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Processo n.º 28/09
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I ? Relatório
1. A., inconformada com a decisão sumária proferida a 21 de Abril de 2009, vem
dela reclamar, concluindo nos seguintes termos:
III. CONCLUSÕES:
1. A decisão do Desembargador Relator de recusa de transcrição da prova
produzida em audiência, com revelação da aplicação de um quadro legal que não
tinha sido evidenciado na anterior decisão que relatara, constitui um incidente
pós-decisório autónomo em que se pode enxertar a impugnação da conformidade
constitucional desse regime ? e que pode ter repercussões na decisão relatada.
2. A suscitação da desconformidade constitucional dessa recusa logo após o seu
conhecimento preenche o requisito de invocação durante o processo.
3. Uma decisão do Tribunal Constitucional favorável à ora reclamante sobre essa
questão poderia ter implicações directas no deferimento da pretensão formulada
ao Insigne Desembargador Relator, na validade da anterior decisão relatada por
este, ou em ambas ? já que a dimensão normativa da norma impugnada, como se
espera explicar em alegações, não é coincidente.
4. Podendo interferir na decisão substantiva, por via de um juízo de
inconstitucionalidade, há interesse e utilidade no conhecimento do recurso, que
foi interposto em tempo e de acordo com os requisitos impostos pela lei e pela
jurisprudência constitucional.?
2. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
?3. Entende-se ser de proferir decisão sumária ex vi artigo 78.º-A, n.º 1, da
Lei do Tribunal Constitucional, por não se encontrar preenchido pressuposto
essencial ao conhecimento do recurso. Como resulta do artigo 280.º, n.º 1,
alínea b), da Constituição e do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do
Tribunal Constitucional, para que se possa lançar mão do recurso de fiscalização
concreta da constitucionalidade ali previsto, impõe-se a suscitação de uma
questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo. Esta expressão ?
durante o processo ? tem sido entendida, de acordo com impressiva jurisprudência
constitucional, como correspondendo à manutenção do poder jurisdicional do
tribunal recorrido que, nos termos do artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo
Civil, se esgota, em regra, com a prolação da sentença. Assim, até que seja
proferida a decisão final, deve o interessado suscitar a questão de
constitucionalidade.
4. O Tribunal Constitucional tem vindo a entender, no entanto, que, em
determinados casos excepcionais, não é exigível ao recorrente constitucional a
observância deste último requisito, nomeadamente quando não lhe assistiu
oportunidade processual para intervir nos autos em momento anterior ou quando a
aplicação do preceito ou conteúdo normativo que pretende ver fiscalizado se
apresenta como insólita ou inesperada, caracterizando-se a decisão recorrida
pelo seu carácter de surpresa quanto a este aspecto. Nestes casos, ainda que a
suscitação da questão não ocorra já durante o processo naquele sentido atribuído
à expressão, deve no entanto a mesma ser concretizada pelo sujeito processual
que posteriormente venha a pretender interpor recurso de constitucionalidade no
primeiro momento ou oportunidade processual de que disponha para o efeito, sob
pena de extemporaneidade.
5. Na tarefa de averiguar o que possa constituir decisão surpresa para efeitos
de dispensa do ónus de que vimos curando, importa ter em conta alguns aspectos.
Nomeadamente, como se referiu no Acórdão n.º 489/94 (publicado no Diário da
República, II Série de 16 de Dezembro de 1994) deste mesmo Tribunal
Constitucional, ?cabe às partes considerar antecipadamente as várias hipóteses
de interpretação razoáveis das normas em questão e suscitar antecipadamente as
inconstitucionalidades daí decorrentes antes de ser proferida a decisão.? A
estratégia processual a adoptar pelos sujeitos deve assim ter em consideração as
exigências relacionadas com um eventual recurso de constitucionalidade a
interpor em momento posterior.
5.1. O objecto do recurso interposto prende-se com a aplicação da nova redacção
do artigo 412.º do CPP na interpretação de que deixa de haver lugar a
transcrição da prova produzida oralmente em audiência de julgamento. Tendo a
decisão recorrida sido proferida já na vigência de lei processual alterada, face
ao teor do artigo 5.º, n.º 1, do CPP, segundo o qual ?a lei processual penal é
de aplicação imediata (?)?, cabia ao Recorrente antever a possibilidade de
aplicação das alterações. Deste modo, sendo a decisão proferida na vigência de
nova lei processual, o ónus da suscitação atempada da questão de
constitucionalidade ? na medida em que seria razoável representar tal hipótese
interpretativa ? só resultaria satisfeito se a Recorrente tivesse logrado
colocar a mesma perante a instância a quo na primeira oportunidade de que dispôs
para tal efeito.
5.2. Impunha-se assim tal suscitação no momento do requerimento em que a
Recorrente solicitou a transcrições. E nem se diga que só através da resposta
dada pelo Relator ao mesmo requerimento é que aquela se apercebeu ? ou teve
oportunidade processual para se aperceber ? da aplicação da nova redacção do
artigo 412.º do CPP na interpretação já concretizada. É que, tendo a decisão a
quo sido proferida após a entrada em vigor de diploma que alterou
significativamente diversas disposições da lei penal adjectiva, atenta a regra
geral sobre sucessão de leis deste tipo no tempo supra mencionada, não deixava
de lhe caber ? aproveitando a formulação do referido Acórdão n.º 489/94 ? a
consideração antecipada das várias hipóteses de interpretação razoáveis das
normas aplicáveis e, consequentemente, a suscitação antecipada das
inconstitucionalidades que daí pudessem, em sua óptica, decorrer. Ora,
confrontando a nova redacção do artigo 412.º, n.º 4, com a anterior, verifica-se
que, tendo sido eliminada a expressão ?havendo lugar a transcrição?, tem-se
obviamente por razoável presumir que a mesma deixa de ter lugar. No mínimo, tal
interpretação não pode ser considerada insólita ou imprevisível.
5.3. Mas o ónus de arguição da inconstitucionalidade em tal requerimento deriva
de mais do que de um mero dever de diligência e atenção processuais. Lendo
atentamente o acórdão recorrido percebe-se claramente que o Tribunal atentou na
lei processual que resultou da revisão de 2007. Assim, a fls. 4932, refere-se
nomeadamente que ?este n.º 3 do art.417.º do C.P.P., na redacção que lhe foi
dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto (?).? A exigência de antecipação da
aplicação da lei nova sai, por esta via, reforçada. Aliada esta exigência (da
qual resulta um ónus ? inobservado ? a cargo da Recorrente) à razoabilidade da
interpretação que foi dada ao artigo 422.º do CPP, não pode deixar de se
concluir que a suscitação da inconstitucionalidade poderia ? e deveria ? ter
ocorrido logo no requerimento de fls. 4967. O que, no entanto, não se verificou,
assim se concluindo que a suscitação da inconstitucionalidade ocorreu
extemporaneamente o que redunda na impossibilidade de conhecimento do objecto
dos autos.?
3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se
no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II ? Fundamentação
4. A reclamação deduzida carece manifestamente de fundamento. Com efeito, a
argumentação da Reclamante em nada abala a fundamentação da decisão sumária
reclamada e o que se dispôs a propósito da não suscitação atempada (i.e. durante
o processo, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo, nos
termos do disposto no artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e das
oportunidades processuais que teve de o fazer. Uma decisão só pode ser
qualificada como surpresa se o interessado não teve qualquer oportunidade de vir
ao processo e tomar uma posição sobre a mesma.
É certo que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem aceite e reconhecido
situações-limite em que não é exigível o cumprimento deste ónus por parte do
recorrente. Tal sucede quando, por exemplo, o interessado não teve qualquer
oportunidade processual para intervir, formulando nos termos tidos por
convenientes, a impugnação jurídico-constitucional atinente a determinada norma,
respectivo segmento, conjunto de normas ou dimensão normativa.
A ausência de oportunidade processual foi já aferida quando, entre outras
situações, o Tribunal considerou não ser exigível, ao recorrente, a antecipação
da aplicação ao caso concreto de determinada norma ou interpretação normativa (é
o caso, por exemplo, dos Acórdãos n.ºs 61/92 e 272/92, publicados,
respectivamente, no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto e 23 de
Novembro de 1992). Para que tal excepção proceda, no entanto, é imperioso que se
esteja perante uma factualidade de tal modo anómala ou excepcional que a
situação de aplicação ou interpretação normativa seja realmente imprevista ou
inesperada em termos tais que a antecipação da mesma e, consequentemente, a
suscitação da questão de constitucionalidade em momento anterior ao do
esgotamento do poder jurisdicional do tribunal recorrido, não seja exigível ao
interessado. Como se afirmou no Acórdão n.º 479/89, publicado no Diário da
República, II Série, de 24 de Abril de 1992, ? (?) desde logo terá de ponderar-se
que não pode deixar de recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem as
várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e
de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras
palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada).
E isso ? acrescentar-se-á também logo mostra como a simples «surpresa» com a
interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos,
certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais (voltando
agora à nossa questão) em que seria justificado dispensar os interessados da
exigência de invocação «prévia» da inconstitucionalidade perante o tribunal a
quo.? (sublinhado nosso) Assim, e face à actual redacção do artigo 412.º do CPP,
aliada à regra da aplicação imediata da lei processual nova e à comprovação da
sua prévia aplicação, ainda que a outro propósito, pelo Tribunal a quo no
acórdão de fls. 5182 e seguintes, não deixava de impender sobre a então
Recorrente a representação da possibilidade de aplicação de tal preceito e,
consequentemente, a antecipação do problema de inconstitucionalidade que
pretendia ver apreciado.
III ? Decisão
5. Face ao exposto acordam, em conferência, indeferir a presente reclamação e,
em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não tomar
conhecimento do recurso.
Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 19 de Outubro de 2009
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos