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Processo n.º 1005/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do
Castelo, em que é recorrente o Ministério Público e recorridos A., Lda., e B: e
Outro, foi interposto recurso obrigatório, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), da sentença proferida por
aquele Tribunal, que recusou a aplicação da norma do artigo 14.º do Regime Geral
das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, com as
alterações posteriores, adiante designado RGIT).
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional
apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«1. A norma que se extrai do artigo 14.° do RGIT, em conjugação com os artigos
50.º e 51.º do Código Penal, na redacção dada pela Lei 59/2007, de 4 de
Setembro, interpretada no sentido de que a suspensão da execução da pena de
prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao
limite de duração da pena de prisão concretamente determinada, de prestação
tributária e acréscimos legais, não é inconstitucional.
2. Termos em que, procedendo o presente recurso, não deverá ser
confirmado o juízo de inconstitucionalidade da decisão recorrida.»
3. Os recorridos não apresentaram contra-alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II − Fundamentação
4. O artigo 14.º do RGIT dispõe o seguinte:
«Artigo 14.º
Suspensão da execução da pena de prisão
1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao
pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à
condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos
benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de
quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 - Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal
pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas
sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.»
A sentença recorrida − que condenou os arguidos B. e C. e a sociedade arguida
A., Lda., pelos crimes de abuso de confiança fiscal, aí identificados, recusou a
aplicação daquela norma ao caso concreto e, em consequência, suspendeu a
execução das penas de prisão de 18 meses e de 15 meses, aplicadas,
respectivamente, aos arguidos B. e C., «sem subordinação a qualquer dever ou
regra de conduta postulados nos artigos 51.º e 52.º do CP, por desnecessários ou
inadequados ao caso concreto, e sem subordinação às regras do art. 14.º do
RGIT».
A fundamentação da sentença recorrida é, na parte relevante, a seguinte:
«[…] O art. 14.º do RGIT determina que a pena de prisão suspensa na execução o é
sempre sob condição de pagamento, em prazo a fixar até 5 anos, da prestação
tributária e acréscimos legais (reposição da verdade fiscal).
Impõe, pois, regime mais restrito, ainda que não inconciliável com o demais, que
o art. 51.º do CP.
Sucede que, com a entrada da LN (alterações ao CP em 2007 − L 59/2007 de 4SET)
se alargou a possibilidade de suspensão até ao limite de pena de 5 anos, mas por
outro lado se restringiu o período de suspensão de pena, a qual só pode ser
suspensa pelo período de tempo da pena fixada, e não por superior, a não ser que
a pena seja inferior a 1 ano, caso em que a suspensão é por esse tempo.
Deste modo, por um lado a lei é mais benéfica aos arguidos, dado que alarga o
campo de possibilidades de suspensão da execução da pena de prisão, mas por
outro lado é mais restrita pois impossibilita a suspensão por período superior
ao da pena, o que Conjugado com a situação de suspensão mediante condição de
pagamento pode ser, e é, altamente agravante para os arguidos.
É este, pois, o problema com que nos deparamos.
A questão, em paralelismo, mas com um brilhantismo explicativo quanto às
incompatibilidades entre o presente CP e o art. 14.° do RGIT está contida no Ac.
do TRP de 7N0V2007 (in www.dgsi/pt/trp (busca por termos: infracção fiscal;
aplicação de lei no tempo; suspensão da execução da pena), onde se chega à
conclusão da impossibilidade de aplicação conjunta.
Nos termos do art. 204.° da CRP vigente — Apreciação da inconstitucionalidade —
“nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que
infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.
Ora, aplicar o art. 14.º do RGIT, impondo como condição que os arguidos procedam
ao pagamento do valor retido a título de IVA e de IRS, acrescido dos legais
acréscimos, nos prazos respectivos de 15 e de 18 meses (o que por si mesmo já
criava dif1culdades), não mais é do que violar frontalmente a regra do art.
51.º, n.° 2 do CP, na parte que tal dever não signifique um encargo que os
arguidos, face às suas individuais capacidades económicas, não possam suportar,
princípio este que não mais é do que o postular do princípio constitucional da
necessidade e da proporcionalidade das penas.
Tal princípio radica na asserção de que a legitimidade das penas criminais
depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito,
para protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados e o seu valor
assenta na verificação de que qualquer criminalização e punição determina a
restrição de direitos, liberdades e garantias das pessoas (maxime, do direito à
liberdade).
Ora, tal restrição só pode justificar-se, nos termos do n.° 2 do art. 18.° da
CRP (onde se prescreve o princípio da proporcionalidade na sua vertente tríptica
dos sub-princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade stricto
sensu), quando se mostre necessária a salvaguarda de outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos, ou seja, está o julgador impedido de
aplicar sanções das quais resultem consequências gravosas desnecessárias para o
condenado, devendo as restrições aos direitos limitarem-se ao estritamente
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos.
Não será o caso dos autos, pois sempre pode o Estado, através dos meios civis,
tentar obter o pagamento das quantias em causa.
Por outro lado, não se mostra adequado fixar um qualquer montante, ainda que
inferior ao devido, pois sempre o mesmo, por pequeno que fosse seria oneroso e
desnecessário. É que, sendo certo que não se pode negar que as motivações
essencialmente económicas que estão por detrás da prática destas infracções,
aliadas ao tipo de agentes que as praticam e à natureza das próprias sanções e
do sacrifício que visam impor, não pode tal vir a significar um violar de
interesses de defesa de direitos fundamentais, sob pena de o Estado se revelar
fortemente desrespeitador do citado princípio de proporcionalidade.
Assim sendo, porque aplicar o art. 14.º do RGIT no caso concreto, conjugando-o
com as regras hodiernas do art. 50.° do CP e atendendo á regra do art. 51.°, n.°
2 do CP, viola a CRP por via do desrespeito do princípio da proporcionalidade
das penas, o Tribunal, nos termos do art. 205.° da CRP, recusa a aplicação da
norma.
Como tal, suspende a execução das penas de 15 e 18 meses aplicadas aos arguidos,
pelo legal período de 15 e 18 meses, sem subordinação a qualquer dever ou regra
de conduta postulados nos art.s 51.º e 52.º do CP, por desnecessários ou
inadequados ao caso concreto, e sem subordinação às regras do art. 14.º do RGIT,
pelos motivos supra.»
5. Antes da entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que alterou o
Código Penal, o Tribunal Constitucional pronunciou-se várias vezes no sentido da
não inconstitucionalidade da norma do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, que subordina
a suspensão da execução da pena à condição do pagamento futuro da prestação
tributária em dívida − cfr., nomeadamente, os Acórdãos n.ºs 335/03, 500/05,
587/06, 29/07 e 337/07.
A questão que se coloca no presente recurso é a de saber se esta jurisprudência
deve ser mantida face às alterações introduzidas, em 2007, no regime de
suspensão da execução da pena de prisão, regulado no artigo 50.º Código Penal.
Na sentença recorrida entendeu-se que a nova redacção do artigo 50.º do Código
Penal se, por um lado, alargou a possibilidade de suspensão até ao limite de
pena de 5 anos, por outro lado, restringiu o período de suspensão de pena, que
passou a só poder ser suspensa pelo período de tempo da pena fixada na sentença
(com o limite mínimo de um ano). No caso em apreço, o tribunal concluiu que a
impossibilidade de determinar um período de suspensão por período superior ao da
pena fixada, conjugado com a situação de suspensão mediante condição de
pagamento, é “altamente agravante” para os arguidos”. E, em consequência,
considerou que a aplicação, ao caso concreto, do artigo 14.º do RGIT, atendendo
às actuais regras do artigo 50.º do CP, não só viola o artigo 51.º, n.º 2, do CP
(que estabelece que os deveres impostos não podem em caso algum representar para
o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de exigir), como
viola o princípio constitucional da necessidade e proporcionalidade das penas.
A nova redacção do artigo 50.º do CP, tal como foi interpretada pelo tribunal
recorrido, levaria a um tendencial encurtamento do período de suspensão, sem que
ao juiz fosse dada a possibilidade de fixar um período superior, mesmo quando
antecipasse − como parece ser o caso − a certeza da impossibilidade do
cumprimento da condição de pagamento (da prestação tributária) no decurso
daquele tempo de suspensão.
Sobre esta questão, à luz da nova redacção do artigo 50.º do CP, pronunciou-se a
3.ª Secção deste Tribunal Constitucional, em Acórdão n.º 327/08, que julgou não
inconstitucional a norma do artigo 14.º do RGIT, quando interpretada no sentido
de que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada
ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de duração da pena de prisão
concretamente determinada, a contar do trânsito em julgado da decisão, da
prestação tributária e acréscimos legais, com fundamento, em síntese, no
seguinte:
«Suposto que corresponda à exacta interpretação da lei e apesar deste efeito
perverso, esta nova configuração do regime de suspensão da execução da pena de
prisão por crimes fiscais não é de molde a justificar a revisão do entendimento
consolidado do Tribunal na matéria.
Continuam a ser válidas as três razões pelas quais nesta jurisprudência se
afasta a objecção de que se está a impor ao arguido um dever que se sabe de
cumprimento impossível e, com isso, a violar os princípios da proporcionalidade
e da culpa: (i) o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente
a suspensão; (ii) sempre pode haver regresso de melhor fortuna; (iii) e a
revogação não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no
incumprimento da condição.
No limite, admitindo que a força convincente das outras razões tenha diminuído
na medida da perda do poder modelador do prazo por parte do tribunal, continua a
verificar-se a razão que essa jurisprudência enuncia como decisiva para não
julgar violados os princípios da culpa e da proporcionalidade e que se retira do
artigo 55.º do Código Penal: “o não cumprimento não culposo da obrigação não
determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente decorre
do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA,
bem como do n.º 2 do artigo 14.º do RGIT, a revogação é sempre uma
possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado”».
Partindo do mesmo pressuposto de que partiu este acórdão do Tribunal
Constitucional, ou seja, o de que a interpretação feita pelo tribunal recorrido
corresponde à exacta interpretação da lei, é de reiterar, no caso em apreço, a
jurisprudência nele fixada, fundamentalmente, pela última razão apontada. De
facto, a revogação da suspensão da pena de prisão não é automática, mas antes
está dependente de avaliação judicial, nos termos do disposto no artigo 14.º,
n.º 2, alínea c), do RGIT, e nos artigos 55.º e 56.º do Código Penal.
Conclui-se, assim, pela improcedência do recurso.
III − Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 14.° do RGIT, em
conjugação com os artigos 50.º e 51.º do Código Penal, na redacção dada pela Lei
n.º 59/2007, de 4 de Setembro, interpretada no sentido de que a suspensão da
execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo
a fixar até ao limite de duração da pena de prisão concretamente determinada, de
prestação tributária e acréscimos legais; e, em consequência
b) Julgar o recuso procedente, devendo a decisão recorrida ser reformulada
em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 27 de Outubro de 2009
Joaquim de Sousa Ribeiro
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos