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Processo n.º 298/09
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I − Relatório
1. No processo n.º 142/09. 7TBPTM – A, do Tribunal de Família e Menores de
Portimão, em despacho proferido após se efectuar uma análise crítica do novo
sistema de tramitação electrónica dos processos civis, decidiu-se o seguinte:
“…ao abrigo do disposto do art. 204.º, da CRP, recuso a aplicação das normas que
a seguir se referem com fundamento na respectiva inconstitucionalidade e
ilegalidade nos termos infra enunciados:
– inconstitucionalidade orgânica e material da norma constante do art. 17.º, n.º
1, da Portaria n.º 114/2008 (alterada pelas Portarias n.º 457/2008, de 20 de
Junho, 1538/2008, de 30 de Dezembro) por violação do disposto nos art. 164.º,
al. m) (reserva legislativa absoluta da AR), art. 215º, n.º 1 (unidade do EMJ),
art. 2.º (separação de poderes) e 203.º (independência dos tribunais e dos
juízes), todos da CRP;
– inconstitucionalidade material da norma constante do art. 138.º A do CPC
interpretada no sentido de que a mesma remete para Portaria do Ministro da
Justiça a regulação das disposições processuais relativas a actos dos
magistrados nos termos depois regulados no art. 17.º, n.º 1, da Portaria n.º
114/2008, por violação do disposto nos arts. 112º, n.º 5 (tipicidade) da CRP.
– ilegalidade da norma constante do art. 17º, n.º 3, da Portaria n.º 114/2208,
interpretada à luz do art. 2.º, al. c) do Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de
Agosto (substituição da assinatura autógrafa pela assinatura electrónica), por
violação do disposto no art. 157.º, n.ºs 1 e 3, do CPC.
Notifique as partes com cópia, sendo ainda o Ministério Público para os efeitos
do disposto no art. 280º, n.º 1, al. a), e n.º 3, da CRP.
Com os fundamentos expostos, consigno que este despacho e os subsequentes serão
proferidos e remetidos à secção em folha impressa ou manuscrita.”
2. O Ministério Público veio, desse despacho, interpor recurso para o Tribunal
Constitucional.
Diz, no seu requerimento:
“O presente recurso tem em vista a apreciação da inconstitucionalidade:
- Da norma constante do artigo 17.º, n.º 1 da Portaria n.º 114/2008, de 6 de
Fevereiro (alterada pelas Portarias n.º 457/2008, de 20 de Junho e n.º
1538/2008, de 30 de Dezembro), cuja aplicação foi recusada no referido despacho
com fundamento em que tal norma é orgânica e materialmente inconstitucional, por
violação dos artigos 2.º, 164.º, alínea m), 203.º e 215.º, n.º 1, todos da
Constituição da República Portuguesa;
- Da norma constante do artigo 138.º – A do Código de Processo Civil,
interpretada no sentido em que a mesma remete para Portaria do Ministério da
Justiça a regulação das disposições processuais relativas a actos dos
magistrados nos termos depois regulados no artigo 17.º, n.º1 da Portaria
114/2008, cuja aplicação foi, recusada no referido despacho com fundamento em
que tal norma é materialmente inconstitucional por violação do disposto no
artigo 112.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
O presente recurso tem ainda em vista a apreciação da ilegalidade da norma
constante do art. 17º nº 3, da Portaria nº 114/2008, interpretada à luz do art.
2º, al. c), do Decreto-Lei nº 290-D/99, de 2 de Agosto – substituição da
assinatura autografa pela assinatura electrónica – por violação do disposto no
art. 157º nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil.”
Notificado para alegar, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, junto do Tribunal
Constitucional, após considerar inadmissível o recurso quanto à questão de
legalidade, concluiu o seguinte:
“1.º A norma constante do artigo 138º-A, do Código de Processo Civil, ao admitir
que constem de diploma meramente regulamentar – portaria do Ministério da
Justiça – aspectos atinentes ao regime dos actos processuais, nomeadamente a
previsão da sua prática em suporte electrónico e a respectiva regulamentação
adjectiva, não viola o princípio constante do artigo 112º, nº 5, da Constituição
da República Portuguesa.
2º A norma constante do nº 1 do artigo 17º da Portaria nº 114/08, alterada pelas
Portarias nºs 457/08 e 1538/08, ao prever que os actos dos magistrados devam ser
praticados em suporte electrónico, através do sistema CITIUS (sem,
naturalmente, precludir ou pôr em causa os princípios estruturante, afirmados,
nomeadamente, pelos artigos 265º e 265º-A do Código de Processo Civil) não tem
natureza estatutária, versando apenas sobre a matéria da forma de actos
processuais, não pondo em causa os princípios constitucionais da independência
dos tribunais, da separação de poderes e da unidade estatutária dos juízes dos
tribunais judiciais.
3º Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. Esta questão foi já apreciada e decidida pelo Tribunal Constitucional não se
vislumbrando razões para afastar tal jurisprudência.
Com efeito, sobre a concreta questão de constitucionalidade que se perfila nos
autos exarou recentemente este Tribunal o Acórdão n.º 293/2009 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Disse-se, nomeadamente, no citado aresto:
1. Da delimitação do objecto do recurso
No requerimento de interposição de recurso afirmou-se que se pretendia ver
apreciada a ilegalidade “da norma constante do artigo 17º, nº 3, da Portaria nº
114/2008, interpretada à luz do artigo 2º, alínea c), do Decreto-Lei nº
290-D/99, de 2 de Agosto (substituição de assinatura autografa pela assinatura
electrónica), por violação do disposto no artigo 157º, nºs 1 e 3 do Código de
Processo Civil”.
Contudo, nas suas alegações, o recorrente pronunciou-se pela inadmissibilidade
do recurso relativamente a esta questão, restringindo, assim, o seu objecto, o
qual passou a abranger apenas as questões de constitucionalidade colocadas.
2. Da constitucionalidade da norma constante do artigo 138º – A, do C.P.C.
A decisão recorrida recusou a aplicação do disposto no artigo 138.º – A, do
C.P.C., na parte em que remete para portaria a regulação das disposições
processuais relativas a actos dos magistrados, com fundamento na violação do
disposto no artigo 112.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa
(C.R.P).
O artigo 138. °- A, do Código de Processo Civil, introduzido neste diploma pelo
artigo 2.º, da Lei n.º 14/2006, com a redacção resultante do Decreto-lei n.º
303/2007, de 24 de Agosto, passou a dispor no seu n.º 1, que “a tramitação dos
processos é efectuada electronicamente em termos a definir por portaria do
Ministro da Justiça”.
Este novo dispositivo consagrou uma importante mudança na forma de registo dos
actos praticados em processo civil, preterindo-se o suporte em papel, em favor
de um sistema informático, denominado CITIUS, no prosseguimento duma política
visando uma progressiva desmaterialização dos processos judiciais.
Conforme se explicou no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto,
“…estabelece ainda o Programa do XVII Governo Constitucional, enquanto objectivo
fundamental, a inovação tecnológica da justiça, para a qual é essencial a
adopção decisiva dos novos meios tecnológicos. No âmbito da promoção desta
«utilização intensiva das novas tecnologias nos serviços de justiça, como forma
de assegurar serviços mais rápidos e eficazes», define-se como objectivo «a
progressiva desmaterialização dos processos judiciais» e o desenvolvimento «do
portal da justiça na Internet, permitindo-se o acesso ao processo judicial
digital». Assim, as alterações acolhidas nesta matéria visam permitir a prática
de actos processuais através de meios electrónicos, dispensando-se a sua
reprodução em papel e promovendo a celeridade e eficácia dos processos.”
No seguimento do disposto no artigo 138.º – A, do C.P.C., veio a ser aprovada a
Portaria n. ° 114/2008, de 6 de Fevereiro – entretanto, já alterada pelas
Portarias n. ° 457/2008, de 20 de Junho, e n.º 1538/2008, de 30 de Dezembro –,
a qual veio dispor sobre várias matérias atinentes à tramitação electrónica dos
processos civis, nomeadamente: apresentação de peças processuais e documentos
por transmissão electrónica de dados (artigos 3. ° a 14. ° - C); distribuição
por meios electrónicos (artigos 15. ° e 16°); actos processuais de magistrados e
funcionários em suporte informático (artigos 17. ° a 21.º); notificações
(artigos 21.º - A a 21.º - C); consulta electrónica de processos (artigo 22. °);
organização do processo (artigo 23.º); e comunicações entre tribunais (artigos
24. ° e 25. °).
A decisão recorrida recusou a aplicação da norma contida no n.º 1, do artigo
138.º – A, do C.P.C., no segmento em que remete para portaria do Ministério da
Justiça a regulamentação da prática dos actos dos magistrados judiciais na
tramitação electrónica dos processos civis, por entender que se trata de
matéria que é obrigatoriamente conformada por lei.
Invoca a decisão recorrida que se trata de matéria pertencente ao estatuto dos
Magistrados Judiciais, pelo que está sujeita à reserva absoluta de competência
legislativa da Assembleia da República (artigo 164º, m), da C.R.P.).
O estatuto dos Magistrados Judiciais constitui um instrumento legislativo
material concretizador do princípio do Estado de direito, na medida em que se
destina a garantir a independência e a imparcialidade dos juízes no exercício da
função jurisdicional.
Por isso devem aí constar as normas relativas às condições de exercício do cargo
de juiz, com influência na sua independência e imparcialidade, nomeadamente as
que definem os respectivos deveres, incompatibilidades, direitos e regalias,
forma de provimento e de progressão na carreira, assim como as regras relativas
ao procedimento disciplinar e cessação de funções.
Ora, a forma que devem revestir os actos escritos praticados pelos magistrados
judiciais nos processos civis tramitados electronicamente não é matéria que
integre as condições de exercício do cargo de juiz com influência na sua
independência e imparcialidade, pelo que não é matéria que deva integrar o seu
estatuto.
Não se incluindo a matéria em causa na normação obrigatoriamente estatutária dos
magistrados judiciais, não se vê razão para estar abrangida pela reserva de lei,
pelo que a sua remissão para portaria, não constitui um acto de
“deslegalização” proibido pelo artigo 112.º, n.º 5, da C.R.P.
3. Da constitucionalidade da norma constante do nº 1, do artigo 17.º, da
Portaria n.º 114/2008
O artigo 17.º, n.º 1, da Portaria n.º 114/08, de 6 de Fevereiro, dispõe que “os
actos dos magistrados judiciais são sempre praticados em suporte informático
através do sistema informático CITIUS – Magistrados Judiciais, com aposição de
assinatura electrónica qualificada ou avançada”.
Tendo o artigo 138.º – A, do C.P.C., determinado que a tramitação dos processos
civis é efectuada electronicamente, este preceito regulamentador dessa forma de
tramitação veio impor que os juízes praticassem os actos escritos nesses
processos em suporte informático, através de uma determinada aplicação
informática.
A decisão recorrida recusou aplicar esta norma, invocando que a mesma não pode
constar de portaria, por respeitar a matéria reservada ao Estatuto dos
magistrados judiciais e ainda pelo seu conteúdo violar o princípio da separação
de poderes e a garantia da independência dos juízes.
Como já acima se concluiu, a forma pela qual os juízes devem praticar os seus
actos nos processos civis não é matéria estatutária, pelo que a sua inclusão em
portaria não resulta em qualquer inconstitucionalidade orgânica.
O princípio da separação dos poderes que preside ao modelo de organização do
Estado na nossa República (artigo 2.º, da C.R.P.) caracteriza-se pela reserva de
competência dos vários órgãos de soberania perante os outros, nomeadamente pela
reserva de competência jurisdicional atribuída em exclusivo aos tribunais
(reserva de jurisdição) e pela liberdade do acto de julgar (independência dos
juízes).
Não se vê como a imposição aos juízes de praticarem os seus actos escritos em
processos civis em suporte informático, através de uma determinada aplicação
informática, possa comprometer o princípio da separação de poderes ou a
liberdade do acto de julgar, na medida em que se limitam a indicar o meio
técnico através do qual os juízes devem realizar as suas intervenções escritas
no processo, sem qualquer influência no seu sentido e conteúdo.
Nem a definição dos meios que devem ser utilizados para os juízes praticarem os
seus actos no processo civil se insere na área reservada à função
jurisdicional, nem essa definição pelo poder legislativo é susceptível de
afectar a independência dos juízes.
Argumenta ainda a decisão recorrida que o princípio da separação de poderes e a
independência dos juízes é posto em causa, uma vez que o administrador da rede
onde opera a aplicação informática que os juízes estão obrigados a utilizar para
praticarem os seus actos escritos no processo civil é o ITIJ, IP.
O Instituto das Tecnologias de Informação na Justiça, abreviadamente designado
por ITIJ, I.P., é um instituto público integrado na administração indirecta do
Estado, dotado de autonomia administrativa e património próprio (artigo 1.º, n.º
1, do Decreto-Lei n.º 130/2007, de 27 de Abril).
O ITIJ, I.P., prossegue atribuições do Ministério da Justiça (MJ), sob
superintendência e tutela do respectivo Ministro (artigo 1.º, n.º 2, do mesmo
diploma).
O controlo da rede onde opera a aplicação informática através da qual os juízes
praticam os seus actos no processo civil, ainda que possa ter influência na
maior ou menor eficácia ou segurança da tramitação electrónica dos processos,
não se traduz em qualquer interferência na área reservada ao poder
jurisdicional, uma vez que não estamos perante uma actividade materialmente
jurisdicional, nem é susceptível de por em risco a independência dos juízes, uma
vez que esse controle em nada condiciona ou interfere com a liberdade de julgar.
Pelas razões explicitadas também não se verifica que o artigo 17.º, n.º 1, da
Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro, ao determinar a obrigatoriedade de os
juízes praticarem os seus actos escritos em processo civil através do sistema
informático CITIUS – Magistrados Judiciais viole qualquer parâmetro
constitucional.
É esta a jurisprudência que cumpre agora reiterar, para ela se remetendo
inteiramente.
III – Decisão
4. Pelo exposto, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 138.º – A, do Código
de Processo Civil, com a redacção resultante do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24
de Agosto, na parte em que remete para portaria a regulação das disposições
processuais relativas a actos dos magistrados;
b) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 17.º, n.º 1, da
Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro;
e, em consequência,
c) julgar procedente o recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida,
em conformidade com o presente julgamento.
Sem custas.
Lisboa, 9 de Julho de 2009
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos