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Processo n.º 465/09
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o
Ministério Público, a Relatora proferiu a seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério
Público, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 280º
da Constituição e da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão
proferido, em conferência, pela 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do
Porto, em 11 de Março de 2009 (fls.205 a 210), que rejeitou provimento ao
recurso interposto, para que seja apreciada a constitucionalidade da norma
extraída “do artigo 175.º, n.º 4 do Código da Estrada (aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 114/94, de 3 de Maio) na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de
Fevereiro (…), quando interpretada no sentido de que, paga voluntariamente a
coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação judicial da decisão
administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir, discutir
os factos respeitantes à existência da infracção” (fls. 240).
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr.
fls. 242), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não
vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito
legal, pelo que deve averiguar-se se estão preenchidos todos os pressupostos de
admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Caso o Relator verifique que tal não acontece, pode proferir decisão sumária de
não conhecimento, nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Em primeiro lugar, deve notar-se que a decisão recorrida faz efectivamente
menção expressa ao Acórdão n.º 45/08, do Tribunal Constitucional (que julgou
inconstitucional o sentido normativo do preceito legal ora em apreço), para,
como se verá, considerar que essa jurisprudência não é aplicável ao caso
concreto, uma vez que nos autos recorridos o arguido nunca esteve impedido de
discutir os factos respeitantes à existência da infracção.
Acrescente-se ainda que, em momento posterior à prolação da decisão recorrida,
ou seja, em 18 de Março de 2009, o Tribunal Constitucional, em plenário,
declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, da norma extraída
do artigo 175º, n.º 4, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º
44/2005, de 23 de Fevereiro, na interpretação segundo a qual paga
voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação
judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de
conduzir, discutir a existência da infracção (vide Acórdão n.º 135/09,
disponível in www.tribunalconstitucional.pt e também publicado no Diário da
República, I Série, n.º 85, de 4 de Maio de 2009, pág. 2512).
4. Sucede, porém, que tal não tem quaisquer consequências no presente recurso,
dado que a dimensão normativa em causa não foi efectivamente aplicada na decisão
recorrida. Pelo contrário, considerou-se expressamente que o recorrente não
ficou – nem podia ficar – privado de discutir a existência da infracção. O que
se verificou foi que o recorrente não pôs em causa essa existência.
De modo a melhor ilustrar esta conclusão, atente-se nos seguintes trechos da
decisão recorrida:
“11. Porém, não foi vedada ao recorrente a possibilidade de discutir a
existência da infracção. Como vimos, o recorrente optou por cingir a impugnação
judicial ao pedido de suspensão de execução da sanção acessória e à invocação de
«nulidades» e «irregularidade» da decisão da autoridade administrativa.
Portanto, o recorrente não questionou a «existência da infracção», e em especial
a velocidade que lhe foi apontada: pelo contrário, pressupõe e admite a sua
verificação para concluir da forma como concluiu [fls. 31-32 – conclusões da
impugnação judicial].
(…)
12. Tanto assim que, nessa impugnação admitiu que «nunca a[o] cometeu
[infracção] consciente da violação da lei, antes o fazendo com boa fé e
negligentemente» [9.º]; que não «comprometeu a segurança ou comodidade dos
utentes da via pública» [12.º]; que ia a caminho de uma reunião, já atrasado, e
que «negligentemente, ultrapassou os limites de velocidade, sem se aperceber»
[14.º], «sendo que o automóvel em causa, tem como velocidade máxima 240 km/hora»
[15.º]. (…)
13. Mesmo em sede de produção de prova, uma das testemunhas por si arroladas
[João Cerqueira] afirmou que viajava com o recorrente, e procurou dar realce à
alegada falta de perigosidade concreta da infracção em causa, dada[s] as
características do veículo.
14. Todo este relato serve para evidenciar que o recorrente não foi impedido de
discutir a existência da infracção, antes a reconheceu aberta e explicitamente.
15. Pelo que a situação dos autos não convocou qualquer decisão passível do
juízo de inconstitucionalidade invocado.” (fls. 207-verso a 208-verso)
Deste extracto resulta incontroverso que, na realidade, a decisão recorrida não
aplicou efectivamente a norma extraída do artigo 175º, n.º 4, do Código da
Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, com a
interpretação reputada de inconstitucional pelo ora recorrente. Ora, por força
do artigo 79º-C, da LTC, o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da
constitucionalidade de normas (ou de interpretações normativas) que tenham sido
efectivamente aplicadas pelos tribunais recorridos. Não tendo sido esse o caso,
nos presentes autos, mais não resta que rejeitar o conhecimento do objecto do
presente recurso.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se não conhecer do objecto do presente
recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7
UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de
Outubro.»
2. Inconformado com a referida decisão, o recorrente veio reclamar, nos
seguintes termos:
«PONTO PRÉVIO
1º A verificação da prescrição é de conhecimento oficioso e
pode ter lugar a todo o tempo, pois que é causa de extinção do procedimento
criminal — conforme é jurisprudência unânime do Supremo Tribunal de Justiça; v.
g., Acórdão de 06-02-2008 relatado pelo Conselheiro Soreto de Barros.
2º Pelo que deveria a decisão sumária ter, antes de mais,
conhecido da prescrição do presente procedimento contra-ordenacional.
3º Na verdade, entre a prática da alegada contra-ordenação e
a data de da decisão reclamada decorreram mais de 3 anos e seis meses (cfr.
artigo 188° do Código da Estrada e 28° e 27°-A do Regime Geral das
Contra-Ordenações e Coimas).
4º Na verdade, tinha já decorrido o prazo prescricional de 2
anos (previsto artigo 188. ° do Código da Estrada), acrescido de metade (artigo
28. °, n.º 3 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas) e ressalvado mesmo
o tempo de suspensão do mesmo, que não pode ser superior a seis meses (artigo
27. °- A, n.º 2 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas).
5º Os factos em causa foram praticados em 09 de Novembro de
2005.
6° Pelo que, independentemente de todas as suspensões ou
interrupções que possam (eventualmente) verificar-se neste processo, prescreveu
este inapelavelmente em 9 de Maio de 2009.
7º A decisão reclamada é de 24 de Junho de 2009, mais de um
mês depois.
8º Assim, deve o presente procedimento ser declarado extinto,
por prescrição, uma vez que entre a data da prática da contra-ordenação (09-11-
2005) e a presente data decorreram mais de 3 anos e seis meses.
9º De todo o modo, e por cautela, o Recorrente invoca
expressamente a prescrição deste procedimento por ter decorrido mais de 3 anos e
seis meses entre a data da prática dos autos e a presente data, nos termos supra
referidos.
Sem embargo e por cautela, diz ainda o recorrente:
10º A douta decisão de que se reclama considerou que no douto
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto não se aplicou “a norma extraída do
artigo 175°, n.º 4 do Código da Estrada (...) com a redacção reputada
inconstitucional”.
11° Salvo o devido respeito, entende o arguido que o douto
Acórdão recorrido efectivamente aplicou essa norma.
12º Atente-se que em primeira instância o Tribunal declarou
expressamente não conhecer dos meios de prova requeridos pelo arguido.
13º Nessa douta sentença menciona-se que “o arguido, ao
proceder ao pagamento voluntário da coima, conformou-se com o resultado da
perícia efectuada, nos termos em que o foi, sendo inócuo e até incorrendo em
verdadeiro venire contra factum proprium, pretender agora impugnar a validade da
medição de velocidade então apurada.” (fls. 102).
14º E, mais à frente (fls. 104), na motivação da matéria de
facto considerada provada refere-se ainda: “no comprovado pagamento da coima,
traduzindo confissão dos factos.”.
15º E, a fls. 109, em despacho que esclarece essa sentença,
refere ainda esse Tribunal:
Cumpre efectivamente apreciar o pedido de esclarecimento do arguido, formulado a
fls 118 dos autos, no que respeita à expressa indicação da norma aplicável que
levou o tribunal a considerar que o pagamento voluntário da coima, traduzindo a
confissão dos factos, obsta a que o arguido impugne a validade da perícia
efectuada, a que efectivamente não se fez referência na decisão.
Com efeito, deferindo-se o requerido, cumpre esclarecer que a norma que, neste
ponto, está subjacente à decisão é o preceituado no art. 172°, nº 5 do Código da
Estrada, na redacção introduzida pelo DL nº 44/2005, de 23/02, estribada ainda
na jurisprudência maioritária, registada à data da decisão em causa, à qual
aderimos - cfr, entre outros, AC RP 14/11/2007, AC RP de 20/02/2008, in
www.dgsi.pt.
16º É em recurso desta sentença, onde o arguido invocou
expressamente a inconstitucionalidade ora em apreço, que o Tribunal da Relação
do Porto profere o Acórdão recorrido.
17º Ora, nesse Acórdão (fls. 210) decide-se o seguinte: Pelo
exposto, os juízes acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo
recorrente A., mantendo a decisão recorrida.
18º É assim evidente que, neste Acórdão, se reitera o que foi
decidido em primeira instância.
19º Se adere ao que aí foi decidido.
20º E, se decretou que a apreciação sobre a matéria de facto e
a aplicação do direito a esses factos foi correcta e não merece qualquer
censura.
21º Nem sequer no Acórdão se refere que se mantém a decisão,
embora com outros fundamentos.
22º Não; o Acórdão limita-se a confirmar na íntegra a decisão
de primeira instância.
23º Atente-se que o Acórdão do Tribunal Constitucional
135/2009, votado pela Meritíssima Juíza relatora, refere a propósito da norma em
causa que “o que é intolerável é a inilidibilidade dessa presunção, ao
proibir-se que o arguido faça prova, perante o tribunal, da sua não
verificação”.
24º No caso, como se vê, ao arguido foi permitido em primeira
instância produzir meios de prova que, no seu entender, infirmam os factos
constantes da decisão administrativa.
25º Só que o Tribunal ostensivamente não conheceu os mesmos,
declarando que o pagamento da coima obstava a que o arguido impugnasse os factos
que lhe eram imputados e que tal impugnação constituía até um venire contra
factum proprium (fls. 102).
26º Dando de seguida como provados os factos constantes da
acusação (decisão administrativa), sem qualquer ponderação quanto à prova
produzida nos autos.
27º Ou seja, considerou operar-se aqui uma presunção
inilidível.
28º Ora, tal interpretação do artigo 175°, n.º 4 do Código da
Estrada constitui um patente exemplo da interpretação que é censurada no Acórdão
do Tribunal Constitucional referido.
29º Esta decisão foi sufragada na íntegra e sem qualquer reparo
pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto recorrido.
30º Donde, é para o recorrente evidente que o Acórdão recorrido
efectivamente aplicou a norma que se pretende ver apreciada.» (fls. 263 a 268)
3. Após notificação para efeitos de resposta, o Ministério Público veio
pronunciar-se nos seguintes termos:
“1º
A transcrição que o reclamante, na reclamação, faz para ilustrar que,
efectivamente, a norma do artigo 175º, nº 4, do Código da Estrada, na dimensão
julgada inconstitucional, foi aplicada, é da decisão da 1ª instância.
2º
Ora, a decisão recorrida é da Relação do Porto que apreciou o recurso interposto
daquela.
3º
Nesse Acórdão da Relação do Porto, a parte transcrita na decisão sumária, não
deixa qualquer dúvida que a norma não foi aplicada naquela dimensão, tendo até
sido, expressamente afastada a aplicação dessa mesma dimensão normativa.
4º
Quanto à invocada prescrição, não cabe nas competências do Tribunal
Constitucional a sua apreciação.
5º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5. Quanto à alegada prescrição do procedimento contra-ordenacional, acompanha-se
o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto a exercer funções junto deste Tribunal, no
sentido de que o conhecimento e julgamento da questão relativa à extinção
daquele procedimento não cabe nos poderes deste Tribunal. Com efeito, o Tribunal
Constitucional apenas dispõe de poderes para apreciar a constitucionalidade de
normas jurídicas, pelo que a decisão sobre a extinção do procedimento
contra-ordenacional sempre caberá ao tribunal recorrido.
6. Por sua vez, no que diz respeito à reclamação propriamente dita, impõe-se
apenas salientar que o reclamante apenas invoca em favor da sua tese a decisão
de primeira instância, afirmando que esta foi integralmente confirmada pela
decisão recorrida nos presentes autos, proferida pelo Tribunal da Relação do
Porto. Ora, conforme já demonstrado na decisão sumária ora reclamada, tal não
corresponde à realidade. Pelo contrário, a decisão recorrida afirma,
peremptoriamente, que o recorrente (ora reclamado) dispôs da possibilidade de
discutir os factos respeitantes à prática da infracção, pelo que a interpretação
normativa reputada de inconstitucional não foi efectivamente aplicada.
Assim, não subsiste qualquer fundamento para reformar a decisão reclamada.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 29 de Julho de 2009
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão