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Processo nº 336/09
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é
recorrente A. e são recorridos o Ministério Público, B., Lda. e outro, foi
interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº
1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 11 de Março de 2009.
2. Em 18 de Maio de 2009, foi proferida decisão sumária, ao abrigo do disposto
no nº 1 do artigo 78º-A da LTC, pela qual se entendeu não tomar conhecimento do
objecto do recurso, com o seguinte fundamento:
«Conforme jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional um dos
requisitos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional é a aplicação pelo tribunal
recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada
pelo recorrente (cf., entre outros, o Acórdão nº 497/99, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Face ao teor do requerimento de interposição de recurso, é de concluir que o
recorrente requer a apreciação das normas conjugadas dos artigos 51º, nº 1,
alínea a), e 56º, nº 1, alínea a), do Código Penal, interpretadas no sentido de
a revogação da suspensão da execução da pena de prisão não depender da prova de
infracção grosseira e culposa do arguido.
Considerada a fundamentação da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra,
verifica-se, porém, que o acórdão recorrido não interpretou e aplicou aquelas
disposições legais no sentido identificado pelo recorrente. Com efeito, lê-se
neste aresto que “face ao comportamento do arguido, de total desinteresse no
cumprimento da condição, legítimo é concluir que, as finalidades que
determinaram a suspensão da pena de prisão se mostram frustradas, o arguido
infringiu de forma grosseira ou repetidamente os deveres ou condições impostos,
ou seja, é indesculpável actuação do arguido”. Isto é, o Tribunal da Relação de
Coimbra não confirmou a revogação da suspensão da execução da pena de prisão,
interpretando os artigos 51º, nº 1, alínea a), e 56º, nº 1, alínea a), do Código
Penal no sentido de não ser necessária a prova de infracção grosseira e culposa
do arguido.
Não se podendo dar como verificado um dos requisitos do recurso de
constitucionalidade interposto (artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC), não pode
conhecer-se do objecto do mesmo. Justifica-se, por isso, a prolação da presente
decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC)».
3. Notificado desta decisão, o recorrente vem agora reclamar, ao abrigo do nº 3
do artigo 78º-A da LTC, com a seguinte fundamentação:
«1º
Na douta decisão reclamada foi entendido que o Tribunal da Relação de Coimbra
não interpretou e aplicou as disposições legais invocadas no recurso ordinário,
no sentido indicado pelo recorrente, ou seja de que «Uma interpretação e
aplicação das normas conjugadas dos artigos 51º, n. ° 1, alínea a) e 56.º,
alínea a), ambos do Código Penal Português, sem prova de infracção grosseira e
culposa do arguido, traduz-se objectivamente numa violação dos princípios
constitucionais da liberdade e da proporcionalidade, consignados nos artigos
27.º n.º 1 e 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, devendo com
esse resultado concreto aplicativo ter-se por deles violador, o que se invoca
para todos os efeitos legais e com as legais consequências».
2º
Sem pretender abusar da interpretação da M.ma Juíza Conselheira, parece poder
concluir-se que se o Tribunal da Relação de Coimbra tivesse discutido os
argumentos apresentados pelo recorrente acerca dos indicados normativos legais e
concluísse do mesmo modo, então já essa interpretação poderia abrir a via do
recurso constitucional, pois sem prova de infracção grosseira e culposa do
arguido não é aceitável constitucionalmente a revogação da suspensão da execução
da pena, sem com isso beliscar princípios constitucionais relevantes.
3º
Assim parece voltar-se à verdadeira prisão por dívidas. Com efeito, pese embora
estas dívidas tenham origem em processo penal, não perdem a sua natureza cível
indemnizatória ou ressarcidora, nos termos expressos do artigo 129.° do Código
Penal Português.
4º
Como quer que seja, o Tribunal Constitucional é normalmente cauteloso na
admissão do recurso de constitucionalidade (inconstitucionalidade incidental), o
que se revela a cada passo nos seus arestos, pela grande exigência da sua
arguição formal, mas não é menos certo que tem admitido tradicionalmente, como
já sucedia no tempo da Comissão Constitucional, a chamada decisão implícita
sobre questão de inconstitucionalidade.
5º
Se assim não for – salvo o devido respeito – como os Tribunais Comuns são por
experiência avessos ou pouco sensíveis a questões de constitucionalidade, então,
em casos como o do presente recurso, não se revela possível levar o tema ao
Tribunal Constitucional, pois a simples omissão do tribunal judicial em
apreciá-las frustra esse desiderato do sujeito processual.
6.°
Pelo que parece ao reclamante que o Tribunal da Relação de Coimbra
implicitamente entendeu que sem prova de infracção grosseira e culposa do
arguido era aceitável constitucionalmente a revogação da suspensão da execução
da pena, o que implica violação dos princípios constitucionais suscitada pelo
então recorrente.
Em face do exposto, com o devido respeito pela douta decisão reclamada e pela
que venha a ser tomada, entende-se que o recurso de constitucionalidade deveria
ser admitido, pelo que se impetra a revogação do douto despacho supra
identificado».
4. Notificado da reclamação, o Ministério Público pronunciou-se pela forma
seguinte:
«1º
O recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma dos artigos
51º, nº 1, alínea a) e 56º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal,
interpretadas no sentido de ser possível a revogação de suspensão de execução da
pena, sem prova de infracção grosseira e culposa por parte do arguido, dos
deveres que lhe haviam sido impostos.
2º
A Relação de Coimbra, o Tribunal recorrido, confirmou a decisão de 1ª instância
que revogara a suspensão, precisamente porque considerou que o comportamento do
arguido, ou, como se diz expressamente, “a indesculpável actuação do arguido”,
levava a concluir que ele infringiu de forma grosseira e repetidamente os
deveres ou condições impostos.
3º
É óbvio, portanto, que, como se diz na decisão reclamada, o acórdão recorrido
não interpretou e aplicou as disposições legais referidas, no sentido
identificado pelo recorrente, não se verificando, assim, um dos requisitos de
admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do artigo
70º, do nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional.
4º
Se o que o recorrente pretende é por em causa o facto de se ter concluído pela
existência de uma infracção grosseira, sem prova suficiente para tal, aí,
situamo-nos no campo de apreciação e valoração da prova, matéria essa que é
estranha à competência deste Tribunal Constitucional.
5º
Pelo exposto, deve a reclamação ser indeferida».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Nos presentes autos decidiu-se não tomar conhecimento do objecto do recurso, com
fundamento na não aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da
norma cuja apreciação foi requerida pelo então recorrente: os artigos 51º, nº 1,
alínea a), e 56º, nº 1, alínea a), do Código Penal, interpretados no sentido de
a revogação da suspensão da execução da pena de prisão não depender da prova de
infracção grosseira e culposa do arguido.
O reclamante sustenta, por um lado, que se o tribunal recorrido tivesse
discutido os argumentos apresentados pelo recorrente acerca dos indicados
normativos legais e concluísse do mesmo modo, então já essa interpretação
poderia abrir a via do recurso constitucional; por outro, que o tribunal
recorrido entendeu implicitamente que sem prova de infracção grosseira e culposa
do arguido era aceitável constitucionalmente a revogação da suspensão da
execução da pena.
O primeiro argumento do reclamante não é compatível com o requisito da aplicação
pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja apreciação é
requerida. Ainda que a decisão recorrida contivesse uma qualquer referência à
norma identificada pelo recorrente – ainda que a discutisse –, manter-se-ia a
decisão de não conhecimento do objecto do recurso, uma vez que não foi a norma
efectivamente aplicada. A exigência, de que a norma aplicada constitua o
fundamento da decisão recorrida, resulta do facto de só nesse caso a decisão da
questão de constitucionalidade poder reflectir-se utilmente no processo. Sendo a
referência à norma questionada mero obiter dictum, a intervenção do Tribunal
Constitucional na apreciação da conformidade constitucional da norma impugnada
não se reflectirá utilmente no processo, uma vez que sempre a decisão recorrida
seria a mesma, ainda que a norma questionada seja declarada inconstitucional
(cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 497/99, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
É entendimento reiterado deste Tribunal Constitucional que pode constituir
objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da
LTC norma implicitamente aplicada pela decisão recorrida (assim, entre outros,
Acórdão nº 685/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Sucede, porém,
que a norma cuja apreciação foi requerida não foi aplicada, sequer
implicitamente, como razão de decidir.
Pelo contrário, face ao teor do acórdão recorrido, é de concluir que o Tribunal
da Relação de Coimbra interpretou e aplicou os artigos 51º, nº 1, alínea a), e
56º, nº 1, alínea a), do Código Penal num sentido totalmente incompatível com o
identificado pelo recorrente. Lê-se naquele aresto que:
“face ao comportamento do arguido, de total desinteresse no cumprimento da
condição, legítimo é concluir que, as finalidades que determinaram a suspensão
da pena de prisão se mostram frustradas, o arguido infringiu de forma grosseira
ou repetidamente os deveres ou condições impostos, ou seja, é indesculpável [a]
actuação do arguido”
Reiterando o já dito na decisão reclamada, só uma conclusão é possível: nos
presentes autos, não se pode dar como verificado o requisito da aplicação pelo
tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja apreciação foi requerida
pelo recorrente (artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC).
Importa, pois, confirmar a decisão de não conhecimento do objecto do recurso.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 7 de Julho de 2009
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão