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Processo n.º 228/09
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Comarca de Santiago
do Cacém, notificado do despacho aí proferido em 11 de Março de 2009, no qual se
recusou a aplicação do artigo 219.º, n.º 1 do CPP, na redacção dada pela Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que veda ao Ministério Público a
possibilidade de recorrer, em prejuízo do arguido, da decisão judicial que não
aplicou medida de coação de prisão preventiva, por si requerida, veio interpor
recurso de constitucionalidade obrigatório.
2. Alegando, no Tribunal Constitucional, o Procurador-Geral-Adjunto concluiu a
sua argumentação nos seguintes termos:
«1. A norma do nº 1 do artigo 219º do Código de Processo Penal, no segmento em
que veda ao Ministério Público a possibilidade de recorrer, em prejuízo do
arguido, da decisão judicial que não aplicou a medida de coação de prisão
preventiva, por si requerida, é materialmente inconstitucional, por violação dos
artigos 2°, 13°, 20°, nº 1, 32°, 165°, nº 1, alínea c) e 219° da Constituição.
2. Termos em que não deverá proceder o presente recurso, confirmando-se o juízo
de inconstitucionalidade da decisão recorrida».
Não foram apresentadas contra-alegações pelos Recorridos.
Notificado posteriormente para se pronunciar sobre a eventualidade de o objecto
do recurso não vir a ser objecto de conhecimento “pelo facto de ter havido um
mero despacho de recebimento do recurso ‘provisório’, atento o disposto no
artigo 405.º do CPP”, o Procurador-Geral-Adjunto nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Esta questão foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional em processo
idêntico ao que ora apreciamos, não se vislumbrando razões para afastar tal
jurisprudência.
Com efeito, sobre a concreta questão de constitucionalidade que se perfila nos
autos exarou recentemente este Tribunal o Acórdão n.º 356/2009 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Disse-se, nomeadamente, no citado aresto:
“8 – A questão prévia que se suscita nos autos é a de saber se, proferido pelo
juiz de instrução despacho de admissão de um recurso interposto pelo Ministério
Público para o Tribunal da Relação de uma decisão do mesmo juiz que aplicou ao
arguido medida de coação menos grave do que a por ele proposta, com o fundamento
em alegada inconstitucionalidade material do art.º 219.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29/08, no segmento em
que veda ao Ministério Público a possibilidade de recorrer, em prejuízo do
arguido, pode o Tribunal Constitucional conhecer do recurso de
constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea a) do artigo 70.º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão.
Trata-se de uma temática sobre a qual se pronunciou já o Tribunal
Constitucional no seu Acórdão n.º 267/91, publicado no Diário da República II
Série, de 23 de Outubro de 1991, a propósito, então, das normas constantes dos
artigos 371.º, 647.º/1.º e seu § 4.º, do Código de Processo Penal de 1929, e no
qual tomou posição no sentido do voto de vencido do Conselheiro Vital Moreira,
aposto ao Acórdão n.º 92/87, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional,
9.º volume, pp. 625 e segs.
Discreteando sobre ela, assim se discorreu em tal aresto:
«4 — A recorribilidade da decisão.
Esta questão prévia também suscitada pelo Procurador-Geral Adjunto neste
Tribunal, nas suas alegações, vem fundamentada essencialmente no argumento de
que «a decisão recorrida — despacho de admissão de recurso ordinário proferido
pelo tribunal a quo — é uma decisão provisória, que não vincula o tribunal
superior e insusceptível de impugnação autónoma, mediante recurso ou reclamação,
pois as partes só a podem impugnar nas alegações do recurso admitido por essa
decisão (n.º 4 do artigo 687.º do Código de Processo Civil)», não constituindo
assim tal decisão «uma decisão de tribunal» para o efeito de permitir a abertura
do recurso de constitucionalidade, invocando neste sentido as razões constantes
do voto de vencido do Cons. Vital Moreira no Acórdão n.º 92/87 (in Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 365, p. 261), que transcreve.
Vejamos.
O parâmetro constitucional acerca desta matéria consta do artigo 280.º, n.º 1,
alínea a), preceito que a Lei do Tribunal Constitucional reproduz com ligeira
alteração de redacção, e estabelece que há recurso das «decisões dos tribunais»
que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua
inconstitucionalidade. Este recurso é obrigatório para o Ministério Público
sempre que a norma desaplicada conste de convenção internacional, acto
legislativo ou decreto regulamentar.
