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Processo 666/09
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I ? RELATÓRIO
1. Nos presentes autos em que é recorrente Ministério Público e recorrida A., S.A.,
foi interposto recurso, para aquele obrigatório, nos termos do n.º 3 do artigo
280º da CRP e do n.º 3 do artigo 72º da LTC, de acórdão proferido pelo Tribunal
do Trabalho de Faro, entre fls. 53 a 59, que desaplicou norma jurídica extraída
do Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de Junho, com fundamento na sua
inconstitucionalidade orgânica (fls. 149 a 154).
2. Face à ausência de indicação de qual a norma jurídica especificamente alvo do
presente recurso, a Relatora proferiu despacho de convite ao aperfeiçoamento do
requerimento de interposição de recurso, tendo o Ministério Público esclarecido
que a norma que teria sido desaplicada pela decisão recorrida seria a resultante
?dos artigos 1º, nº 3, 8º, nºs 1 e 2, e 10º, nº 2, do Decreto-Lei nº 237/2007,
de 19 de Junho, que determina a responsabilidade do empregador pela contra-ordenação
consistente em violação do limite máximo de duração do trabalho diário dos ?trabalhadores
móveis? (definidos no artigo 2º, alínea d), do mesmo diploma)?.
3. Notificado para o efeito pela Relatora, o recorrente produziu as seguintes
alegações, das quais constam as seguintes conclusões:
«(?)
2. Apreciação do mérito do recurso.
2.1 Após a edição do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, que instituiu o
regime geral das contra-ordenações, foi publicado o Decreto-Lei nº 491/85, de 26
de Novembro que, pela primeira vez, disciplinou a matéria das contra-ordenações
laborais.
Neste diploma, e no que respeita às ?Disposições Gerais?, não constava qualquer
preceito específico no que toca à definição da autoria das contra-ordenações,
aplicando-se, por força do artigo 1º, o disposto no Decreto-Lei nº 433/82.
2.2. O Decreto-Lei nº 491/85 foi revogado pela Lei nº 116/99, de 04 de Agosto,
que veio aprovar o regime Geral das Contra-Ordenações Laborais.
No artigo 1º surge, pela primeira vez, uma definição de contra-ordenação laboral.
Por sua vez, o artigo 4º desse Regime Geral diz-nos quais são os sujeitos
responsáveis pelas contra-ordenações laborais, figurando, logo no nº 1, alínea a),
a entidade patronal, quer fosse pessoa singular ou colectiva, associação sem
personalidade jurídica ou comissão especial.
Não constando do artigo 4º os trabalhadores mas podendo ser eles abrangidos de
acordo com a definição de contra-ordenação constante do artigo 1º, desde logo se
suscitaram dúvidas e se constatou alguma contradição entre estes dois preceitos.
Também se gerou grande polémica quer a nível doutrinário, quer jurisprudencial
sobre se, face à enumeração taxativa constante do artigo 4º, os trabalhadores
podiam ser incluídos naquele elenco. (Cfr. sobre a matéria João Soares Ribeiro
Contra-Ordenações Laborais, pag. 336 a 340 e Contra-Ordenação no Código do
Trabalho, em ?Questões Laborais?, Ano XI ? 2004, nº 23, págs. 1 a 15 e António
Beça Pereira Contra-Ordenações laborais. Breves reflexões quanto ao seu âmbito e
sujeitos, in ?Questões Laborais?, Auto VIII-2001, nº 18, págs. 142 a 147).
Concretamente, no que respeita à infracção consistente no desrespeito pelo
limite máximo de trabalho por parte dos condutores de veículos de transporte de
passageiros e face ao que dispunha o nº 6 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 272/89,
de 19 de Agosto, na redacção dada pelo artigo 7º da Lei nº 114/99, de 3 de
Agosto, que fixava a coima aplicável aos condutores, a polémica não era menor, (cfr.
autores, obras e locais anteriormente referidos).
2.3. A Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho,
revogou expressamente a Lei nº 116/99 (artigo 21º, nº 1, alínea aa)) e
estabeleceu um novo Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais (artigo 614º a
640º, do Código, no que toca ao Regime Geral).
Neste Código alterou-se a definição de contra-ordenação (artigo 614º) e deixou
de existir qualquer preceito onde se estabelecesse quais os sujeitos
responsáveis pela infracção.
Face à polémica gerada pelo regime anterior estas alterações foram, de uma forma
geral, aplaudidas.
A esse respeito João Soares Ribeiro (Contra-Ordenação no Código do Trabalho, cit.,
pág. 13):
?Como resolveu o Código do Trabalho o problema? Muito realisticamente alterando
a definição e deixando, pura e simplesmente de elencar os sujeitos, permitindo
assim que a lei livremente impute a contra-ordenação a quem tenha a seu cargo o
dever de praticar ou de se abster da prática da acção ou omissão?.
Segundo o mesmo autor, ?cabem agora no âmbito subjectivo do preceito não apenas
os sujeitos de relações de trabalho ? e diga-se ambos os sujeitos, isto é, não
só os empregadores como também os trabalhadores? (Contra-Ordenações Laborais,cit.
pág. 220).
2.4. Era, portanto, este o regime geral vigente quando foi aditado o Decreto-Lei
nº 237/2007 que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº 202/15/CE
do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Março, relativa à organização do
tempo de trabalho das pessoas que exerçam actividades móveis de transporte
rodoviário (artigo 1º, nº 2).
Após estabelecer que as disposições constantes dos artigos 3º a 5º prevaleciam
sobre as disposições correspondentes constantes do Código do Trabalho (artigo 1º,
nº 3), o artigo 10º vem dispor o seguinte:
?1- O regime geral previsto nos artigos 614º e 640º Código do Trabalho aplica-se
às contra-ordenações por violação do presente Decreto-Lei, sem prejuízo do
disposto nos artigos 11º e 12º.
2- O empregador é responsável pelas infracções ao disposto no presente Decreto-Lei.
3- (?)
Feita esta digressão pela evolução legislativa referente à matéria, vejamos
agora mais concretamente a questão de inconstitucionalidade que vem colocada.
2.5. O Tribunal Constitucional numa jurisprudência que se tem mantido
inalterável desde o Acórdão nº 56/84, vem entendendo que em matéria contra-ordenacional
a competência legislativa reservada à Assembleia da República (artigo 165º, nº 1,
alínea d) da Constituição) situa-se a nível da edição das normas ?primárias?, ou
seja, que façam parte do regime geral, podendo o Governo, no uso da sua
competência legislativa concorrente, e dentro dos limites da ?Lei-Quadro?,
delinear ilícitos contra-ordenacionais, estabelecer a correspondente punição e
moldar as regras secundárias do processo contra-ordenacional (cfr. v.g. Acórdão
nº 236/2003).
Também nos parece que não decorre do artigo 165º, nº 1, alínea d), da
Constituição, que a Assembleia não possa editar regimes gerais sectoriais tendo
em atenção as especificidades das matérias a regular, como é o caso das
infracções laborais.
O essencial é que seja o Parlamento a editar as normas básicas desse regime e
que o Governo legisle, respeitando-as.
Que a existência de mais do que um regime geral não levanta problemas de
constitucionalidade é o que se extrai do Acórdão do Tribunal Constitucional nº
403/2004. Aqui, poderiam estar em confronto duas noções diferentes de ?dimensão
de empresa?, uma a prevista no Decreto-Lei nº 433/82 (artigo 18º), outra a
prevista no Regime Geral das Contra-Ordenações Laborais (artigo 7º e 9º da Lei
nº 116/99), não tendo tal diferença suscitado qualquer problema ao Tribunal.
É evidente que essa possibilidade de existência de regimes gerais apenas
aplicável em determinadas matérias, não conduz à irrelevância do regime geral
instituído pelo Decreto-Lei nº 433/82, até porque esse é o regime supletivo
aplicável (artigo 615º do Código do Trabalho).
Aplicando agora aquele entendimento jurisprudencial ao caso dos autos, diremos o
seguinte:
O Governo, ao editar o Decreto-Lei nº 237/2007, fê-lo nos termos da alínea a) do
nº 1 do artigo 198º da Constituição, ou seja, no uso da sua competência
legislativa própria e concorrente com a da Assembleia da República.
Ora, face a tudo o que se disse anteriormente, parece-nos evidente, que ao
atribuir a responsabilidade pelas infracções ao empregador, o Governo se situou
estritamente dentro dos limites fixados pelo regime geral constante do Código do
Trabalho.
Efectivamente, a saudada alteração levada a cabo com a revogação da Lei nº 116/99,
não levou nem podia levar, atendendo à específica natureza das infracções
laborais, a exclusão de responsabilidade do empregador pela prática daquelas
contra-ordenações, antes se encontrou uma definição (artigo 614º do Código do
Trabalho) onde como sujeitos da infracção, cabe qualquer um daqueles sujeitos de
relação laboral ? o empregador e o trabalhador.
O Governo, pode, pois, conforme a natureza da infracção laboral e, eventualmente,
atendendo a outras circunstâncias, estabelecer quais os sujeitos responsáveis e
a medida dessa responsabilidade, sem que com essa actuação contrarie ou sequer
se afaste do regime geral.
A norma objecto do recurso não é, pois, organicamente inconstitucional.
2.6. Foi também esse o sentido da decisão da constante do Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 359/2001 em que se apreciou a inconstitucionalidade dos
artigos 27º, nº 2 e 4 e 29º do Decreto-Lei nº 38/99, de 7 de Fevereiro, que
considerava responsável a pessoa colectiva ou singular que efectuasse o
transporte, pela contra-ordenação consistente em o condutor do veiculo se
escusar a levar o veiculo à pesagem das balanças ao serviço da entidade
fiscalizadora, infracção punível com coima equivalente à coima correspondente à
carga máxima.
O Tribunal entendeu que o Governo, ao legislar daquela forma, não extravasara os
limites impostos pelo regime geral, no caso o Decreto-Lei nº 433/82 e, em
especial, o seu artigo 8º.
3. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1. Apenas se situa no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia
da República o estabelecimento do regime geral do ilícito de mera ordenação
social, podendo o Governo legislar em tal matéria, desde que o faça dentro dos
limites impostos por esse regime geral.
2. No uso dessa sua competência própria, pode a Assembleia definir regimes
gerais sectoriais, tendo em atenção as especificidades das matérias que visa
regular, como é o caso das infracções laborais.
3. Face à definição de contra-ordenação laboral constante do artigo 614º do
Código do Trabalho de 2003 (norma integrada no Regime Geral das Contra-Ordenações
Laborais), podem estar incluídos entre os sujeitos responsáveis pela infracção
tanto as entidades empregadoras como os trabalhadores.
4. Dessa forma, e uma vez que é respeitado aquele o regime geral, o critério
normativo, extraído dos artigos 1º, nº 3, 8º, nºs 1 e 2, e 10º, nº2, do Decreto-Lei
nº237/2007, de 19 de Junho, que determina a responsabilidade do empregador pela
contra-ordenação consistente em violação do limite máximo de duração do trabalho
diário dos ?trabalhadores móveis? (definidos no artigo 2º, alínea d), do mesmo
diploma), não viola o artigo 165º, nº 1, alínea d), da Constituição, não sendo,
por isso, organicamente inconstitucional.
5. Termos em que deverá proceder o presente recurso.» (fls. 81 a 88)
3. Devidamente notificada para o efeito, a recorrida não apresentou quaisquer
contra-alegações.
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II ? FUNDAMENTAÇÃO
5. A decisão recorrida entendeu desaplicar as seguintes normas do Decreto-Lei n.º
237/2007, de 19 de Junho, que foi aprovado pelo Governo, ao abrigo do artigo 198º,
n.º 1, alínea a), da CRP sobre matéria de competência legislativa concorrente,
ou seja, sem autorização legislativa pela Assembleia da República. As normas ora
em apreço são as seguintes:
?Artigo 1º
(?)
3 ? O disposto nos artigos 3.º a 9.º prevalece sobre as disposições
correspondentes do Código do Trabalho.?
?Artigo 8º
1 ? O período de trabalho diário dos trabalhadores móveis é interrompido por um
intervalo de descanso de duração não inferior a trinta minutos, se o número de
horas de trabalho estiver compreendido entre seis e nove, ou a quarenta e cinco
minutos, se o número de horas for superior a nove.
2 ? Os trabalhadores móveis não podem prestar mais de seis horas de trabalho
consecutivo.
(?)?
?Artigo 10º
(?)
2 ? O empregador é responsável pelas infracções ao disposto no presente decreto-lei.?
De acordo com o entendimento expresso pela decisão recorrida, o sentido
normativo extraído da conjugação destes preceitos legais feriria de
inconstitucionalidade orgânica as referidas normas jurídicas, na medida em que a
Constituição reservaria à Assembleia da República a competência para legislar
sobre o ?regime geral (?) dos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo
processo? [cfr. 165º, n.º 1, alínea d), da CRP]. Deste modo, o Governo estaria
impedido de adoptar um regime jurídico contra-ordenacional especificamente
destinado a punir a prática de infracções em matéria de organização do tempo de
trabalho dos trabalhadores móveis em actividades de transporte rodoviário
efectuadas em território nacional e abrangidas pelo Regulamento (CE) n.º 561/2006,
do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, ou pelo Acordo Europeu
Relativo ao Trabalho das Tripulações dos Veículos que Efectuam Transportes
Internacionais Rodoviários [vulgo AETR].
Ora, desde cedo, este Tribunal tem vindo a densificar o conteúdo normativo da
reserva parlamentar de competência legislativa em matéria contra-ordenacional.
Com efeito, reportando-se precisamente à alínea d) do n.º 1 do artigo 165º, da
CRP, pode ler-se no Acórdão n.º 149/94 (disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):
«5. Deste último comando resultava (como hoje resulta), pois, que ao Governo só
era permitida a edição de normas que se inserissem no regime geral do ilícito de
mera ordenação social desde que adequadamente munido de autorização da
Assembleia da República, podendo, em consequência, fora dessa inserção, emitir
legislação respeitante à definição dos comportamentos e atitudes que integrassem
esse tipo de ilícito e, bem assim, as sanções a eles aplicáveis.
Esta genérica asserção, contudo, carece de uma maior explicitação, maxime quanto
à delimitação de competências entre a Assembleia da República e o Governo, o que
este Tribunal tem levado a efeito por inúmeras vezes, mormente a partir da
prolação do seu Acórdão nº 56/84 (publicado na 1ª Série do Diário da República
de 9 de Agosto de 1984, no 3º Volume dos Acórdãos do Tribunal Constitucional,
153 e segs., e no nº 359 do Boletim do Ministério da Justiça, 281 e segs.), e
que pode sintetizar-se nos seguintes tópicos:
Compete em exclusivo à Assembleia da República, salvo se conceder ao Governo
autorização legislativa para tanto, legislar sobre o regime geral de punição do
ilícito de mera ordenação social e do respectivo processo e proceder à «desqualificação»
de crimes em contra-ordenações ou «desgraduar» contravenções puníveis com pena
restritiva da liberdade em contra-ordenações;
O Governo e a Assembleia da República têm competência concorrente para, dentro
dos limites estabelecidos naquele regime geral, definirem contra-ordenações,
alterá-las, eliminá-las e modificar a respectiva punição, bem como «desgraduar»
contravenções não puníveis com pena restritiva da liberdade em contra-ordenações,
respeitando o quadro do aludido regime geral.» (com sublinhado nosso)
O Tribunal Constitucional tem-se mostrado inabalável na afirmação de uma
competência legislativa concorrente, entre Assembleia da República e Governo,
sempre que não esteja em causa a fixação do ?regime geral dos ilícitos de mera
ordenação social e respectivo processo?, e, em especial, admitindo a
legitimidade do Governo para criar novos tipos de ilícitos contra-ordenacionais
e respectivos pressupostos. Por exemplo, a propósito de uma contra-ordenação de
fuga ao controlo do peso de camiões, cometida por trabalhador da empresa alvo de
contra-ordenação criada por decreto-lei, o Acórdão n.º 359/01 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/acordaos/)
declarou que a reserva parlamentar de competência legislativa apenas abrange ?legislar
sobre o regime geral do ilícito de mera ordenação social, isto é, sobre a
definição do ilícito contra-ordenacional, a definição do tipo de sanções
aplicáveis às contra-ordenações e a fixação dos respectivos limites e das linhas
gerais da tramitação processual? (em sentido idêntico, ver Paulo Otero /
Fernanda Palma, ?Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social?,
in «RFDUL» (Separata), 1996, n.º 2, Lex, p. 564).
Assim, na esteira do que preconiza Lopes do Rego (?Alguns Problemas
Constitucionais do Direito das Contra-Ordenações?, in «Questões Laborais», Ano
VIII, 2001, Coimbra, p. 12), o conceito de ?regime geral? encontra-se limitado à
?definição dos traços essenciais, estruturantes e fundamentais ? substantivos e
adjectivos ? que caracterizam os direitos sancionatórios?.
Importa, pois, verificar se o Governo, ao determinar que os empregadores são
responsáveis pela prática de ilícitos contra-ordenacionais em matéria de
organização do tempo de trabalho dos trabalhadores móveis, mediante a aprovação
do Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19 de Junho, legislou de modo a inovar
relativamente à natureza do tipo de ilícito contra-ordenacional, ao tipo de
sanções aplicáveis ou aos limites e linhas gerais da tramitação processual.
6. Desde logo, conforme já salientado pelo Ministério Público, a Lei nº 99/2003,
de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho, criou um Regime Jurídico das
Infracções Laborais (cfr. Artigos 614º a 640º, do Código do Trabalho), que se
assume como regime especial face ao regime geral previsto no Decreto-Lei n.º 433/82
e que não inclui qualquer norma relativa à responsabilidade subjectiva pela
prática daquelas contra-ordenações. Da opção legislativa adoptada ? por lei da
Assembleia da República ?, resulta constituir ?contra-ordenação laboral todo o
facto típico ilícito e censurável que consubstancie a violação de uma norma que
consagre direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito de relações
laborais e que seja punível com coima? (cfr. artigo 614º do Código do Trabalho,
com sublinhado nosso). Evidentemente, daqui decorre que o próprio Código do
Trabalho ? insiste-se, aprovado por lei da Assembleia da República ? determina ?
ainda que apenas indirectamente ? o âmbito de responsabilidade subjectiva contra-ordenacional,
permitindo que tanto o trabalhador como a entidade empregadora sejam sujeitos
activos de determinada infracção contra-ordenacional laboral.
Assim, sendo a norma jurídica extraída ?dos artigos 1º, nº 3, 8º, nºs 1 e 2, e
10º, nº 2, do Decreto-Lei nº 237/2007, de 19 de Junho, que determina a
responsabilidade do empregador pela contra-ordenação consistente em violação do
limite máximo de duração do trabalho diário dos ?trabalhadores móveis? (definidos
no artigo 2º, alínea d), do mesmo diploma)? não trouxe qualquer inovação à ordem
jurídica portuguesa, na medida em que a Assembleia da República já havia tomado
a decisão legislativa que sujeitava as entidades empregadores a responsabilidade
contra-ordenacional laboral.
E nem se diga que a norma ora em apreço, por excluir a responsabilidade
subjectiva dos trabalhadores, assume essa natureza inovadora. Claro está que
esta norma inclui norma especial face ao artigo 614º do Código do Trabalho, por
determinar que as contra-ordenações laborais relativas à violação de regras de
organização do tempo de trabalho dos trabalhadores de transportes rodoviários.
Contudo, tal norma jurídica não se afigura apta a inovar quanto à natureza do
tipo de ilícito contra-ordenacional, ao tipo de sanções aplicáveis ou aos
limites e linhas gerais da tramitação processual; questão essa, sim, decisiva,
para o propósito do presente aresto. Assim, não se vislumbra de que modo é que a
mesma afectaria a reserva de competência legislativa da Assembleia da República,
expressa na alínea d) do n.º 1 do artigo 165º da CRP, que permanece restrita ao
regime geral das contra-ordenações. É que esse regime geral corresponde àquele
originariamente aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro [de ora
em diante, designado por RGIMOS], no exercício da competência lei de autorização
legislativa.
Ora, nos termos do artigo 7º do RGIMOS determina-se que, tanto as pessoas
singulares como as pessoas colectivas e as associações sem personalidade
jurídica, podem ser subjectivamente responsáveis pela prática de contra-ordenações
de qualquer tipo. Como tal, a norma jurídica desaplicada pela decisão recorrida
não contraria, de modo algum, aquele preceito do regime geral das contra-ordenações
e, como tal, não é passível de configurar qualquer violação à reserva de
competência parlamentar nessa matéria.
O mesmo se diga quanto ao regime expressamente consagrado em matéria de contra-ordenações
laborais (v.g., artigos 614º a 640º do Código Trabalho). Mesmo que se
configurasse aquele regime jurídico como ?regime geral?, por configurar o quadro
paramétrico de um ramo do Direito Sancionatório Público em particular ? o que se
afigura duvidoso, na medida em que tal regime se afigura como especial face ao
RGIMOS ?, sempre se concluiria em idêntico sentido, ou seja, no sentido de que a
norma jurídica desaplicada pela decisão recorrida não contraria, de modo algum,
o regime de responsabilidade subjectiva nele fixado, conforme já supra melhor
demonstrado.
Seguindo a jurisprudência consolidada neste Tribunal, a criação deste tipo
contra-ordenacional, cuja delineação pressupõe a exclusiva responsabilidade da
entidade empregadora, não belisca ? em nada ? a reserva de competência
legislativa da Assembleia da República [artigo 165º, n.º 1, alínea d), da CRP],
antes consistindo numa legítima opção legislativa do Governo que visa apenas
assegurar uma adequada prova da prática da infracção por parte de quem beneficia
da actividade exercida por um seu funcionário e incorre assim em ?culpa in
vigilando?. Aliás, já no supra referido Acórdão n.º 359/01, a propósito do dever
legal de pesagem de transportes pesados de mercadorias, este Tribunal teve
oportunidade de justificar tal opção legislativa por parte do órgão
governamental:
«De acordo com o artigo 29º tal infracção é da responsabilidade da pessoa
singular ou colectiva que efectua o transporte. Esta imputação da infracção em
causa não tem origem em qualquer responsabilidade objectiva. De facto, o ilícito
de mera ordenação social acolhe, por regra, o princípio da culpa, ainda que não
lhe atribua a mesma censura ética (há apenas imputação do facto à
responsabilidade social do agente); daí, que o artigo 8º do regime geral das
contra-ordenações (Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro) estabeleça que ?só é
punível o facto praticado com dolo, ou nos casos especialmente previstos na lei,
com negligência?.
Todavia, em sede de ilícito de mera ordenação social, assume uma relevância
particular a questão da responsabilidade por actuação em nome de outrem, desde
logo porque se afasta do carácter eminentemente pessoal da responsabilidade
criminal. As razões que estão na base deste tipo de responsabilidade são
manifestas: prendem-se com a inadequação do direito penal clássico para fazer
face às múltiplas exigências das sociedades modernas, derivadas da
burocratização das sociedades e do facto de as grandes organizações públicas ou
privadas serem actualmente os verdadeiros protagonistas da vida económica.
A racionalidade própria das grandes organizações exige processos dinâmicos e
complexos de actuação que impõem uma cada vez maior amplitude de resposta por
parte da Administração.
Foi para obviar à impunidade resultante destas cada vez mais crescentes e
complexas tarefas, cujo desenvolvimento desemboca numa clara impunidade face à
difusa impessoalidade ou impossibilidade na descoberta do autor da infracção,
que a ideia da responsabilidade por actuação em nome de outrem começou por fazer
responder os gerentes e administradores pelas infracções ?imputáveis? à empresa.
Quando o agente factual da infracção é um trabalhador por conta de outrem (ligado
à empresa ou ao empregador por um contrato de trabalho) então a responsabilidade
por actuação em nome de outrem pode assentar na culpa in eligendo ou in
vigilando.
No nosso direito de mera ordenação social as coimas tanto podem aplicar-se às
pessoas singulares como às pessoas colectivas, sendo as pessoas colectivas ou
equiparadas responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no
exercício das suas funções ? artigo 7º do Decreto-Lei nº 433/82.
No caso do Decreto-Lei nº 38/99, de 6 de Fevereiro, a escusa do condutor em
levar o veículo às balanças para pesagem é imputada à entidade que efectua o
transporte, seja pessoa singular ou colectiva (artigo 27º, nº4 e 29º).
Ora, não se vê que estas normas se possam incluir na definição da natureza do
ilícito de ordenação social, na definição do tipo de sanções aplicáveis às
contra-ordenações e muito menos na fixação dos respectivos limites ou na
tramitação processual das contra-ordenações.
Assim, é manifesto que a edição das normas questionadas apenas pelo Governo sem
autorização legislativa do Parlamento não invade o âmbito da reserva legislativa
da Assembleia da República, pelo que a norma constante do artigo 29º com
referência ao artigo 27º, nº4, ambas do Decreto-Lei nº 38/99, de 6 de Fevereiro
não são organicamente inconstitucionais.»
Em suma, a norma jurídica desaplicada pela decisão recorrida não afecta os
traços gerais e estruturais do regime sancionatório laboral, nem tão pouco a
natureza do tipo de ilícito contra-ordenacional, do tipo de sanções aplicáveis
ou aos limites e linhas gerais da tramitação processual aplicáveis a qualquer
tipo de contra-ordenação, pelo que não padece de inconstitucionalidade orgânica,
por violação da alínea d) do n.º 1 do artigo 165º da CRP.
Aliás, recentemente, esta Secção aprovou o Acórdão nº 609/09, de 2 de Dezembro,
por unanimidade, o qual se debruçou sobre questão idêntica, tendo decidido no
mesmo sentido.
III ? DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma extraída ?dos artigos 1º, nº 3, 8º, nºs 1
e 2, e 10º, nº 2, do Decreto-Lei nº 237/2007, de 19 de Junho, que determina a
responsabilidade do empregador pela contra-ordenação consistente em violação do
limite máximo de duração do trabalho diário dos ?trabalhadores móveis? (definidos
no artigo 2º, alínea d), do mesmo diploma)?;
b) Julgar procedente o presente recurso.
E, em consequência:
c) Ordenar a remessa dos presentes autos ao tribunal recorrido, de modo a que a
decisão recorrida seja reformada em conformidade com o presente juízo de não
inconstitucionalidade, conforme decorre do n.º 2 do artigo 80º, da LTC.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2010
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Vítor Gomes
Gil Galvão (votei a decisão pelas razões do acórdão n.º 578/09)