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Processo n.º 218/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No processo n.º 4066/07.4TBCSC – B, do Tribunal de Família e Menores do Tribunal
de Cascais, em 2-2-2009, foi proferido o seguinte despacho:
“Já tivemos oportunidade de referir a nossa opinião acerca da utilização da
aplicação informática Citius no que diz respeito aos Magistrados Judiciais
seguindo, em anexo, essa nossa exposição, da qual se pode ler que entendemos
que a tramitação dos processos através do Citius não pode ser imposta aos
Juízes, e porque consideramos que o Citius é ilegal e insegura não a
aplicaremos.
A questão que ora nos é suscitada tem a ver com a utilização do Citius pelos
senhores advogados.
A portaria nº 114/2008 de 06-02, alterada pelas portarias nºs 457/2008 de 20-06
e 1538/2008 de 30-12 impõe aos senhores advogados, tal como faz aos Juízes, a
utilização da aplicação informática Citius.
Em nosso modesto entendimento tal imposição é também inconstitucional uma vez
que bule directamente com o disposto nos artºs 20ºe 13º da Constituição da
República Portuguesa (CRP).
Vejamos.
O artº 20º da CRP visa assegurar o acesso dos cidadãos à justiça e à resolução
das suas causas por um órgão especificamente destinado a tal: os Tribunais.
Esse acesso não pode ser, de forma alguma, limitado nem sequer por motivos
económicos sendo que se trata de um direito fundamental que, por isso mesmo,
beneficia de uma protecção constitucional directa – o que já não sucede com as
normas constitucionais programáticas – e é exequível obrigando o Estado a
assegurar esse acesso.
Ora, ao obrigar os senhores advogados a utilizarem unicamente uma aplicação
informática da envergadura do Citius para o envio das peças processuais e todos
os requerimentos – que, como já referimos não oferece qualquer segurança
permitindo ao poder político um acesso directo ao que se passa em cada processo
– sem lhes permitir o uso de outros meios, tais como o fax, o correio
electrónico ou simplesmente os correios normais, está-se a coarctar, na
verdade, a limitar o acesso à justiça uma vez que não se pode impor que cada
advogado tenha um computador, acesso à internet e que seja obrigado a ceder a
sua assinatura para que a mesma passe a ser electrónica face aos graves perigos
que tal cedência implica.
Aliás, sendo a assinatura pessoal e intransmissível, estando tutelada pelos
direitos da personalidade, nomeadamente pelo artº 72º do Código Civil (CC), como
se pode obrigar um cidadão, advogado ou não, a ceder contra a sua vontade ou com
reserva a sua assinatura?
E perguntamos quando é que os faxes foram abolidos?
Qual a lei ou decreto que acabou com a actividade dos CTT’s?
Não pode um advogado enviar uma peça manuscrita ao tribunal? Porquê?
E se a luz falha e o advogado não consegue aceder em tempo útil ao Citius
correndo o risco de não poder cumprir com o prazo e ver precludida a
possibilidade de praticar o acto?
Quem é que aí responde perante o respectivo cliente que mandatou esse advogado?
E quem é que paga a multa do artº 145º CPC nas situações em que o advogado, por
falta de possibilidade técnica porque o computador falhou, porque as linhas da
net estão sobrelotadas ou porque perdeu o cartão que lhe dá acesso ao Citius ou
porque este não é correctamente lido pelo sistema, não consegue cumprir um prazo
legal enviando a peça ou requerimento já fora de tal prazo?
Não se pode, em nosso entender, impor um único meio de enviar peças ou
requerimentos processuais, quando na prática existem tantos outros, sob pena de
se limitar tremendamente o exercício de um direito fundamental cuja tutela não
admite essa limitação.
E os cidadãos comuns que recorrem ao Tribunal sem a necessidade de constituírem
mandatários como acontece na grande maioria das acções que tramitamos neste
Tribunal de Família e Menores, também eles, alguns dos quais analfabetos, são
obrigados a possuir um computador?
E são obrigados a ter gastos com a internet quando em tantas situações estamos
a lidar com pessoas que estão abaixo do limiar da pobreza e os que não estão mal
conseguem alimentar os filhos quanto mais pagar uma conta de internet?
Mas se se admite que as portarias em apreço não abrangem o cidadão comum, como
parece ser, então aí as mesmas infringem também o disposto no artº 13º da CRP
porquanto obrigam certos intervenientes a utilizar um sistema informático e
outros não, violando, assim, o princípio constitucional da igualdade, sem
existir um fundamento para esse tratamento diferenciado.
Ora, sendo, em nosso modesto entendimento1’, as referidas portarias
inconstitucionais também em relação aos Juízes por violação directa do disposto
no artº 203º CRP, devendo estes se recusar a aplicar qualquer instrumento
normativo que viole os princípios constitucionais conforme manda o artº 204º
CRP, não pode a juiz signatária deste despacho impor aos senhores advogados algo
que, no seu entender, é inconstitucional.
E não pode impor aquilo que a própria não pretende seja aplicável a si mesma.
Aliás, as referidas portarias, parecem esquecer o disposto no artº 150º do CPC,
cuja redacção foi dada ao mesmo tempo que a criação do artº 138º-A CPC (onde as
portarias encontram a sua aparente legitimação) pelo DL nº 303/2007 de 24-08.
Diz o artº 150º CPC o seguinte:
“1. Os actos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes são
apresentados a juízo preferencialmente por transmissão electrónica de dados, nos
termos definidos na portaria prevista no nº 1 do artigo 138º-A, valendo como
data da prática do acto processual a da respectiva expedição.
2. Os actos processuais referidos no número anterior também podem ser
apresentados a juízo por uma das seguintes formas:
a) Entrega na secretaria judicial, valendo como data da prática do acto
processual a da respectiva entrega;
b) Remessa pelo correio, sob registo, valendo como data da prática do acto
processual a da efectivação do respectivo registo postal;
c) Envio através de telecópia, valendo como data da prática do acto processual a
da expedição.
3. (…)
4. (…)
5. (...)
6. (...)
7. (…)
8. (...)
9. (...)“ negrito e sublinhado nossos.
Ora, não pode uma portaria sobrepor-se a uma lei pelo que as mesmas também
padecem de ilegalidade, podendo os senhores advogados entregar peças processuais
e outros requerimentos pelas formas já previstas no citado artº 150º CPC nº 2,
cabendo à secretaria, nos termos do nº 9 do mesmo artº 150º CPC, a digitalização
das respectivas peças.
Em caso algum se vislumbra que a entrega por parte dos senhores advogados de
peças processuais ou requerimentos fora do Citius e de acordo com o disposto no
nº 2 do artº 150º CPC seja motivo de indeferimento ou não recebimento das
mesmas peças.
Assim, em face de todo o acima exposto considero correctamente entregue o fax a
que se reporta a presente conclusão avulsa, devendo os mesmos serem, por ora,
juntos aos autos principais de divórcio.”
O Ministério Público interpôs recurso desta decisão, nos seguintes termos:
O Magistrado do MºPº, notificado da douta decisão proferida e respectivo
documento anexo, que, invocando a inconstitucionalidade da portaria nº 114/2008
de 6/2, alterada pelas portarias 457/2008 de 20/6 e 1538/08 de 30/12, recusou a
sua aplicação e, em consequência, admitiu a autuação, por apenso, como
providência cautelar de arrolamento, de um requerimento entregue via fax, vem,
nos termos das disposições conjugadas dos artº 70 nº 1 al. a), 72 nº 1 al. a),
75 75-A, nº 1 e 76, todos da Lei do Tribunal Constitucional, interpor recurso
para o Tribunal Constitucional.
Apresentou alegações, com as seguintes conclusões
“…A norma constante dos artigos 1º, 4º e 5º da Portaria nº 114/08, interpretada
em termos de terem de ser obrigatoriamente praticados por via informática,
através do sistema CITIUS, os actos processuais das partes, no âmbito de acções
cíveis, não constitui limitação ou restrição ao direito de acesso aos tribunais,
mas - mero condicionamento ou regulamentação de tal direito fundamental, no que
respeita à forma dos actos.
Não afectando as normas regulamentares em questão os princípios fundamentais ou
estruturantes do processo civil, tal como se mostram enunciados na lei, está
assegurada a possibilidade de – através da utilização dos poderes do juiz na
condução do processo, do princípio da cooperação e do direito à invocabilidade
do “justo impedimento”; a remoção adequada de quaisquer obstáculos ou
dificuldades, anormais ou excepcionais, no acesso à justiça, decorrentes da
opção pelo processo electrónico.
Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
Fundamentação
1. Da delimitação do objecto do recurso
O Ministério Público veio interpor recurso da recusa pela decisão recorrida de
aplicação da Portaria n.° 114/2008, de 6 de Fevereiro, com as alterações
introduzidas pelas Portarias n.° 457/2008, de 20 de Junho, e n.º 1538/2008, de
30 de Dezembro.
Nas alegações apresentadas restringiu o objecto do recurso à interpretação dos
artigos 1.º, 4.º e 5.º, da referida Portaria, com o sentido dos actos dos
mandatários judiciais em processo civil terem obrigatoriamente de ser praticados
através do sistema informático CITIUS, sob pena de irrelevância processual,
devendo ser esta a dimensão normativa cuja constitucionalidade cumpre verificar.
2. Do mérito do recurso
O artigo 138.°- A, do Código de Processo Civil, introduzido neste diploma pelo
artigo 2.º, da Lei n.º 14/2006, com a redacção resultante do Decreto-lei n.º
303/2007, de 24 de Agosto, passou a dispor no seu n.º 1, que “a tramitação dos
processos é efectuada electronicamente em termos a definir por portaria do
Ministro da Justiça”.
Este novo dispositivo consagrou uma importante mudança na forma de registo dos
actos praticados em processo civil, preterindo-se o suporte em papel, em favor
de um sistema informático, denominado CITIUS, no prosseguimento duma política
visando uma progressiva desmaterialização dos processos judiciais.
Conforme se explicou no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto,
“…estabelece ainda o Programa do XVII Governo Constitucional, enquanto
objectivo fundamental, a inovação tecnológica da justiça, para a qual é
essencial a adopção decisiva dos novos meios tecnológicos. No âmbito da promoção
desta «utilização intensiva das novas tecnologias nos serviços de justiça, como
forma de assegurar serviços mais rápidos e eficazes», define-se como objectivo
«a progressiva desmaterialização dos processos judiciais» e o desenvolvimento
«do portal da justiça na Internet, permitindo-se o acesso ao processo judicial
digital». Assim, as alterações acolhidas nesta matéria visam permitir a prática
de actos processuais através de meios electrónicos, dispensando-se a sua
reprodução em papel e promovendo a celeridade e eficácia dos processos.”
No seguimento do disposto no artigo 138.º - A, do C.P.C., veio a ser aprovada a
Portaria n.° 114/2008, de 6 de Fevereiro - entretanto, já alterada pelas
Portarias n.° 457/2008, de 20 de Junho, e n.º 1538/2008, de 30 de Dezembro -, a
qual veio dispor sobre várias matérias atinentes à tramitação electrónica dos
processos civis, nomeadamente: apresentação de peças processuais e documentos
por transmissão electrónica de dados (artigos 3.° a 14.° - C); distribuição por
meios electrónicos (artigos 15.° e 16°); actos processuais de magistrados e
funcionários em suporte informático (artigos 17.° a 21.º); notificações
(artigos 21.º - A a 21.º - C); consulta electrónica de processos (artigo 22.°);
organização do processo (artigo 23.º); e comunicações entre tribunais (artigos
24.° e 25.°).
A decisão recorrida recusou a aplicação desta Portaria, quando interpretada no
sentido de impor aos mandatários judiciais a apresentação de peças processuais
em processo civil por transmissão electrónica, através do sistema informático
CITIUS.
Como fundamento desta recusa invocou a violação do direito ao acesso aos
tribunais (artigo 20.º, da C.R.P.), por criar dificuldades aos mandatários
judiciais na defesa dos direitos dos seus constituintes, e do princípio da
igualdade (artigo 13.º, da C.R.P.), uma vez que os cidadãos não representados
por advogado podem intervir nos processos sem estarem obrigados à utilização
daquele sistema informático, segundo a interpretação da decisão recorrida.
Não competindo ao Tribunal Constitucional controlar a correcção da interpretação
acolhida pela decisão recorrida, resta verificar se a mesma viola os parâmetros
constitucionais indicados.
Estamos perante uma interpretação de normas regulamentares impositiva da prática
pelos mandatários judiciais dos actos em processo civil, por transmissão
electrónica, através de um determinado sistema informático.
Se é verdade que essa imposição se traduz num condicionamento à intervenção das
partes, representadas por mandatários, no processo civil, uma vez que estes não
terão possibilidade de escolha entre os diferentes meios possíveis de
apresentação em juízo das peças processuais da sua autoria, considerando que o
meio de comunicação imposto apenas exige um acesso à Internet e o registo prévio
do mandatário junto da entidade responsável pela gestão dos acessos ao sistema
informático (artigo 4.º, da Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro), não se
pode dizer que esse condicionamento se traduz numa afectação do direito de
acesso aos tribunais, dado que essas exigências poderão ser facilmente cumpridas
por qualquer profissional do foro.
E se a imposição de um único meio de apresentação pelos mandatários judiciais
das peças processuais pode determinar, nalgumas situações, a impossibilidade de
cumprimento dos prazos legais por deficiências do funcionamento prático da
transmissão electrónica, essas situações poderão ser solucionadas através da
invocação da figura do justo impedimento, prevista no artigo 146.º, do Código de
Processo Civil, o que impedirá que as partes não possam defender os seus
direitos em tribunal por causa da obrigatoriedade da utilização exclusiva
daquele meio de intervenção processual.
Relativamente à invocada violação do princípio da igualdade, por comparação com
a liberdade de escolha do meio de apresentação de peças processuais de que gozam
as partes não representadas por advogados, é manifesto que a existência de
patrocínio judiciário confere à parte representada por advogado uma maior
facilidade de intervenção processual, resultante dos especiais conhecimentos e
experiência do seu representante, que não permite equiparar as duas situações
para efeitos de aplicação do princípio da igualdade.
Sendo diferente a situação em que se encontra a parte não representada por
advogado, daquela que usufrui dessa representação, pela maior facilidade que
esta tem em intervir no processo, justifica-se, atenta aquela distinção, que a
imposição da utilização do CITIUS para a apresentação de peças processuais só
abranja os actos praticados por mandatário judicial.
Não se constatando que a interpretação recusada viole qualquer parâmetro
constitucional, deve o recurso ser julgado procedente.
*
Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a interpretação dos artigos 1.º, 4.º e 5.º, da
Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro, com o sentido dos actos dos
mandatários judiciais em processo civil terem obrigatoriamente de ser praticados
através do sistema informático CITIUS, sob pena da sua irrelevância processual.
e, em consequência,
b) julgar procedente o recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida,
em conformidade com o presente julgamento.
*
Sem custas.
Lisboa, 8 de Julho de 2009
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Mário Torres
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos
1 Pelos motivos que constam do despacho que segue em anexo.