Mas, deverá admitir-se recurso de constitucionalidade de todas as decisões dos
tribunais sem distinção ou deverá aceitar-se que a particular natureza de
algumas decisões obsta ao conhecimento do recurso de constitucionalidade
interposto?
Propende o Tribunal, decididamente, para esta segunda alternativa.
Os tribunais, de acordo com o preceituado no artigo 208.º da Constituição,
proferem decisões que devem ser fundamentadas, são obrigatórias para todas as
entidades públicas e privadas, prevalecem sobre as de quaisquer outras
autoridades e têm o seu modo de execução regulado na lei. No exercício da função
jurisdicional que lhes está cometida, aos tribunais cabe resolver um conflito
concreto entre dois sujeitos, pela utilização de critérios previamente definidos
nas normas jurídicas.
Porém, para alcançarem a decisão final de tal conflito, torna-se indispensável
que se vão proferindo decisões interlocutórias e que mais não visam do que
preparar a elaboração da decisão última da questão.
Ora, no caso em apreço, a «decisão» de que se recorre é um despacho de
admissão do recurso ordinário interposto por réu não preso nem caucionado —
situação em que o regime processual penal aplicável não admitia recurso pelo que
o julgador se sentiu na necessidade de, para admitir o recurso, julgar
inconstitucionais as normas que o proibiam.
Estas normas, do Código de Processo Penal de 1929, têm o seguinte teor:
Artigo 371.º
Do despacho de pronúncia podem recorrer o Ministério Público, a parte
acusadora e os indiciados, depois de presos ou de haverem prestado caução, e do
despacho de não pronúncia podem recorrer o Ministério Público e a parte
acusadora.
Artigo 647.º
Podem recorrer:
1.º ………………………………………………………………
2.º O réu e a parte acusadora das decisões contra eles proferidas.
§ 4.º O réu não pode recorrer da pronúncia, sem estar preso ou caucionado, nem
do despacho que julgar quebrada a caução, sem ter dado entrada na cadeia.
A «decisão» recorrida veio afinal a recusar aplicação a uma norma extraível
destes preceitos e aplicável por analogia à situação do réu pronunciado e
obrigado a prestar termo de identidade e residência por tal forma que só seria
admissível recurso do despacho de pronúncia por parte desse réu depois dele
haver cumprido tais obrigações fixadas no referido despacho — situação que se
considerou violadora das garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da
CRP).
Nos termos do artigo 687.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (CPC), «a
decisão que admita o recurso, fixe a sua espécie ou determine o efeito que lhe
compete não vincula o tribunal superior, e as partes só a podem impugnar nas
suas alegações».
Valem aqui, pertinentemente, as considerações feitas a este propósito pelo
Conselheiro Vital Moreira na declaração de voto que apôs ao Acórdão n.º 92/87
(in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 365, pp. 261 e segs.) e que se
transcrevem:
Nos termos do direito processual comum (civil e penal), os despachos de
admissão de recurso proferidos pelo tribunal a quo possuem as seguintes
características: (a) não fazem caso julgado; (b) não são susceptíveis de
impugnação autónoma, mediante recurso ou reclamação; (c) não carecem de ser
impugnadas pelas partes; (d) são necessariamente consumidas pela decisão do
tribunal ad quem, o qual, ele sim, decide afinal da admissão do recurso. O
mínimo que se pode dizer de tais despachos é que eles, afinal, não decidem da
admissão dos recursos (pois decidir significa resolver uma questão).
Com efeito, acerca do mesmo tema escreve o Prof. Castro Mendes (in Recursos,
AAFDL, 1980, p. 44): «Há decisões que se destinam necessariamente a ser
substituídas por outras ou nelas integradas, ou pelo menos podem sê-lo se as
partes o solicitarem. A lei então só permite o recurso da decisão substituta ou
absorvente; as primeiras são irrecorríveis, como não definitivas». E, mais
adiante (p. 46), refere este ilustre processualista como dela não cabendo
recurso, «a decisão que admite um recurso, fixa a sua espécie ou determina o seu
efeito».
Tem, assim, de se concluir que o despacho de admissão de recurso não tem
qualquer autonomia, porquanto a decisão final sobre tal matéria cabe sempre ao
tribunal de recurso que, independentemente de qualquer requerimento das partes,
tem o dever de se pronunciar sobre se o recurso deve ou não ser admitido, em
definitivo (artigo 701.º do CPC).
A decisão do juiz recorrido mais não é do que, como certeiramente a qualifica
Vital Moreira (voto de vencido citado) «uma pré-decisão, quando muito uma
decisão provisória, que nunca subsiste por si mesma (...)».
Não sendo estas decisões passíveis de recurso processual comum, será legítimo
e correcto admitir-se que possam ser susceptíveis de recurso de
constitucionalidade, designadamente, como no caso dos autos, de recurso
obrigatório de constitucionalidade?
Os recursos são um pedido de reponderação sobre certa decisão judicial,
apresentado a um órgão judiciariamente superior (Castro Mendes, ibidem, p. 3) e
têm como finalidade impugnar decisões judiciais que, sem a interposição do
recurso, se tornariam definitivas, formando caso julgado.
No caso do recurso de constitucionalidade, podem observar-se as mesmas
natureza e finalidades referidas aos recursos em geral, só que agora restritas à
questão de constitucionalidade. No caso de se tratar de um recurso obrigatório
para o Ministério Público (n.º 3 do artigo 280.º da CRP), a sua razão de ser é a
de obviar a que subsistam quaisquer decisões dos tribunais que desapliquem
normas com fundamento na sua inconstitucionalidade sem que o Tribunal
Constitucional seja chamado a reponderar a questão, uma vez que é o órgão a quem
«[c]compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza
jurídico-constitucional» (artigo 223.º da CRP).
Ora, destinando-se o despacho de admissão recorrido a ser substituído por
outro — este sim, definitivo — e não sendo passível de recurso comum e não
podendo sobre ele formar-se caso julgado, admitir que dele se possa interpor
recurso de constitucionalidade é, afinal, retirar ao tribunal de recurso a
possibilidade de decidir dentro da sua competência sobre a questão da
admissibilidade ou inadmissibilidade do recurso, tornando desde logo definitiva
a questão (a constitucionalidade) quando a decisão em que ela se insere é
meramente provisória, pois ainda não está tomada por forma a que sobre ela se
venha a formar caso julgado.
A decisão que viesse a ser proferida pelo Tribunal Constitucional — que faz,
esta sim, caso julgado e se impõe aos outros tribunais — iria condicionar por
forma radical a decisão do tribunal de recurso que era, afinal, o tribunal ao
qual verdadeiramente competiria definir a questão da admissibilidade do recurso.
De qualquer modo, a não admissibilidade, neste momento, do recurso de
constitucionalidade em nada prejudicará a finalidade do respectivo recurso.
Com efeito, ou o Tribunal da Relação decide não admitir o recurso e, então, as
normas em causa serão aplicadas pois se modificou o julgamento sobre a sua
conformidade constitucional — o que obviará à interposição de qualquer recurso
obrigatório de constitucionalidade, embora tal decisão pudesse gerar outro tipo
de recurso, ou então, a Relação confirma a decisão recorrida e a consequente
desaplicação das normas e, então, desta decisão definitiva, caberá recurso de
constitucionalidade, a interpor obrigatoriamente pelo Ministério Público do
acórdão da Relação, mesmo que nele a confirmação da decisão de 1.ª instância não
fosse expressa, porquanto, só de tal decisão poderia decorrer — se sobre ela
viesse a formar-se caso julgado — a violação da integridade da ordem jurídica
cuja defesa é uma das razões porque a lei confere ao Ministério Público
legitimidade para o recurso obrigatório de constitucionalidade (cfr. Jorge
Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo II, 2.ª ed., Coimbra, 1988, pp.
376-377).
Entende o Tribunal que o princípio decorrente do artigo 687.º, n.º 4, do CPC —
as decisões de admissão de recursos que necessariamente têm de ser substituídas
por outras ou que nelas vêm a ser integradas, são enquanto tais não definitivas
e por isso irrecorríveis — é um princípio também válido em processo
constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LOTC).
Neste sentido — isto é, de que os recursos previstos no n.º 1 do artigo 280.º
da CRP só serão de admitir de decisões definitivas e não meramente provisórias —
decidiu, embora num contexto totalmente diferenciado, o Acórdão deste Tribunal
n.º 151/85 (in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 360 (suplemento), p. 710).
O que significa que é inteiramente procedente a questão prévia suscitada pelo
Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal quanto a irrecorribilidade
da decisão em apreço”.
Esta argumentação, cuja bondade se sufraga, é completamente
transponível para o caso dos autos.
Assim sendo, impõe-se concluir pelo não conhecimento do recurso de
constitucionalidade.”
É esta a jurisprudência que cumpre agora reiterar, para ela se remetendo
inteiramente.
III – Decisão
3. Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso de
constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Julho de 2009
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos