
sentido de que é possível condenar o Reclamante/Arguido por um crime de
participação económica em negócio.
7. Esta interpretação efectuada pela decisão recorrida redunda em norma
materialmente inconstitucional, porquanto a mesma não permite atribuir a
qualidade de funcionário ao Reclamante/Arguido por via directa assente no facto
de este deter uma Agência de Leilões que colaborou directamente no processo de
negociação particular tendente á venda dos imóveis.
8. Desde logo porque o agente do tipo legal do crime de Peculato e/ou
Participação Económica em Negócio, para efeitos de enquadramento nas duas
primeiras alíneas do artigo 386° do C.P., é um funcionário, mas um funcionário
que, em razão das suas funções, tenha a posse do bem objecto do crime.
9. Ora, o Reclamante/Arguido A., não detém esta qualificação pois não é
funcionário, não foi contratado pelo Tribunal, não é um oficial de justiça, não
faz parte dos quadros da Administração da Justiça, nem por qualquer deles foi
contratado ou exerceu quaisquer funções.
10. E não pode ser considerado como funcionário, para efeitos do disposto no nº
1 alínea c) do artigo 386° da CP., uma vez que o sentido da norma permite
integrar, neste conceito alargado, quem colabore pontualmente com a função
jurisdicional, sem deter qualquer relação orgânica com a Administração da
Justiça, mas desde que a intervenção do agente seja uma intervenção activa e não
meramente passiva.
11. Ora, a Agência de Leilões no âmbito de um processo de Insolvência, não tem
uma intervenção activa uma vez que limita-se a cumprir o que lhe for indicado
pelo Liquidatário Judicial, mediante comando emitido pela Comissão de Credores.
12. Não é a Agência de Leilões quem determina a modalidade da venda, mas a
Comissão de Credores, não é a Leiloeira quem aceita as propostas mediante carta
fechada, mas a Comissão de Credores.
13. Consequentemente, não estão reunidos os requisitos objectivos exigidos pela
norma contida na alínea c) do artigo 386° do C.P., que permita interpretá-la em
conformidade com a CRP no sentido de atribuir a qualidade de funcionário ao
Reclamante/Arguido através do conceito alargado de ‘funcionário” contido na
citada norma, nem essa qualidade pode advir das alíneas a) e b) do mesmo
preceito legal porquanto estas dirigem-se a quem é agente da administração”.
14. O Parecer do Professor Doutor Faria e Costa é claro quando afirma que deve
existir alguma manifestação de cuidado na interpretação e aplicação do conceito
alargado de funcionário para efeitos penais e que o mesmo só deve valer para os
para os crimes cometidos no exercício de funções públicas. Fora «do âmbito deste
capítulo, todos os crimes que exijam a qualidade de funcionário para o agente
activo (...) referem-se ao conceito tradicional e específico do Direito Público,
de Agente da Administração (ou então, no sentido da CRP, a funcionários e
agentes do Estado e das demais entidades públicas)»”
15. A aplicabilidade da qualidade de funcionário ao Reclamante/Arguido por via
directa só pode ser aferida perante a interpretação que a decisão recorrida faz
do artigo 386° do C.P., a qual como se afere não é conforme à CRP, porquanto
essa qualidade não lhe advém por nenhuma das alíneas do citado preceito legal.
16. Como se demonstra, o objecto do presente Recurso não se reconduz à mera
apreciação das interpretações feitas pela decisão recorrida da qualidade de
funcionário ao Reclamante/Arguido mas de igual modo à interpretação que a
decisão recorrida fez das citadas normas no sentido de ter concluído que o mesmo
assume, por via directa, essa qualidade.
17. Em causa está, assim, a apreciação da conformidade constitucional da
interpretação dada pelo Acórdão recorrido ao Artigo 386° do C.P.
18. E, são as interpretações que o Acórdão recorrido faz das diversas alíneas do
artigo 386° do C.P. que, em parte, configuram o objecto do presente Recurso,
porquanto, no entender do Reclamante/Recorrente, as mesmas são desconformes com
a CRP.
19. Por fim, importa precisar, contrariando o douto Despacho da Exma. Sra.
Juíza. Conselheira Relatora, que a decisão recorrida aplicou, efectivamente, as
normas cuja apreciação da sua conformidade constitucional se suscita, e aplicou,
efectivamente, a norma contida no Artigo 386° do C.P., cuja conformidade
constitucional se pretende ver apreciada.
20. Já que o Arguido/Reclamante não detêm a qualidade de funcionário para
efeitos das alíneas a) e b) do Artigo 386° do C.P., na interpretação dada pela
decisão recorrida, nem a detêm por via do conceito alargado de funcionário
contido na alínea c) do mesmo artigo, na interpretação dada pela decisão
recorrida.
21. E incontestável é que não detém (o Reclamante/Recorrente) a qualidade de
funcionário por via da comunicabilidade contida no Artigo 28° do C.P.
22. Para além da apreciação da conformidade constitucional se pretende suscitar
perante o Tribunal Constitucional nas interpretações que a decisão recorrida faz
das supra citadas normas, visa o objecto do presente Recurso, ainda, a
apreciação dos artigos 97°, 277°, 374°, 379°, 340°, 358°,359°, 368°, 425° todos
do CPP e os artigos 26° e 28° do Código Penal, quando interpretados no sentido
de que a alteração não substancial da qual resultou a alteração dos factos
contidos nos pontos 5.3, 5.7. e 7 da Acusação com a consequente destruição da
co-autoria, estabelecida na” história descrita na Acusação, entre Liquidatário e
o ora Arguido não configura alteração do objecto do processo.
23. Porquanto se entende que a mesma é inconstitucional na medida em que viola
os artigos 1°; 2°; 18° nº 2; 20° em especial nº 4; 32°; 202° nº 2 e 205° nº 1 da
CRP.
24. Nesta sede, a apreciação da conformidade constitucional das normas citadas,
na interpretação contida na decisão recorrida, não se reconduz à questão da
comunicabilidade ou não da qualidade de funcionário, mas à interpretação que foi
dada às ditas normas para considerar que a expurgação da Acusação do acordo
firmado entre os Liquidatários Judiciais e o Arguido A., o qual, na óptica da
Acusação, sustentava o móbil do crime praticado por todos os Arguidos, inclusivé
os Liquidatários e que, assim, permitia enquadrar as condutas dos Arguido e em
particular, do Arguido A. (que não era funcionário judicial) nos tipos
objectivos e subjectivos do crime de Peculato e Participação Económica em
Negócio, reconduz-se a uma “alteração não substancial”.
25. Quando na verdade estamos perante uma verdadeira alteração do objecto do
processo, com repercussões gravíssimas para a decisão final e para os direitos
de defesa do Arguido.
26. Do exposto resulta que o objecto do presente Recurso é mais amplo e mais
complexo do que se afigura no Despacho proferido pela Exma. Sra. Juíza.
Conselheira Relatora, pelo que o mesmo deve ser substituído por outro que admita
o Recurso.» (fls. 5620 a 5625)
3. O Ministério Público, notificado da referida reclamação, veio responder-lhe
nos termos seguintes:
«1º
A Decisão Sumária de fls. 5599 a 5603, entendeu não conhecer do recurso quanto
às diversas questões levantadas pelo recorrente, que a Exma. Conselheira
Relatora concentrou em duas: uma respeitante à condição de “funcionário” do
recorrente, para efeitos penais, outra relacionada com o princípio de imediação
2°
Quanto à condição de “funcionário”, o que se disse foi que o tribunal tinha
entendido que o recorrente fora considerado como tal, não por essa qualidade lhe
ter sido comunicado pelos liquidatários judiciais (não incriminados), mas sim,
por via directa, atendendo ás suas funções enquanto máximo responsável da
Agência de Leilões.
3º
Nesta parte, o recorrente, na reclamação, vem sustentar que nessa qualidade de
responsável pela Agência e atendendo aos factos provados, não deveria ser
considerado “funcionário”.
4º
Ora, esta é uma questão diferente da suscitada pelo recorrente e, além disso,
não tem qualquer carácter normativo, antes se situando ao nível da prova e da
sua valoração, competência que, obviamente, não está atribuída ao Tribunal
Constitucional.
5º
Quanto à parte relacionada com a violação do princípio da imediação, o
reclamante nada diz.
6°
No ponto 22 da reclamação levanta, no entanto, a seguinte questão: diversos
preceitos do CPP “quando interpretados no sentido de que a alteração não
substancial da qual resultou a alteração dos factos contidos nos pontos 5.3, 5.7
e 7 da acusação com a consequente destruição da co-autoria estabelecida na
história da Acusação, entre Liquidatário e o ora Arguido não configura
alterações do objecto do processo”.
7°
Ora, entendemos que não é sequer necessário averiguar se estamos ou não perante
uma questão de inconstitucionalidade normativa (que não estamos), ou se, sendo
esta uma questão nova, o recorrente teve ou não oportunidade de a suscitar
anteriormente.
8°
Na verdade, parece-nos evidente, que a reclamação de uma Decisão Sumária, não é
a forma nem o momento processual próprio para suscitar novas questões de
constitucionalidade.
9º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.» (fls. 5632 a 5634)
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Os argumentos convocados pela reclamante não logram abalar, de modo algum, o
sentido da decisão ora reclamada.
Em primeiro lugar, importa recordar que o Tribunal Constitucional apenas pode
sindicar a constitucionalidade das normas ou interpretações normativas.
Ora, é, desde logo, patente que nenhum dos “objectos”, cuja constitucionalidade
o recorrente pretende ver apreciada, é efectivamente norma ou interpretação
normativa. Tanto bastaria para que o recurso não pudesse ser conhecido.
Acresce que apenas pode sindicar as normas efectivamente aplicadas pelos
tribunais recorridos – e nos exactos sentido e extensão em que o foram –,
conforme lhe é expressamente imposto pelo artigo 79º-C, da LTC. Como tal, as
interpretações normativas aplicadas pelas decisões recorridas cristalizam e
formatam o objecto de cada recurso de constitucionalidade.
Ora, nos presentes autos, o tribunal recorrido não aplicou efectivamente a
interpretação reputada de inconstitucional pelo recorrente (ora reclamante),
tendo antes considerado que este assumiu a condição de “funcionário”, por via
directa, para efeitos do preenchimento dos elementos típicos do crime de
participação económica em negócio. Aliás, permitimo-nos reiterar o já afirmado
pela decisão sumária:
“Da fundamentação da decisão recorrida resulta, então, que: i) nunca
se associou a qualidade de “funcionário” dos liquidatários judiciais ao
recorrente, antes se tendo concluído que aquele assume, por via directa, a
qualidade de “funcionário”; ii) nunca se concluiu que o recorrente não fosse
“funcionário” – antes pelo contrário, conforme já supra demonstrado.”
O ora reclamante é livre de discordar da qualificação jurídica, decidida pelo
tribunal recorrido, mas daí não decorre que possa pretender que o Tribunal
Constitucional aprecie uma interpretação que não foi efectivamente aplicada pela
decisão recorrida, uma vez que, por força do artigo 79º-C, da LTC, este Tribunal
apenas pode conhecer de interpretações normativas efectivamente aplicadas pelos
tribunais recorridos. Não tendo as interpretações identificadas no requerimento
de interposição de recurso sido efectivamente aplicadas pelo tribunal recorrido,
não sobrevivem quaisquer razões para reformulação da decisão sumária ora
reclamada.
5. Em segundo lugar, deve notar-se que quanto à parte da decisão sumária
relativa ao princípio da imediação, o reclamante nada diz, vindo, no entanto,
colocar o Tribunal perante uma questão nova de inconstitucionalidade.
Ora, o objecto do recurso de inconstitucionalidade define-se no requerimento
inicial, não sendo, de todo, a reclamação da decisão sumária a forma nem o
momento processual adequado para o fazer.
Acresce ainda que o modo como o recorrente coloca a questão de
constitucionalidade identificada na alínea i) do § 1. da decisão sumária ora
reclamada (relativa à alegada inconstitucionalidade dos artigos 97º, 277º, 374º,
379º, 340º, 358º, 359º, 368º, 425º, todos do CPP, e os artigos 26º e 28º do
Código Penal) a afasta de qualquer dimensão normativa cuja constitucionalidade
pudesse ser apreciada por este Tribunal, dado que a decisão recorrida nem sequer
admitiu que a alteração dos factos fosse não substancial, antes afirmando não se
ter verificado qualquer alteração de factos. Em boa verdade, o recorrente
limitou-se a demonstrar a sua discordância quanto à subsunção de factos à
qualificação jurídica de “alteração do objecto do processo”, levada a cabo pelo
tribunal recorrido. O que não lhe abre via de recurso para o Tribunal.
Como tal, não se verifica qualquer fundamento para colocar em crise a decisão
sumária ora reclamada.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 16 de Novembro de 2009
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão