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Processo n.º 981/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Em 21 de Janeiro de 2005, A. L.da e B. instauraram acção contra C., SA, no
Tribunal Judicial de Penafiel, peticionando a condenação da Ré no pagamento de
indemnizações pelos danos provocados pelo acidente ocorrido na auto‑estrada A4,
pelas 3h20 do dia 24 de Junho de 2003, quando o veículo automóvel, propriedade
da Autora e conduzido pelo Autor embateu num canídeo de grande porte que
atravessava essa via concessionada à Ré.
Por sentença de 20 de Abril de 2007 a acção foi julgada parcialmente
procedente e a Ré C. foi condenada:
- a pagar à Autora as quantias de € 12 500,00 a título de indemnização por
perda do veículo, de € 15 050,00 a título de perda de rendimentos, e de €
1140,00, acrescida do que se vier a apurar desde Janeiro de 2005, à razão de €
60,00 por mês, até ao trânsito em julgado da decisão, pelas despesas decorrentes
da recolha do veículo, quantias acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde
a citação até integral pagamento;
- e a pagar ao Autor a quantia de € 2 500,00, por danos não patrimoniais,
acrescida de juros de mora, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.
A Ré C. e a chamada Companhia de Seguros D., SA, recorreram desta sentença para
o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 11 de Março de 2008,
concedeu provimento à apelação, revogou a sentença recorrida e absolveu a Ré do
pedido.
Os Autores interpuseram recurso de revista deste acórdão para o Supremo Tribunal
de Justiça, que, por acórdão de 23 de Setembro de 2008, lhe concedeu
provimento, revogando o acórdão recorrido e “ficando a prevalecer a condenação
da C., nos precisos termos decididos na sentença da 1.ª instância”.
Notificada deste acórdão, veio a Ré C. arguir a sua nulidade, o que foi
indeferido pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Novembro de
2008.
Notificada deste último acórdão veio a ré C. interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), referindo no respectivo
requerimento de interposição:
“2. Normas cuja inconstitucionalidade se pretende seja apreciada: as
que se obtêm pela interpretação do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de
Julho (define direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como
auto‑estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários
complementares) e, ainda, as constantes dos artigos 4.º a 12.º da mesma Lei, na
medida em que, com as normas directamente visadas, tenham relações sistemáticas
de implicação.
3. Preceitos constitucionais violados: consideram‑se violados os
artigos 2.º (Estado de direito democrático), 13.º, n.º 1 (Princípio da
igualdade), 20.º, n.º 4 (Acesso ao direito e tutela efectiva), e 62.º, n.º 1
(Direito de propriedade privada), todos da Constituição. Mais precisamente:
– o artigo 2.º, na parte em que, fixando a República Portuguesa como
um Estado de direito baseado na separação de poderes, não permite que o
Parlamento, por via de leis formais, interfira na livre negociação de
contratos e em processos pendentes perante os Tribunais;
– o artigo 13.°, n.º 1, na medida em que, excluindo o arbítrio, os
privilégios e os encargos diferenciadores injustificados, afasta quer as leis
ad hominem, quer as regras contrárias ao sistema e quer, finalmente, os regimes
de desigualdade com base em meras aparências de tipo populista;
– o artigo 62.°, n.º 1, na área em que protege os direitos de crédito
legitimamente constituídos («propriedade» em sentido amplo) e em que veda a
imputação, ex novo e sem compensação justa, aos titulares de direitos
patrimoniais privados, de riscos que, a ele, não eram inerentes, aquando da sua
aquisição.”.
No Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações, que terminam com
a formulação das seguintes conclusões:
“I – Quanto à matéria em discussão:
1.ª – No dia 24 de Junho de 2003, o veículo XR, na sequência de um
embate com um cão, despistou‑se, na A4, tendo sido, depois, abalroado por outro
veículo; houve danos materiais, sendo demandada a concessionária C..
2.ª – Verificou‑se que a auto‑estrada estava devidamente vedada e que
a C. fizera as patrulhas regulamentares, nada tendo detectado de anormal.
3.ª – A 1.ª Instância entendeu que a C., enquanto ré, não ilidira uma
presunção de culpa que, sobre ela, impenderia, condenando‑a; a Relação do Porto
julgou que, não havendo qualquer presunção, os autores não teriam feito prova da
culpa da ré, absolvendo‑a.
4.ª – O Supremo Tribunal de Justiça, fazendo aplicação retroactiva da
Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, entretanto publicada, entendeu que a discussão
perdera o interesse, condenando a C..
II – Quanto à Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho:
5.ª – A C. é urna sociedade concessionária da construção, manutenção
e exploração de auto‑estradas, caindo nos deveres previstos nas bases anexas ao
Decreto‑Lei n.º 247‑C/2008, de 30 de Dezembro.
6.ª – Na sequência de obras de alargamento na A1 (auto‑estrada do
Norte), a Assembleia da República aprovou a Resolução n.º 14/2004, de 31 de
Janeiro (DR, I Série‑A, n.º 137, de 31 de Janeiro de 2004, p. 550), na qual pede
ao Governo a alteração das bases da concessão, de modo a suspender as portagens
nas vias em obras e a melhor informar os utentes da sua ocorrência.
7.ª – Seguiram‑se negociações entre o Governo e as concessionárias:
inconclusivas, por falta de disponibilidades orçamentais.
8.ª – Posto o que foram, no Parlamento, apresentados dois Projectos
de Lei: Projectos n.º 145/X (PCP) e n.º 164/X (BE); veio a ser aprovado o
primeiro (Decreto n.º 122/X), o qual deu azo à Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho,
destinada, no fundo, a conseguir, sem contrapartidas, o que não fora possível
pela negociação.
9.ª – A Lei n.º 24/2007 veio, no essencial, fixar um esquema mais
denso e mais gravoso, para as concessionárias, na hipótese de obras nas
auto‑estradas: sem compensação.
10.ª – Além disso, adoptou um sistema que pode conduzir, na hipótese
de obras, à suspensão das taxas e ao afastamento do princípio do equilíbrio
financeiro: também sem compensação.
11.ª – Finalmente e perante um certo tipo de acidentes (entre os quais
os derivados do atravessamento de animais) estabeleceu uma denominada
«presunção de incumprimento», contra as concessionárias: igualmente sem
compensação.
III – Quanto aos juízos de inconstitucionalidade:
A – Primeiro fundamento: violação dos princípios do Estado de direito
democrático e da separação de poderes (artigo 2.º).
12.ª – A Lei n.º 24/2007 vem invadir os poderes nucleares do Governo
enquanto órgão superior da administração pública – artigo 182.º – incumbido da
direcção da administração directa do Estado – artigo 199.º, alínea d).
13.ª – Com efeito, cabe apenas ao Governo negociar os contratos
públicos de concessão, tanto mais que apenas ele tem os meios técnicos e
humanos necessários para o efeito; nesse sentido, de resto, o próprio
Parlamento adoptou a já referida Resolução n.º 14/2004.
14.ª – A Lei n.º 24/2007 traduz, logo por aí, uma intromissão do
Parlamento na área própria do Governo, pondo em crise o princípio da separação
dos poderes e violando o artigo 2.º da Constituição.
15.ª – Além disso, a Lei n.º 24/2007, designadamente através do seu
artigo 12.º, n.º 1, veio interferir na composição de litígios já em curso,
surgidos entre particulares.
16.ª – Tais litígios só podem ser dirimidos pelos tribunais (artigo
202.º, n.º 2), sob pena de se pôr também em causa o direito de acesso aos
mesmos, para defesa dos direitos (artigo 20.º, n.º 1).
17.ª – A Lei n.º 24/2007 equivale a uma intromissão do Parlamento no
núcleo do poder judicial; põe em causa, num ponto estruturante do nosso
ordenamento, o princípio da separação de poderes, violando, também por aqui, o
artigo 2.º da Constituição.
18.ª – Também o principio da protecção da confiança, num outro
aspecto, seria violado por aquela Lei, enquanto põe em causa o particular mundo
das empresas que planeiam a longo prazo com o maior rigor os proveitos que vão
obter e os custos em que vão incorrer.
B – Segundo fundamento: violação do princípio da igualdade (artigo
13.º).
19.ª – O Direito assenta no postulado básico de tratar o igual de modo
igual e o diferente de modo diferente, de acordo com a medida da diferença: a
essa luz, as soluções desarmónicas são, já por si, contrárias ao princípio da
igualdade.
20.ª – O Direito civil, na sequência de um esforço milenário de
equilíbrio, distingue a responsabilidade obrigacional da aquiliana: a
obrigacional, emergente da violação de deveres concretos pré‑existentes, prevê
uma presunção de culpa, perante o incumprimento (mais severo); a aquiliana,
correspondente à inobservância de deveres gerais de respeito, não comporta tal
presunção (mais leve): artigos 799.º, n.º 1, e 487.º, n.º 1, do Código Civil.
21.ª – A cominação de um ou outro tipo de responsabilidade não é
arbitrária: depende da materialidade em jogo, sob pena de atingir a igualdade.
22.ª – No caso de acidentes em auto‑estrada, mostrando‑se cumpridos
os deveres específicos a cargo da C., apenas queda verificar se, com violação
do dever genérico de respeito, foram violados direitos dos utentes: a
responsabilidade é, pela natureza das coisas, aquiliana.
23.ª – A «presunção de incumprimento», ao interferir (e na medida em
que interfira) nessa questão, viola o artigo 13.º, n.º 1, da Constituição. Sem
conceder,
24.ª – A igualdade constitucional projecta‑se no princípio da
igualdade rodoviária: nas diversas vias e aos vários utentes aplicam‑se regras
genéricas e nunca ad hominem.
25.ª – Daí que não seja compaginável, nas auto‑estradas, uma regra de
maior protecção (ou menor risco) dos utentes, em função de gerar coordenadas
jurídicas: ser ou não um lanço concessionado; haver ou não portagem; estar em
causa o condutor ou o passageiro, como exemplos: seria violado o artigo 13.º,
n.º 1. Sem conceder,
26.ª – O artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º 24/2007 veio, de facto, fixar
uma presunção de «não‑cumprimento» (e, não, de culpa); com isso estabelece, de
facto, um regime de imputação objectiva: mesmo cumprindo todos os seus deveres,
a concessionária ainda será responsabilizada pelo resultado, numa manifestação
de puro risco.
27.ª – A responsabilidade pelo risco é espoliativa: só se admite em
casos especiais, para o futuro, com limitação das indemnizações e
acompanhamento por seguros. In casu, nada disso foi ponderado: há nova via de
inconstitucionalidade, por discriminação subjectiva, atingindo‑se o artigo
13.º, n.º 1, da Lei Fundamental. Sem conceder,
28.ª – A Lei n.º 24/2007, em vários dos seus preceitos,
designadamente o artigo 12.º, n.º 1, veio atingir selectivamente os direitos
das concessionárias; fê‑lo fora de quaisquer pressupostos tributários,
violando, também por aqui, a igualdade prevista no artigo 13.º, n.º 1, da
Constituição.
C – Terceiro fundamento: violação da tutela da propriedade privada.
29.ª – A recorrente C. detém um acervo patrimonial enquanto parte num
contrato de concessão; tal acervo, ainda que contratual, é protegido pela
Constituição, por reconduzir‑se a uma noção ampla de propriedade (artigo 62.º,
n.º 1, da Constituição).
30.ª – A Lei n.º 24/2007, em vários dos seus preceitos e,
designadamente, no seu artigo 12.º, veio atingir direitos patrimoniais
pré‑existentes, sem compensação: violou a propriedade privada.
31.ª – No caso do artigo 12.º em causa, esse fenómeno mais flagrante
se torna: foi criada, com referência a situações pré‑existentes, uma situação
objectiva de risco, que é substancialmente amputante de valores patrimoniais: a
violação do artigo 62.º, n.º 1, da Constituição surge apodíctica.
IV – Quanto à relevância nos autos:
32.ª – A Lei n.º 24/2007 levou o STJ a abdicar da sua judicação: não
atentou nos factos apurados, designadamente nos que traduziram, por parte da
C., o cumprimento das suas obrigações.
33.ª – Além disso, o douto acórdão recorrido fez, da Lei n.º 24/2007,
uma aplicação retroactiva, o que mais ampliou as apontadas
inconstitucionalidades.
34.ª – A não se aplicar a Lei n.º 24/2007, a saída para o litígio em
discussão seria a inversa.
Nestes termos e naqueles que, suprindo, os Venerandos Conselheiros
Constitucionais queiram subscrever, deve ser declarada a inconstitucionalidade
material da Lei n.º 24/2007 e, designadamente, do seu artigo 12.º, por violação,
inter alia, dos artigos 2.º, 13.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, da Constituição, assim
se dando provimento ao presente recurso.”
Com a alegação, a recorrente juntou um parecer jurídico.
Os recorridos contra‑alegaram, concluindo:
“I – O juízo de constitucionalidade ou inconstitucionalidade que esse
Venerando Tribunal Constitucional tem que emitir é tão‑somente o respeitante ao
artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, mais concretamente à norma
jurídica e respectiva interpretação, que se extrai do segmento da alínea b) do
seu n.º 1.
II – Pois foi essa norma restrita e específica que fundamentou a
decisão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a causa dos presentes autos.
III – Juízos de constitucionalidade ou inconstitucionalidade sobre a
Lei n.º 24/2007, na parte em que define, mesmo que de forma inovadora, os
direitos dos utentes nas vias rodoviárias a que se aplica e as consequentes
obrigações das concessionárias, devem ser excluídos do presente recurso. Assim,
IV – Nesse âmbito, a conformidade das respectivas normas com os
princípios constitucionais do Estado de direito democrático e da separação de
poderes, da igualdade, da estabilidade dos contratos, da proporcionalidade, da
boa fé, da não violação da confiança, do equilíbrio financeiro ou da tutela da
propriedade privada, não é, nem pode ser, o objecto do presente recurso.
V – O artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, tem,
claramente, natureza interpretativa, a qual, não sendo objecto directo do
presente recurso, deve ser considerada e declarada na precisa medida em que
destrói decisivamente a força argumentativa em favor da sua
inconstitucionalidade.
VI – Concretamente, o artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho,
não viola o princípio da separação e interdependência de poderes dos órgãos de
soberania, tal como é definido no artigo 2.º da CRP, nem importa uma ingerência
do poder legislativo no poder judicial ou na esfera do poder
executivo/administrativo que deva ser preservado.
VII – Pois que, embora inserido no desenvolvimento de uma negociação
entre o Estado Português, representado pelo Governo, e as concessionárias das
auto‑estradas, a partir do Decreto‑Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro, aplicável
ao tempo do acidente dos autos, a verdade é que algumas das bases deste
Decreto‑Lei, precisamente as respeitantes às obrigações das concessionárias
quanto à criação e manutenção de condições de segurança que possam afectar os
direitos dos utentes, têm eficácia normativa externa às mesmas bases, como parte
integrante que são de um contrato com eficácia de protecção de terceiros. Ora,
VIII – No âmbito dessa eficácia normativa, não se vislumbra como o
órgão de soberania Assembleia da República poderia ser afastado da
possibilidade de nela intervir através daquele artigo 12.º da Lei n.º 24/2007,
já que tal eficácia normativa externa se repercute em sede de responsabilidade
civil e de direitos subjectivos, como sejam os direitos à integridade física das
pessoas e à integridade dos bens destas.
IX – Os recorridos subscrevem por inteiro aquilo que sobre tal
problemática foi decidido no Acórdão n.º 24/98 desse Venerando Tribunal
Constitucional, e no Acórdão n.º 1/97, para o qual remete, onde se questiona a
existência de uma verdadeira reserva constitucional da Administração,
nomeadamente quando a intervenção da Assembleia da República se contenha no
limite funcional que representa a proibição de uma pura substituição funcional
do executivo no preciso espaço da sua actividade normal.
X – E, no caso dos presentes autos, a intervenção da Lei n.º 24/2007
na problemática do ónus da prova quanto às condições de segurança que cabe às
concessionárias das auto‑estradas assegurar aos seus utentes quando estes
tranquilamente por elas circulam e são surpreendidos pelo atravessamento de
animais, não pode considerar‑se como tendo ultrapassado o dito limite
funcional colocado à actuação do órgão legislativo Assembleia da República, ou
como «uma intromissão parlamentar intolerável na esfera administrativa do
executivo».
XI – A fixação, a cargo das concessionárias, do ónus da prova quanto à
obrigação de criação e manutenção de condições de segurança nas auto‑estradas
também não viola o princípio constitucional da igualdade.
XII – Lembra‑se, por um lado, que em muitos outros dispositivos
legais o ónus da prova impende sobre a parte que, eventualmente, mais
dificuldades tem em fazer a respectiva prova e muitas vezes implica a difícil
prova de um facto negativo. E nem por isso tais dificuldades implicam a
inconstitucionalidade do respectivo normativo. Neste aspecto, lembra‑se também
aqui a lição do saudoso Prof. Manuel de Andrade, a fls. 190 das suas Noções
Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1956, quando já nessa altura
afirmava que a natural dificuldade de prova não era circunstância fundamental
para fixar o respectivo ónus.
XIII – Por outro lado, o princípio da igualdade não dispensa a
consideração de que situações desiguais não podem ter o mesmo tratamento. E
certamente que as razões subjacentes à segurança do tráfego automóvel nas
auto‑estradas, a cargo das respectivas concessionárias, não são idênticas às
razões subjacentes ao tráfego aéreo ou ao tráfego nos aeroportos, por exemplo.
XIV – Como norma de natureza interpretativa que opta por uma de duas
soluções defendidas pela jurisprudência ou pela doutrina, no caso de acidentes
de viação causados pelo atravessamento nas auto‑estradas por animais, é também
evidente que o artigo 12.º da Lei n.º 24/2007 não viola o princípio da boa fé ou
da confiança, visto que, dada tal controvérsia, nenhuma das partes (utentes ou
concessionárias) poderia legitimamente contar com a consagração legislativa de
qualquer das soluções em confronto.
XV – E muito menos importa uma ilegítima interferência na esfera do
poder judicial, o qual existe precisamente para dirimir conflitos ou litígios
já em curso, segundo as normas jurídicas que se entenda deverem ser aplicadas.
E para isso é que os cidadãos têm acesso aos Tribunais.
XVI – Os princípios constitucionais da estabilidade dos contratos e
da proporcionalidade, da tutela da propriedade privada ou do equilíbrio
financeiro só teriam relevância no presente recurso se este tivesse de ser
apreciado em relação ao núcleo dos novos deveres das concessionárias das
auto‑estradas e dos correspectivos direitos dos seus utentes, definidos pela Lei
n.º 24/2007.
XVII – Não tem relevância para o problema da inconstitucionalidade
levantado pela C. a circunstância de a opção pelo ónus da prova a seu cargo
poder, na prática (e se pudesse) conduzir‑nos à consagração de uma verdadeira
responsabilidade objectiva da mesma. E isto pela razão simples de que a
responsabilidade objectiva não fere qualquer princípio constitucional e está
prevista, como a própria C. reconhece, em vários diplomas legais, tais como os
respeitantes a acidentes de trabalho, ao risco em certos acidentes de viação ou
à responsabilidade ambiental.
XVIII – De qualquer modo, e fora os casos de força maior previstos no
n.º 3 daquele artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, em sede de fiscalização da
constitucionalidade seria intolerável para a tutela da confiança de quem
tranquilamente usa uma auto‑estrada para circular em viatura automóvel –
tutela subjacente a todos os condicionalismos legais impostos na circulação
viária nas auto‑estradas – ver essa via subitamente invadida por um qualquer
animal e ter o ónus de provar que o aparecimento de tal animal na via se deveu à
inobservância, por parte da concessionária, dos seus deveres de vigilância.
XIX – Pelos fundamentos atrás expostos, ou por outros que V. Ex.as
Venerandos Conselheiros do Tribunal Constitucional tenham, no mesmo sentido,
por mais pertinentes, não deve esse Venerando Tribunal pronunciar‑se pela
inconstitucionalidade material do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007 nem declarar a
inconstitucionalidade de tal artigo, por nenhum preceito constitucional ele ter
violado, nomeadamente os artigos 2.º, 13.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, da
Constituição, assim se negando provimento ao presente recurso, julgando‑o
improcedente, com todas as legais consequências.”
*
Fundamentação
1. Da delimitação
do objecto do recurso
A recorrente pediu ao Tribunal Constitucional que fiscalizasse a
constitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.º a 12.º, da Lei n.º
24/2007, de 18 de Julho.
No domínio da fiscalização sucessiva concreta, o recurso constitucional tem
natureza instrumental relativamente à decisão recorrida, o que significa que
apenas pode ser apreciada a constitucionalidade de normas ou interpretações
normativas que tenham sido aplicadas pela decisão recorrida de modo influente
para o desfecho do pleito onde foi interposto o recurso.
Ora, da leitura dos dois acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça
neste processo verifica-se que apenas foi aplicada a norma constante do artigo
12.º, n.º 1, b), da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, pelo que o objecto deste
recurso deve cingir-se a essa norma.
Nas alegações de recurso, a Recorrente pretendeu também estender a fiscalização
de constitucionalidade à aplicação retroactiva que o Supremo Tribunal de Justiça
fez daquele preceito legal.
Uma vez que o objecto do recurso é definido no requerimento que o interpõe, não
é possível nas alegações subsequentes proceder-se à sua ampliação, pelo que
apenas se conhecerá da constitucionalidade da norma contida no artigo 12.º, n.º
1, b), da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho.
2. Do mérito do
recurso
2.1. Enquadramento da questão
O presente recurso de constitucionalidade versa a questão da distribuição do
ónus da prova da culpa enquanto pressuposto da responsabilidade civil pelos
danos causados por acidentes de viação ocorridos nas auto-estradas.
Sem cuidar agora da questão da respectiva natureza jurídica, pode-se afirmar que
o sistema do ónus da prova surgiu para resolver o problema da dúvida insanável
sobre a realidade dos factos, nomeadamente quando, conforme prescreve o n.º 1,
do artigo 8.º do Código Civil, “o tribunal não pode abster-se de julgar (...)
alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio”.
Para esse efeito, de acordo com o disposto no n.º 1, do artigo 342.º, do Código
Civil, “àquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos
do direito alegado”, acrescentando o n.º 2 do mesmo normativo que “a prova dos
factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete
àquele contra quem a invocação é feita”.
E para resolver concretamente o problema da dúvida irredutível, o artigo 516.º,
do Código de Processo Civil, dispõe que “a dúvida sobre a realidade de um facto
e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto
aproveita”.
Em certos casos, porém, o ónus da prova compete à parte que, segundo a
repartição normal, dele estaria libertada.
Esta eventualidade pode suceder por força da lei ou por vontade das partes.
Em especial, a inversão legal do ónus da prova dá-se – nos termos do disposto
no artigo 344.º, do Código Civil – quando existe presunção legal, dispensa ou
liberação da prova ou quando a parte contrária tiver culposamente tornado
impossível a prova do onerado.
É neste quadro normativo geral infraconstitucional que emerge a questão da
distribuição do ónus da prova a respeito dos pressupostos da responsabilidade
civil pelos danos causados por acidentes de viação ocorridos nas auto-estradas,
nomeadamente quando os acidentes em questão ocorrem em auto-estradas
concessionadas e se ficam a dever a situações de atravessamento de animais na
via.
Na pendência da presente acção entrou em vigor a Lei n.º 24/2007, de 18 de
Julho, diploma legal que, na parte que ora releva, veio expressamente “definir
os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas
concessionadas”.
Em particular, o artigo 12.º, n.º 1, alínea b), do referido diploma, apresenta a
seguinte redacção:
“Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente
rodoviário, com consequências danosas para pessoas e bens, o ónus da prova do
cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a
respectiva causa diga respeito a:
…
b) Atravessamento de animais;
…”.
Na origem deste diploma encontram-se protestos dirigidos à Assembleia da
República pela duração das obras de alargamento da A1, as quais provocavam
grandes congestionamentos no trânsito. Na sequência destes protestos o
parlamento aprovou a Resolução n.º 14/2004, de 31 de Janeiro, destinada ao
Governo, para que este promovesse, junto das concessionárias de auto-estradas, a
alteração das bases das respectivas concessões, de modo a suspender as portagens
das vias em obras e a melhor informar os utentes da sua ocorrência.
Perante o impasse nas negociações entre o Governo e as concessionárias, o
Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda apresentaram na Assembleia da
República dois Projectos de Lei (n.º 145/X e n.º 164/X, respectivamente) sobre
esta matéria.
O primeiro destes Projectos foi aprovado, tendo, contudo, acolhido no seu seio
algumas propostas do Projecto do Bloco de Esquerda, assim surgindo o Decreto n.º
122/X, que se converteu na Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho.
Entre as propostas do Projecto do Bloco de Esquerda que vieram a obter
consagração nesta Lei, embora com diferente redacção, encontra-se o disposto no
referido artigo 12.º.
Do preâmbulo do Projecto de lei n.º 164/X constam as razões visadas pelos
proponentes a respeito dessa matéria, nomeadamente que “o Estado também tem de
intervir na definição do tipo de responsabilidade que cabe às concessionárias
das auto-estradas. O que se passa hoje em dia é que, após demoradas acções
judiciais, a jurisprudência dos tribunais portugueses, salvo raras excepções,
tem entendido que a responsabilidade das concessionárias das auto-estradas é
meramente subjectiva…Ora, como de resto acontece em Espanha e em mais países, as
concessionárias das auto-estreadas, como estão obrigadas a assegurar a segurança
das vias a elas concessionadas, devem dirigir os seus esforços para garantir
este importante requisito aos utentes e para tanto devem ser as mesmas
concessionárias a acarretar com o ónus da prova em caso de ocorrência anómala
nas vias que estão encarregues de velar”.
E de acordo com as palavras proferidas pelo Sr. Deputado Jorge Fão (PS), durante
a discussão na especialidade, pretendia-se “a inversão do ónus da prova em caso
de acidentes que ocorrerem nas auto-estradas mesmo que não se fiquem a dever a
obras mas à circulação normal” (Cfr. Diário da Assembleia da República, I Série,
de 18 de Maio de 2007, p. 37).
As normas contidas no artigo 12.º, da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, visaram
intervir no debate jurisprudencial e doutrinal então em curso sobre o ónus da
prova da culpa nos acidentes rodoviários ocorridos nas auto-estradas
concessionadas, provocados pelas condições da via, incluindo a existência
indevida nas faixas de rodagem de objectos, animais e líquidos (vide sobre esta
discussão, com citação de variada jurisprudência, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, em
“Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas – Estudo de
Direito Civil Português”, ed. da Almedina de 2004, e em “Acidente de Viação em
Auto-Estrada – Natureza da Eventual Responsabilidade da Concessionária”, na
R.O.A., Ano 65, Vol. I, Junho 2005, pág., CARNEIRO DA FRADA, em “Sobre a
responsabilidade das concessionárias por acidentes ocorridos em auto-estradas”,
na R.O.A., Ano 65, Vol. II, Setembro 2005, p. 407-433, SINDE MONTEIRO, em
“Acidentes na auto-estrada – natureza e regime de responsabilidade da
concessionária”, na R.L.J., Ano 133.º, pp. 29 e ss.; ARMANDO TRIUNFANTE, em
“Responsabilidade civil das concessionárias das auto-estradas”, em “Direito e
Justiça”, Vol. XV, Tomo 1, 2001, pp. 73 e ss., J. CARDONA FERREIRA, em
“Acidentes de viação em auto-estradas – Casos de Responsabilidade Civil
Contratual?”, ed. de 2004, da Coimbra Editora, 2004, e AMÉRICO MARCELINO, em
“Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil”, pág. 115 e seg., da 7.ª Edição,
da Petrony).
Na alínea b), do n.º 1, do referido artigo 12.º, o legislador determinou uma
inversão do ónus da prova da culpa pela ocorrência de acidentes rodoviários em
auto-estradas concessionadas causadores de danos em pessoas ou bens, provocados
pelo atravessamento de animais. Se, segundo as regras gerais de distribuição do
ónus da prova, é ao lesado que cabe demonstrar o nexo de imputação do evento ao
demandado, a título de culpa (artigos 342.º, n.º 1, e 483.º, do C.C.), nas
situações excepcionais previstas naquele preceito, esse ónus é invertido,
competindo à concessionária da auto-estrada onde ocorreu o acidente provar que
cumpriu todas as obrigações de segurança que sobre ela incidem, de modo a
afastar a sua culpa pela produção do acidente.
O artigo 12.º, n.º 1, b), da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, traduz-se, pois,
no estabelecimento duma presunção legal de culpa retirada do facto do acidente
ter sido causado pela presença de um animal nas faixas de rodagem de uma
auto-estrada (vide sobre a distinção entre as situações de inversão do ónus da
prova resultantes do estabelecimento de presunções ilidiveis e de dispensa do
ónus da prova, ALBERTO DOS REIS, em “Código de Processo Civil anotado”, vol.
III, pág. 249, da ed. de 1950, da Coimbra Editora, VAZ SERRA, em “Provas
(direito probatório material)”, pág. 187, do B.M.J. n.º 110, e RITA LYNCE DE
FARIA, em “A inversão do ónus da prova no direito civil português”, pág. 39, da
ed. de 2001, da Lex), com a consequente atribuição da prova do contrário à
entidade a quem está atribuído o dever de velar pelas condições de segurança
daquela via.
Num sistema assente na culpa, como refere SOUSA RIBEIRO, “a inversão do ónus da
sua prova não tem um significado meramente técnico-processual, mas também um
conteúdo de ordem material. Onde vem estabelecida, ela equivale a uma indicação
legal da pessoa do responsável, ainda que sem carácter peremptório e definitivo,
pois se lhe reconhece a faculdade de se desonerar” (in. “Ónus da prova da culpa
na responsabilidade civil por acidente de viação”, em “Estudos em homenagem ao
Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro”, II, pág. 455).
Note-se que, contrariamente ao que diz a recorrente nas suas alegações, não
estamos perante a consagração de uma responsabilidade objectiva, que prescinde
do requisito da culpa para concluir por uma situação de responsabilidade civil,
mas apenas perante uma mera facilitação da prova da existência da culpa. Para
demonstrar a culpa da concessionária da auto-estrada onde ocorreu o acidente
provocado pelo atravessamento de um animal, não é necessário ao lesado
demonstrar que esse atravessamento resultou do incumprimento por aquela dos
deveres de garantia da segurança na auto-estrada que lhe foi concessionada,
bastando que esta não consiga demonstrar que, no caso concreto, cumpriu esses
deveres.
O estabelecimento desta presunção não procura apenas fazer recair o ónus da
prova sobre aquele que está em melhores condições para fornecer os elementos de
prova relativos às circunstâncias que permitiram o atravessamento da faixa de
rodagem de uma auto-estrada por um animal, mas também funciona como um
incentivo ao reforço por parte das concessionárias das medidas destinadas a
evitar que estes eventos ocorram.
A recorrente alega que o conteúdo da norma que é objecto de fiscalização neste
recurso viola os princípios constitucionais da separação dos poderes e da tutela
da confiança, como princípios estruturantes do modelo do Estado de direito
democrático (artigo 2.º, da C.R.P.), o princípio da igualdade (artigo 13.º, da
C.R.P.) a tutela do direito à propriedade privada (artigo 62.º, da C.R.P.) e
ainda o direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P.).
2.2. Sobre a violação do princípio da separação de poderes
Nos termos do artigo 2.º da C.R.P., na redacção introduzida pela Lei
Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, a República Portuguesa é um Estado
de Direito democrático baseado, inter alia, na separação e interdependência de
poderes.
Este princípio é contemporaneamente entendido segundo uma concepção positiva,
como princípio de organização óptima das funções estaduais tendente a decisões
funcionalmente eficazes e materialmente justas (vide GOMES CANOTILHO em “Direito
constitucional e teoria da Constituição”, pág. 250, da 7.ª ed., da Almedina, e
NUNO PIÇARRA, em “A separação de poderes como doutrina e como princípio
constitucional – um contributo para o estudo das suas origens e evolução”, pág.
262-264, da ed. de 1989, da Coimbra Editora).
A Recorrente entende que a Lei 24/2007, de 18 de Julho viola o princípio da
separação de poderes consagrado no artigo 2.º da Constituição, acusando-a
enquanto acto legislativo da Assembleia da República, por um lado, de interferir
ilegitimamente na actividade administrativa do Estado e, por outro lado, de
constituir uma invasão da função reservada aos Tribunais.
2.2.1. O art. 12.º, n.º 1, alínea b), da Lei 24/2007, de 18 de Julho e a reserva
de administração
Relativamente à primeira acusação importa notar que a Recorrente invoca a
inconstitucionalidade da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, considerada na sua
globalidade, com isso extravasando o objecto do presente recurso de
constitucionalidade acima delimitado.
Neste processo apenas interessa averiguar se a Assembleia da República invadiu a
alegada “reserva de administração” ao aprovar o texto constante da alínea b), do
n.º 1, do artigo 12.º, da Lei 24/2007, de 18 de Julho.
Para esse efeito, importa, antes do mais, caracterizar a relação jurídica
existente entre a Recorrente e o Estado tendo por objecto a auto-estrada onde
ocorreu o acidente dos autos, e, num segundo momento, avaliar o verdadeiro
alcance da intervenção legislativa da Assembleia da República em matéria de
distribuição do ónus da prova da responsabilidade por acidentes de viação
ocorridos em auto-estradas concessionadas.
Remonta ao final da década de sessenta do século passado o início da experiência
portuguesa de construção de auto-estradas em regime de concessão.
A abertura de concurso público para a concessão de construção, conservação e
exploração de auto-estradas ou seus troços foi autorizada pelo Decreto Lei n.º
49.139, de 25 de Outubro de 1969.
Na sequência de concurso público, o Governo outorgou a referida concessão à
C1., SARL, nos termos das bases anexas ao Decreto n.º 467/72, de 22 de Novembro.
Este contrato de concessão vigorou até Outubro de 1985, data em que um novo
contrato de concessão entrou em vigor ao abrigo do Decreto-Lei n.º 458/85, de 30
de Outubro, o qual foi, sucessivamente, objecto de várias alterações, a mais
importante das quais através do Decreto-Lei n.º 315/91, de 20 de Agosto.
Este último diploma, por seu turno, acabou por ser revogado pelo Decreto-Lei n.º
294/97, de 24 de Outubro, que aprovou as bases da concessão que se encontravam,
no essencial, vigentes à data do acidente de viação sob discussão – sendo, pois,
completamente irrelevantes, na economia do presente recurso, as sucessivas
alterações introduzidas desde então nas referidas bases da concessão, a últimas
das quais pelo Decreto-Lei n.º 247-C/2008, de 30 de Dezembro.
Para o efeito que ora releva, dispõe o n.º 1 da Base I anexa ao Decreto-Lei n.º
294/97, de 24 de Outubro, que a concessão tem por objecto a construção,
conservação e exploração em regime de portagem de determinadas auto-estradas.
O financiamento necessário à realização do objecto da concessão será assegurado
– esclarece o n.º 1 da Base X – pela concessionária e pelo Estado, tendo aquela
o direito de receber dos utentes das auto-estradas as importâncias das
portagens nas mesmas cobradas e os rendimentos de exploração das áreas de
serviço.
O estabelecimento da concessão é integrado – nos termos do n.º 1 da Base IV –
pelas auto-estradas e por todas as obras, máquinas e aparelhagem e respectivos
acessórios utilizados para a exploração e conservação das auto-estradas.
O n.º 2 da Base IV acrescenta que todos os bens que integram o estabelecimento
da concessão revertem, no termo desta, para o Estado.
A recorrente C. foi essencialmente encarregue pelo Estado de executar e explorar
uma obra pública, mediante retribuição a obter directamente dos utentes, através
do pagamento por estes de taxas de utilização.
Está-se, assim, na presença de um contrato administrativo, mais concretamente,
na presença de um contrato de concessão de obras públicas que leva
acessoriamente acoplada uma concessão de exploração do domínio público (Vide
sobre este tipo contratual, PEDRO GONÇALVES, em “A Concessão de Serviços
Públicos”, pág. 90-95, da ed. de 1999, da Almedina, e DIOGO FREITAS DO
AMARAL/LINO TORGAL, em “Estudos sobre concessões e outros actos da Administração
(Pareceres)”, pág. 577-588, da ed. de 2000, da Almedina).
Na verdade, nem sempre é possível à Administração Pública prosseguir os fins de
interesse público que a lei põe a seu cargo por via de autoridade e pela tomada
de decisões unilaterais. Muitas vezes, a própria lei prevê que a Administração
lance mão da figura do contrato sujeito a um regime jurídico especial, diferente
daquele que existe no Direito Civil, já que aquela continua a dispor de
prerrogativas ou privilégios de que as partes nos contratos civis não dispõem,
designadamente o poder de modificação unilateral do conteúdo das prestações ou o
poder de rescisão unilateral do contrato.
Este regime especial dos contratos administrativos constitui uma das
manifestações do poder administrativo ou, por outras palavras, da supremacia
jurídica da Administração, sem que o interesse do contratante particular na
estabilidade do contrato se mostre protegido pelo estabelecimento de limites e
condições ao exercício dos poderes públicos de destabilização da relação
contratual.
Se, em princípio, a concessão administrativa é efectuada pela Administração
mediante uma forma de actuação típica da função administrativa, o facto de, no
caso concreto, a circunstância da concessão ter sido efectuada por acto jurídico
com forma de lei não coloca em crise a existência de uma concessão
administrativa (Vide PEDRO GONÇALVES, ob. cit, p. 69).
É conhecida a discussão sobre o âmbito de uma reserva de exercício da função
administrativa pública oponível perante o poder legislativo, nomeadamente em
matéria de intervenção legislativa com efeitos extintivos ou modificativos de
uma concreta relação contratual pública (vide, além do parecer junto aos autos,
PAULO OTERO, em “Legalidade e Administração Pública”, pág. 949-950, da ed. de
2003, da Almedina, GOMES CANOTILHO, na R.L.J., Ano 129.º, pág. 82, REIS NOVAIS,
em “Separação de poderes e limites da competência legislativa da Assembleia da
República, pág. 59 e seg., da ed. de 1997, e o Acórdão n.º 1/97, deste Tribunal,
em ATC, 36.º vol., pág. 7).
Contudo, no caso concreto, independentemente da posição que se tome nesta
questão, não é possível detectar uma invasão ilegítima dos poderes do Governo
pela Assembleia da República. Neste domínio, a aprovação do regime legal
consagrado no artigo 12.º, n.º 1, b), da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho não
pode, em qualquer perspectiva, ser vista como uma revogação ou modificação
legislativa de cláusulas ou efeitos de qualquer contrato de concessão celebrado
pelo Governo.
Na verdade, o contrato de concessão outorgado pela Recorrente ao abrigo do
disposto no Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro, dispõe muito pouco, ou
mesmo nada, sobre a responsabilidade da concessionária para com terceiros.
A esse respeito, a Base XLIX/1, anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de
Outubro, limita-se a remeter, como é habitual neste tipo de concessões, para o
regime geral de responsabilidade civil quando preceitua que “serão da inteira
responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da
lei, sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente
da concessão”.
Esta remissão para os termos da lei limita-se a constatar que compete ao
legislador a definição dos termos em que deve ocorrer a responsabilidade pelos
danos sofridos por terceiros em consequência da actividade concessionada,
nomeadamente os acidentes rodoviários ocorridos nas auto-estradas cuja
exploração se encontra concessionada resultantes do atravessamento de animais.
Foi exactamente no campo dessa definição que a Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho,
interveio, pelo que não alterou nenhum contrato de concessão em particular,
muito menos o contrato de concessão respeitante à auto-estrada onde ocorreu o
acidente dos autos, sendo antes aquela lei aplicável a todos os acidentes de
viação ocorridos em auto-estradas concessionadas às várias empresas
concessionárias a operar em Portugal.
Compreende-se que assim seja na medida em que os acidentes de viação ocorridos
nas auto-estradas concessionadas envolvem os seus utentes, os quais, obviamente,
são terceiros relativamente ao contrato de concessão e não podem ficar
subordinados ou limitados pelo acordo alcançado no passado entre o concedente e
o concessionário, no que respeita à definição dos pressupostos dos seus direitos
de indemnização, relativamente a danos morais e patrimoniais emergentes desses
acidentes.
O utente é a razão de ser do contrato de concessão mas não intervém na
atribuição da concessão.
Não se vislumbra, pois, como possa esta matéria integrar qualquer reserva de
administração, mesmo segundo as teses doutrinárias mais generosas à limitação do
legislador pela autonomia administrativa contratual, uma vez que é o próprio
contrato de concessão que remete para o legislador a sua regulamentação.
Por estes motivos não tem suporte a posição da Recorrente segundo a qual a
Assembleia da República não tem competência para legislar sobre o regime de
responsabilidade civil emergente dos acidentes de viação ocorridos nas
auto-estradas concessionadas, ou que deixou de ter essa competência a partir do
momento em que foi outorgado um qualquer contrato administrativo pelo Governo,
tendo por objecto a concessão de construção e exploração de auto-estradas, por
violação da alegada reserva de administração.
2.2.2. O artigo 12.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho e a
reserva de jurisdição
A recorrente defende também que esta intervenção legislativa redunda numa
ilegítima interferência na esfera do poder judicial, a quem cabe resolver as
questões entre particulares.
O princípio da separação de poderes determina a existência duma reserva de
competência da função jurisdicional em proveito dos tribunais, incumbindo apenas
a estes a administração da justiça, onde se inclui a tarefa de dirimir os
conflitos de interesses particulares (artigo 202.º, n.º 1 e 2, da C.R.P.).
Contudo a função jurisdicional respeita à resolução de conflitos concretos e não
à definição de regras gerais e abstractas sobre determinada matéria do direito
privado, mesmo que essas regras se limitem a resolver discussões
jurisprudenciais sobre o verdadeiro sentido de normas já existentes.
O artigo 12.º, n.º 1, b), da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, limita-se, a
estabelecer uma regra geral e abstracta de ónus da prova relativo aos
pressupostos da responsabilidade civil pelos danos causados por acidentes de
viação ocorridos nas auto-estradas concessionadas provocados pelo atravessamento
de animais na via e não a solucionar qualquer caso concreto ocorrido nestas
circunstâncias, pelo que não se verifica qualquer invasão das tarefas estaduais
reservadas aos tribunais.
2.3. A tutela da confiança
A Recorrente defende também que a Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, viola o
princípio da tutela da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito
Democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Mais uma vez convém relembrar que, atenta a delimitação do objecto do recurso de
constitucionalidade, a análise aqui feita apenas incide sobre a norma constante
do artigo 12.º, n.º 1, b), da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho.
Ora, além dos contratos administrativos de concessão serem geneticamente
susceptíveis de sofrer alterações ditadas pela prossecução do interesse público,
as quais, à partida, por si só, não envolvem a violação de qualquer princípio ou
regra constitucional, conforme já se deixou escrito antes, a norma aqui em
apreciação não alterou nenhum contrato de concessão em particular, tendo apenas
introduzido uma nova regra relativa à responsabilidade pelos danos sofridos por
terceiros em acidentes rodoviários ocorridos nas auto-estradas cuja exploração
se encontra concessionada, resultantes do atravessamento de animais.
Dispondo o Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro, ao abrigo do qual foi
outorgado aquele contrato, que esta matéria seria regida nos termos da lei, num
juízo objectivo, não é possível configurar uma situação de confiança na
estabilidade do direito vigente no momento da celebração do contrato.
A tutela da confiança não pode conduzir à impossibilidade de qualquer alteração
das leis em vigor, isto é, a segurança jurídica não pode caracterizar-se
simplesmente pela imutabilidade e cristalização do direito legislado.
O Direito cumpre “uma função dinamizadora e modeladora, capaz de ajustar a ordem
estabelecida à evolução social e de promover mesmo esta evolução num determinado
sentido” (BAPTISTA MACHADO, em “Introdução ao Direito e ao Discurso
Legitimador”, pág. 223, da ed. de 1989, da Almedina).
Efectivamente, o legislador do Estado de Direito democrático está vinculado à
prossecução do interesse público ditado pela Constituição e, consequentemente,
tem de dispor de uma ampla margem de conformação da ordem jurídica ordinária
para prosseguir fins constitucionalmente legítimos em cumprimento do mandato
democrático recebido dos eleitores.
Por isso, nada o impedia de no decurso da vigência dos contratos de concessão
em causa criar uma regra como a que consta do artigo 12.º, n.º 1, b), da Lei n.º
24/2007, de 18 de Julho, não resultando daí sequer beliscada a protecção da
tutela da confiança.
É certo que poderia a violação deste princípio ser analisada pelo ângulo da
aplicação da lei no tempo, uma vez que o disposto no art. 12.º, n.º 1, alínea
b), da Lei 24/2007, de 18 de Julho, foi aplicado neste processo a factos
ocorridos antes da respectiva entrada em vigor. Contudo, isso não é possível
fazer no âmbito deste recurso, uma vez que a Recorrente, no respectivo
requerimento de interposição, não questionou a constitucionalidade da
interpretação normativa feita nesse sentido pela decisão recorrida, pelo que a
mesma não integra o objecto do recurso.
2.4. Do princípio da igualdade
Nos termos do artigo 13.º, n.º 1, da C.R.P., todos os cidadãos têm a mesma
dignidade social e são iguais perante a lei.
A igualdade é um valor relativo e só no plano da relatividade tem sentido, sendo
comummente entendido que o princípio da igualdade impõe o tratamento igual do
igual e diferente do diferente, exigindo, para a medida da diferença, uma razão
justificativa.
Não obstante a Constituição falar em igualdade dos cidadãos, é óbvio que este
princípio também se projecta sobre as pessoas colectivas (Vide JORGE MIRANDA/RUI
MEDEIROS, em “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, pág. 121, da ed. de
2005, da Coimbra Editora).
A recorrente alega que este princípio se mostra violado pela norma sob
fiscalização, por um lado porque cria uma regra específica que se aplica apenas
num determinado tipo de estradas, desrespeitando assim a denominada “igualdade
rodoviária” (no mesmo sentido opina MENEZES CORDEIRO em “A lei dos direitos dos
utentes das auto-estradas e a Constituição (Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho)”,
na R.O.A., Ano 67, vol. II, pág. 571), e, por outro lado, porque consagra um
regime discriminatório das concessionárias das auto-estradas em relação às
demais empresas concessionárias doutras infra-estruturas públicas, como sejam os
aeroportos.
2.4.1. Da violação da “igualdade rodoviária”
A expressão “igualdade rodoviária” foi introduzida na discussão jurídica em
torno dos acidentes em auto-estradas por ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO,
pretendendo-se com a mesma chamar a atenção para a essencialidade da existência
de uma regulação unitária das situações do tráfego rodoviário (Em “Igualdade
Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas – Estudo de Direito Civil
Português”, pág. 37-39, da ed. de 2004, da Almedina). Todavia, esta posição
doutrinária pretendia, no essencial, colocar em crise as soluções contratuais
adoptadas em matéria de responsabilidade por acidentes ocorridos em
auto-estradas, em especial, a sua aplicação nas situações em não seja devido o
pagamento de portagens pelos utentes das auto-estradas.
Em primeiro lugar cumpre mencionar que a norma aplicada pelo tribunal recorrido
não faz qualquer distinção entre as diversas concessionárias de auto-estradas
existentes nem entre concessões de auto-estradas com portagem e sem portagem.
Acresce que a especificidade das auto-estradas justifica um tratamento jurídico
diferenciado, relativamente aos demais tipos de estradas.
Na verdade, nos termos do artigo 1.º, alínea a), do Código da Estrada de 1994
(CE), na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, a auto-estrada
é uma via pública destinada a trânsito rápido, com separação física de faixas de
rodagem, sem cruzamentos de nível nem acesso a propriedades marginais, com
acessos condicionados e sinalizada como tal.
A circulação nas auto-estradas apresenta muitas restrições de ordem legal que
importa assinalar, nomeadamente:
- é proibido o trânsito de peões, animais, veículos de tracção animal,
velocípedes, ciclomotores e motociclos de cilindrada não superior a 50 cm3
(artigo 72.º, n.º 1, do CE);
- em matéria de limites gerais de velocidade, os condutores em geral não podem
transitar a velocidade instantânea inferior a 50 km/h (artigo 27.º, n.º 6, do
CE);
- por seu turno, os motociclos de cilindrada superior a 50 cm3 e os automóveis
ligeiros de passageiros e mistos sem reboque podem circular a uma velocidade
instantânea máxima de 120 Km/hora (artigo 27.º, n.º 1, do CE);
- é proibido parar ou estacionar, ainda que fora das faixas de rodagem (artigo
72.º, n.º 2, al. b), CE);
- é proibida a inversão do sentido de marcha (artigo 72.º, n.º 2, al. c), do
CE);
- é proibida a realização da manobra de marcha atrás (artigo 72.º, n.º 2, al.
d), do CE);
- é proibido transpor os separadores de trânsito ou as aberturas neles
existentes (artigo 72.º, n.º 2, al. e), do CE);
- a entrada e saída das auto-estradas faz-se unicamente pelos acessos a tal fim
destinados (artigo 73.º, n.º 1, do CE).
Todas estas restrições visam garantir condições acrescidas de segurança,
permitindo-se, perante essas condições, a circulação do trânsito a uma maior
velocidade do que nas restantes estradas. Daí que também, neste tipo de via, as
exigências quanto ao cumprimento pela concessionária da sua exploração dos
deveres de prevenção e segurança e à rapidez na correcção de anomalias devem
ser especialmente elevadas e justificam um tratamento jurídico diferenciado
(Vide, neste sentido, SINDE MONTEIRO, em “Acidente na auto-estrada provocado
pelo atravessamento de um animal”, na R.L.J., Ano 131.º, pp. 49-50).
Por isso, a consagração de uma presunção legal de culpa da concessionária,
relativamente aos acidentes causados pela presença de um animal nas faixas de
rodagem de uma auto-estrada, fundamentada no melhor conhecimento que esta tem
das circunstâncias que estarão na origem desse evento, e no incentivo ao reforço
das medidas destinadas a evitar a sua repetição, não se traduz, relativamente
aos acidentes idênticos ocorridos noutro tipo de estrada, num tratamento
diferenciado de situações iguais, mas sim na aplicação duma regra específica a
uma situação diferente, estando a diferença de regime justificada pela
especificidade da situação.
2.4.2. Do tratamento discriminatório das concessionárias das auto-estradas
Alega também a recorrente que o princípio da igualdade é violado pela norma
sindicada enquanto estabelece um regime discriminatório das concessionárias das
auto-estradas, relativamente a outras concessionárias de infra-estruturas, como
sejam os aeroportos, onde também podem ocorrer acidentes provocados pela
presença de animais nas pistas.
Conforme resulta da leitura do texto do Decreto-Lei n.º 404/98, de 18 de
Dezembro, e do Regulamento (CE) n.º 2320/2002, a concessionária do serviço
público aeroportuário está sujeita a um regime jurídico bem mais complexo e
exigente do que as concessionárias das auto-estradas, o que se compreende atenta
a necessidade de garantir um nível de segurança muitíssimo elevado na navegação
aérea.
Efectivamente, a segurança da aviação civil conhece exigências de segurança sem
paralelo noutra actividade de transporte de passageiros e carga.
A F., S.A. (…A) que passou a ter por objecto principal a exploração, em regime
de concessão, do serviço público aeroportuário de apoio à aviação civil em
Portugal (artigo 3.º dos Estatutos da F. que constitui o anexo II, do
Decreto-Lei n.º 404/98, de 18 de Dezembro) deve especialmente:
- executar, sob sua responsabilidade e em regime de exclusivo, o referido
serviço nas melhores condições de qualidade, continuidade e regularidade e
eficiência e economia do serviço, devendo manter actualizadas as regras de
gestão aeroportuária a adoptar, de acordo com a evolução tecnológica e normas
de produtividade seguidas na exploração de aeroportos com movimento de tráfego
semelhante àqueles compreendidos na concessão (artigo 13.º, n.º 1, alínea a), do
Decreto-Lei n.º 404/98, de 18 de Dezembro);
- organizar os serviços, disciplinar a sua actuação, aplicar as regras de
segurança geralmente seguidas na exploração aeroportuária, conservar as
infra-estruturas e equipamentos afectos ao serviço público concessionado,
promovendo a respectiva actualização e renovação oportunas (art. 13.º, n.º 1,
alínea b), do Decreto-Lei n.º 404/98, de 18 de Dezembro);
- cumprir e fazer observar as normas, recomendações e orientações aplicáveis à
actividade aeroportuária, designadamente as de natureza legal e regulamentar
decorrentes de convenções e acordos internacionais de que o Estado Português
seja subscritor e bem assim aquelas que sejam emanadas do Instituto Nacional de
Aviação Civil e das organizações internacionais de que Portugal seja membro
(artigo 13.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 404/98.
Assim, e no que respeita ao tipo de acidente aqui em análise:
- na zona de movimento dos aeroportos e seus terrenos e edifícios adjacentes
(lado ar), o controlo dos acessos deve ser assegurado em permanência para
impedir nomeadamente a entrada nessas zonas a pessoas e veículos não autorizados
(n.º 2.2.1. do Anexo ao Regulamento (CE) n.º 2320/2002 do Parlamento Europeu e
do Conselho de 16 de Dezembro de 2002).
- todo o pessoal, incluindo os tripulantes das aeronaves e os objectos
transportados, é rastreado antes de lhe ser permitido o acesso às zonas
restritas de segurança (n.º 2.3. do Anexo ao Regulamento (CE) n.º 2320/2002).
- as placas e outras áreas de estacionamento devem ser adequadamente iluminadas
e a iluminação existente deverá iluminar, em particular, zonas vulneráveis do
aeroporto (alínea a) do n.º 2.4. do Anexo ao Regulamento (CE) n.º 2320/2002).
- as vedações e zonas limítrofes das zonas restritas de segurança serão vigiadas
por meio de patrulhas, de circuitos fechados de televisão e de outras medidas
de vigilância (alínea c) do n.º 2.4. do Anexo ao Regulamento (CE) n.º
2320/2002).
Da simples leitura destas obrigações legais, resulta manifesto que a
concessionária do serviço público aeroportuário está sujeita a um regime
jurídico bem mais complexo e exigente do que as concessionárias das
auto-estradas, o que se compreende atenta a necessidade de garantir um nível de
segurança muitíssimo elevado na navegação aérea.
Não obstante todas estas obrigações apertadas de segurança, os utilizadores das
infra-estruturas geridas pela F., designadamente as companhias aéreas, podem
sofrer danos, em resultado de um acidente de aviação causado pelo
atravessamento de um animal de grande porte na pista de descolagem do
aeroporto.
A mera actividade de investigação técnica dos acidentes e incidentes
aeroportuários é objecto de legislação especial destinada a reforçar o nível de
segurança na navegação área (Cfr. Decreto-Lei n.º 318/99, de 11 de Agosto, e
Decreto-Lei n.º 218/2005, de 14 de Dezembro).
Em matéria de incidentes, a simples presença incorrecta de um veículo ou pessoa
nas áreas protegidas de uma superfície designada para aterragens e descolagens
constitui ocorrência para efeito de notificação obrigatória ao Gabinete de
Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves (Cfr. alínea o), do Anexo I
ao Decreto-Lei n.º 218/2005, de 14 de Dezembro).
Igual notificação tem lugar, por maioria de razão, no caso de chegar a ocorrer
uma obstrução da área de movimento de um aeródromo por parte de veículos,
animais ou objectos estranhos de que resulte uma situação perigosa ou
potencialmente perigosa, (Cfr. n.º 1, da Parte D, e alínea j), do apêndice n.º
2, do Anexo I ao Decreto-Lei n.º 218/2005, de 14 de Dezembro).
Logicamente, a colisão no solo entre uma aeronave e veículo, pessoa, animal ou
obstáculo, também não pode deixar de ser reportada com carácter de
obrigatoriedade (Cfr. alínea v), do n.º 1, do Anexo II ao Decreto-Lei n.º
218/2005, de 14 de Dezembro).
Note-se, contudo, que esta participação visa a prevenção de acidentes e
incidentes, podendo conduzir à imposição de medidas destinadas a evitar a sua
repetição no futuro, mas não podendo ser utilizada para apuramento de qualquer
tipo de responsabilidade (n.º 3, do artigo 1.º, do Decreto-Lei n.º 218/2005, de
14 de Dezembro), pelo que não facilita a prova das causas dos acidentes em
acções judiciais.
Avança a recorrente que as concessionárias destas infra-estruturas não se
encontram oneradas com a aplicação de uma presunção de culpa idêntica à prevista
no artigo 12.º, n.º 1, b), da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, o que
consubstanciaria um tratamento desigual arbitrário em detrimento das
concessionárias das auto-estradas.
Apesar de existirem diferenças assinaláveis entre estas duas situações, como
seja o tipo de utentes das diferentes infra-estruturas, a frequência de
ocorrência deste género de acidentes, a extensão das zonas a vigiar, e os meios
de controle de cumprimento das regras de segurança, concede-se que essas
diferenças acabam por se compensar, relativamente aos fundamentos que justificam
o estabelecimento daquela presunção, e que existe uma igualdade relativa entre
as duas situações, passando o critério de qualificação da igualdade
essencialmente pela exigência de um elevado nível de segurança na circulação a
assegurar simultaneamente pelas concessionárias das auto-estradas e pela
concessionária do serviço público aeroportuário, e pelo domínio por estas da
aplicação das respectivas medidas de segurança.
Todavia, não se pode acompanhar a recorrente quando afirma que as duas situações
são objecto de tratamento jurídico diferenciado em caso de acidente causado
pelo atravessamento de um animal.
Na verdade, o funcionamento duma presunção de culpa que recaia sobre a
concessionária das infra-estruturas aero-portuárias, idêntica à estabelecida na
alínea b), do n.º 1, do artigo 12.º, da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, pode
ser encontrada, por actividade interpretativa, quer no artigo 799.º, n.º 1, do
C.C., quer no artigo 493.º, n.º 1, do C.C., conforme se entenda que a respectiva
responsabilidade tem origem contratual ou extra-contratual.
Era essa a solução que largos sectores da doutrina e da jurisprudência já
seguiam, relativamente aos acidentes ocorridos nas auto-estradas, provocados
pelos atravessamento de animais, anteriormente à vigência da Lei n.º 24/2007, de
18 de Julho, permitindo o sistema legal vigente igual solução para a
determinação da culpa na ocorrência de acidentes idênticos nas pistas dos
aeroportos.
Assim sendo, verifica-se que o sistema jurídico vigente permite que a
concessionária do serviço público aeroportuário esteja sujeita às mesmas
soluções normativas de presunção de culpa aplicáveis às concessionárias das
auto-estradas, justificando-se o estabelecimento específico dessa presunção para
as concessionárias das auto-estradas, pela divergência de opiniões que se vinha
registando nesse tema na jurisprudência e na doutrina, ao contrário do que
sucede relativamente a acidentes do mesmo género ocorridos nas pistas dos
aeroportos.
Concluindo, a norma sob análise por não consagrar uma solução jurídica diferente
daquela que o sistema normativo vigente permite para o apuramento da culpa nos
acidentes ocorridos nas pistas dos aeroportos provocados pelo atravessamento de
animais não viola o princípio da igualdade.
2.5. Inconstitucionalidade por violação do direito de propriedade
A Recorrente entende também que a interpretação normativa da alínea b), do n.º
1, do art. 12.º, da Lei 24/2007, de 18 de Julho, viola o disposto no artigo
62.º, n.º 1, da C.R.P., porque ao consagrar nas situações aí previstas uma
responsabilidade objectiva das concessionárias de auto-estradas, sem quaisquer
compensações, permite uma ablação ilegítima de direitos patrimoniais
pré-existentes (no mesmo sentido se pronunciou MENEZES CORDEIRO em “A lei dos
direitos dos utentes das auto-estradas e a Constituição (Lei n.º 24/2007, de 18
de Julho)”, na R.O.A., Ano 67, vol. II, pág. 571).
Não se questiona, nesta sede, que os direitos de conteúdo patrimonial emergentes
do contrato administrativo de concessão possam estar em geral garantidos pela
Constituição contra qualquer privação arbitrária ou sem a atribuição de qualquer
compensação.
Contudo, neste caso, não só a norma sindicada não estabelece qualquer
responsabilidade objectiva das concessionárias de auto-estradas, conforme acima
se apontou, consagrando uma simples presunção de culpa que pode ser ilidida pela
actividade probatória daquelas, como também a Recorrente não identifica
minimamente quais sejam os direitos concretamente afectados por essa regra de
distribuição do ónus de prova, o que dificulta qualquer tratamento da questão de
constitucionalidade assim suscitada.
Se a Recorrente se pretende referir ao aumento de despesas com o pagamento de
indemnizações que lhe poderá acarretar o funcionamento daquela regra probatória,
relembre-se que, além desta regra não ter introduzido qualquer alteração no
equilíbrio prestacional dos contratos de concessão de auto-estradas, ela
limita-se a definir a quem cabe produzir a prova sobre a culpa de um evento
lesivo, não atribuindo a responsabilidade pela sua verificação.
Em qualquer caso, não é possível encarar a norma sob fiscalização como a
consagração duma ablação de um direito patrimonial das concessionárias das
auto-estradas, pelo que a invocação da violação da protecção ao direito de
propriedade, garantida pela Constituição, não faz sentido.
2.6. Inconstitucionalidade por violação do direito a um processo equitativo
Das alegações apresentadas pela Recorrente resulta que esta também entende que a
norma em fiscalização viola o direito a um processo equitativo, imposto no n.º
4, do artigo 20.º, da C.R.P. (no mesmo sentido se pronunciou MENEZES CORDEIRO em
“A lei dos direitos dos utentes das auto-estradas e a Constituição (Lei n.º
24/2007, de 18 de Julho)”, na R.O.A., Ano 67, vol. II, pág. 571).
O legislador dispõe de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do
processo, mas não está autorizado, nos termos dos artigos 13.º e 18.º, n.º 2 e
3, da C.R.P., a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente
ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela
jurisdicional efectiva.
Ora, a ideia de processo equitativo atinge seguramente as regras sobre a
distribuição do ónus da prova, independentemente da sua natureza substantiva.
Conforme já se avançou supra, o ónus da prova objectivo surge como uma ultima
ratio de decisão, quando se tenha esgotado qualquer possibilidade de solução com
base na matéria de facto provada, quer pelas partes, quer pela iniciativa
instrutória do juiz (Vide, sobre esta temática, PEDRO MÚRIAS, em “Por uma
distribuição fundamentada do ónus da prova”, pág. 33, da ed. de 2000, da Lex).
Reflectindo esta realidade, todo o sistema de ónus da prova não pode deixar de
assentar estruturalmente no critério da facilidade probatória, o qual emerge e
ganha visibilidade em todas as situações de presunção legal (Vide PIEDAD GRANDA,
em “Los critérios de disponibilidad y facilidad probatória en el sistema del
artículo 217 de la LEC”, e PEDRO MOVELLÁN, em “Las presunciones en la ley de
enjuiciamiento civil”, ambos em in Carga de la prueba e responsabilidad civil,
respectivamente, pág. 64 e 105, da ed. de 2007, de Tirant Lo Blanch).
Em matéria de responsabilidade civil aquiliana, em regra, cabe ao lesado provar
a culpa do agente (art. 487.º, n.º 1, do C.C.).
Diversamente, no domínio da responsabilidade contratual, é ao devedor que
compete provar que o incumprimento ou cumprimento defeituoso da sua prestação,
não procede de culpa sua (artigo 799.º, n.º 1, do C.C.). Entre as razões que
fundamentam esta solução avulta a circunstância do devedor, por via de regra,
estar em melhores condições de fazer prova do seu comportamento em face do
credor, bem como dos motivos que o levaram a não efectuar a prestação a que
estava vinculado.
Pela mesma razão, o legislador não pode numa acção destinada à efectivação da
responsabilidade civil aquiliana, ser indiferente à existência de factos que
pela sua especial natureza oferecem uma grande dificuldade de prova por parte de
quem sofreu o dano, e que, pelo contrário, são susceptíveis de prova pelo
lesante.
As presunções legais surgem muitas vezes para responder a essas situações em
que a prova directa pode resultar particularmente gravosa ou difícil para uma
das partes, causando, ao mesmo tempo, o mínimo prejuízo possível à outra parte,
dentro dos limites do justo e do adequado.
A tutela da parte “prejudicada” pela presunção obtém-se pela exigência
fundamentada e não arbitrária de um nexo lógico entre o facto indiciário e o
facto presumido, o qual deve assentar em regras de experiência e num juízo de
probabilidade qualificada.
No caso concreto, a presunção legal pretende resolver problemas de prova da
culpa em matéria de responsabilidade civil.
Nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 12.º, da Lei 24/2007, de 18 de
Julho, um acidente rodoviário causado pelo atravessamento de um animal na faixa
de rodagem da auto-estrada faz presumir a culpa da concessionária, podendo esta
ilidir essa culpa se demonstrar que cumpriu todas as obrigações de segurança que
sobre ela incidem, de modo a afastar a sua culpa pela ocorrência do acidente.
Não oferece qualquer controvérsia o entendimento de que a presença de um animal
na faixa de rodagem de uma auto-estrada constitui uma verdadeira “armadilha”
para os automobilistas e que esse facto anómalo é manifestamente incompatível
com a circulação automóvel à velocidade de 120 km/h.
Para a determinação da responsabilidade pelos danos resultantes do acidente
causado pela presença do animal naquele local, resta apurar quais foram as
circunstâncias que permitiram essa presença.
Ora, são notórias as dificuldades do utente lesado demonstrar tais
circunstâncias e que permitem elaborar um juízo de culpa, uma vez que aquele é
invariavelmente alheio ao aparecimento do animal na auto-estrada, não goza
aprioristicamente de qualquer possibilidade de controlo sobre a fonte do perigo
e revela a posteriori uma incapacidade quase absoluta de recolha de elementos de
prova sobre a causa da presença do animal naquele local.
Perante a insuperabilidade destas dificuldades está plenamente fundamentado o
estabelecimento de uma presunção de culpa determinante duma inversão do ónus da
prova.
E também é compreensível que o legislador tenha feito recair essa presunção de
culpa sobre as concessionárias das auto-estradas onde o acidente ocorreu.
A esta solução não foi indiferente a circunstância destas entidades estarem
legal e contratualmente obrigadas, salvo caso de força maior devidamente
verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e
comodidade, a circulação nas auto-estradas tenham sido por si construídas, quer
lhe tenham sido entregues para conservação e exploração, sujeitas ou não ao
regime de portagem (Base XXXVI/2, anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de
Outubro).
Acresce ainda que as referidas entidades também estão legal e contratualmente
obrigadas a vedar as auto-estradas em toda a sua extensão (Base XXII/5/a), anexa
ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro) bem como a estudar e implementar os
mecanismos necessários para garantir a monitorização do tráfego, a detecção de
acidentes e a consequente e sistemática informação de alerta ao utente (Base
XXXVI/3, anexa ao Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de Outubro).
Sendo sobre as concessionárias das auto-estradas que recai o dever de evitar a
presença de animais naquelas vias de circulação rápida, é lógico que seja sobre
elas que também recaia a presunção de culpa, quando esse evento não foi evitado,
além de que são elas que se encontram objectivamente em melhores condições para
investigar, explicar e provar a concreta proveniência do animal que se
atravessou na auto-estrada e causou o acidente.
Não constitui, pois, qualquer violação do direito ao processo equitativo
consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P., fazer impender o ónus da prova da
ausência de culpa sobre quem tem objectivamente a possibilidade e o dever, bem
como os conhecimentos e os meios técnicos e humanos, para controlar a fonte de
perigo do evento danoso e saber as circunstâncias que o permitiram.
2.7. Conclusão
Não se revelando que a norma contida na alínea b), do n.º 1, do artigo 12.º, do
Decreto-Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, viole qualquer parâmetro
constitucional, deve o recurso interposto ser julgado improcedente.
*
Decisão
Nestes termos, decide-se não julgar inconstitucional alínea b), do n.º 1, do
artigo 12.º, do Decreto-Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, negando-se provimento
ao recurso interposto por C., SA..
*
Custas do recurso pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades
de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei
n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 18 de Novembro de 2009
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos