Imprimir acórdão
Processo n.º 258/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. apresentou reclamação para a conferência, ao
abrigo do n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra a decisão sumária do relator, de 27 de Abril de 2009, que
decidiu, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 desse preceito, negar
provimento ao recurso por ele interposto, por reputar manifestamente infundada
a questão da inconstitucionalidade, por pretensa violação do artigo 32.º, n.º 1,
da Constituição da República Portuguesa (CRP), da interpretação dos artigos
113.º, n.º 9, 425.º, n.º 6, e 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP) e
41.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, no sentido de que a
notificação do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso interposto
da decisão judicial que julgou a impugnação da decisão administrativa
sancionadora de contra‑ordenação, deve ser efectuada ao mandatário judicial do
recorrente, não sendo exigida a sua notificação pessoal ao arguido.
1.1. A referida decisão sumária tem a seguinte
fundamentação:
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da [LTC], contra o acórdão do Tribunal da
Relação de Coimbra (TRC), de 11 de Fevereiro de 2009 – que negou provimento ao
recurso interposto do despacho do Tribunal Judicial de Castelo Branco, de 4 de
Junho de 2008, que indeferira requerimento apresentado pelo ora recorrente no
sentido de se determinar o arquivamento dos autos por prescrição do procedimento
contra‑ordenacional –, referindo no requerimento de interposição de recurso:
«2.º – Quer em primeira instância, quer no douto acórdão do
Tribunal da Relação de Coimbra ora recorrido, que conheceu da matéria de
prescrição, interpretando o disposto nos artigos 113.º, n.º 9, 425.º, n.º 6, e
411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal no sentido de que a notificação ao
arguido em processo crime e, consequentemente, contra‑ordenacional, de um
acórdão condenatório proferido por esse Tribunal da Relação se considera feita
na pessoa do seu mandatário judicial, designadamente para efeitos da contagem de
prazo de interposição de recurso, e, consequentemente, para o seu trânsito em
julgado, independentemente, em qualquer caso, da notificação pessoal ao
arguido, sem exceptuar os casos em que este não tenha obtido conhecimento
pessoal da decisão condenatória, foi fixado que o arguido ficou devidamente
notificado do primeiro acórdão proferido nos autos, sobre o fundo da questão.
3.º – Porém, os artigos 113.º, n.º 9, 425.º, n.º 6, e 411.º, n.º 1,
todos do Código de Processo Penal, nessa interpretação que lhes é dada, tanto
pela M.ma Juiz a quo em primeira instância, quer pelos Senhores Desembargadores,
no sentido de que a notificação de uma decisão condenatória, relevante para a
contagem de prazo de interposição de recurso, e, consequentemente, para o seu
trânsito em julgado, é apenas a notificação ao defensor, independentemente, em
qualquer caso, da notificação pessoal ao arguido, sem exceptuar os casos em que
este não tenha obtido conhecimento pessoal da decisão condenatória, é
inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa.
4.º – O recorrente não se conforma com tais interpretações nem,
consequentemente, com a douta decisão proferida no referenciado acórdão,
decorrente da respectiva inconstitucionalidade, razão porque interpõe o
presente recurso e pretende ver decretada a referenciada inconstitucionalidade
específica.
5.º – Efectivamente, as inconstitucionalidades, como invocadas pelo
ora recorrente, foram perpetradas no douto acórdão de que se recorre, bem como
pelo Tribunal da Primeira Instância, tendo já em sede de recurso para a Relação
sido suscitada a presente questão de inconstitucionalidade, nos precisos termos
em que agora o faz, pelo que a suscitou de modo processualmente adequado perante
o tribunal que proferiu a decisão recorrida.»
2. O presente recurso emerge de impugnação judicial da decisão da
Delegação Distrital de Castelo Branco da Direcção‑Geral de Viação, que aplicou
ao ora recorrente, pela prática, em 25 de Abril de 2006, de uma
contra‑ordenação prevista e punida pelo artigo 27.º, n.º 1, do Código da
Estrada, a sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir veículos a
motor, pelo período de 60 dias.
A impugnação foi julgada improcedente por despacho de 20 de Abril de
2007 do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco.
O arguido interpôs recurso deste despacho para o Tribunal da Relação
de Coimbra, que, por acórdão de 21 de Novembro de 2007, lhe negou provimento.
Este acórdão foi notificado ao mandatário do recorrente por carta registada
expedida em 26 de Novembro de 2007.
Em 8 de Maio de 2008, o arguido apresentou no Tribunal Judicial da
Comarca de Castelo Branco requerimento no sentido do imediato arquivamento dos
autos, por prescrição do procedimento contra‑ordenacional, referindo, em suma,
que: (i) o facto imputado ao arguido ocorreu em 25 de Abril de 2006, há já mais
de dois anos; (ii) o arguido ainda não foi notificado do acórdão do Tribunal da
Relação de Coimbra, devendo entender‑se que a notificação do mandatário forense
não obsta ao dever de notificar o arguido, só começando a correr o prazo para o
trânsito em julgado a partir da prática de tal acto; (iii) com a entrada em
vigor do Decreto‑Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, foi criado um regime
especial de prescrição do procedimento, das coimas e das sanções acessórias
aplicável às contra‑ordenações previstas no Código da Estrada, que afastou a
aplicação do regime geral consagrado nos artigos 27.º a 31.º do Decreto‑Lei n.º
433/82, de 27 de Outubro; (iv) de acordo com aquele regime especial, existe um
prazo único de prescrição do procedimento contra‑ordenacional rodoviário de
dois anos (o mesmo acontecendo com o prazo de prescrição das coimas e das
sanções acessórias), que, no caso, já decorreu, o que determina a extinção, por
prescrição, do procedimento em causa.
Esta pretensão foi indeferida por despacho de 4 de Junho de 2008,
por se entender que os acórdãos prolatados por tribunais superiores são
notificados ao defensor ou advogado do arguido, não impondo a lei a notificação
pessoal deste, pelo que, no caso, o acórdão do TRC, de 21 de Novembro de 2007,
se mostra regularmente notificado ao arguido e transitou em julgado,
acrescentando: «Finalmente, como é manifesto, não ocorreu a suscitada
prescrição do procedimento contra‑ordenacional dos autos».
O arguido interpôs recurso desta decisão para o TRC, tendo
sintetizado a respectiva motivação nas seguintes conclusões:
«a) Por requerimento apresentado pelo arguido, em 8 de Maio de 2008,
veio o mesmo, invocando que o processo ainda não havia transitado em julgado,
por omissão de notificação do arguido, requerer a prescrição do procedimento
contra‑ordenacional;
b) Isto porque, tendo o arguido recorrido para o venerando Tribunal
da Relação de Coimbra, o respectivo acórdão condenatório, notificado ao
advogado, não o havia sido ao próprio arguido, nem antes nem após a baixa do
processo;
c) Pelo douto despacho de que ora se recorre, veio a M.ma Juiz a quo
indeferir o requerido, fundamentando‑se para tal no conhecimento de uma
questão prévia – ou que, pelo menos, materialmente revestiu essa natureza –, em
concreto a existência de trânsito em julgado, prévio à data de prescrição
invocada pelo arguido, pelo que se não pronunciou quanto à questão da contagem,
em si, do prazo prescricional, como suscitada por este último;
d) E a M.ma Juiz a quo fixou tal corolário por entender, de forma
inequívoca, que com a notificação do defensor do arguido fica, sem mais,
garantido o cumprimento dos deveres de conhecimento, pelo arguido, da decisão
condenatória, pelo que o prazo de recurso, e respectivo trânsito, se contam a
partir desse momento, com exclusão de qualquer outro;
e) Caso o presente recurso ou, bem assim, o que venha ulteriormente
a ser interposto junto ao Tribunal Constitucional, seja deferido, apenas a M.ma
Juiz a quo terá poderes jurisdicionais para, em primeira instância, se
pronunciar sobre o requerido no que respeita à questão do efectivo prazo
prescricional relevante nos presentes autos;
f) A tutela jurisdicional não se esgota, na ordem jurídica
portuguesa, mesmo nos casos – como o das contra‑ordenações –, em que não existe
um duplo grau de jurisdição ordinária, uma vez que é possível, pelo menos, o
recurso de inconstitucionalidades;
g) O sentido do legislador ao incluir, no artigo 425.º do Código de
Processo Penal, o seu n.º 6, através da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, foi
claramente o de impor às instâncias de recurso o dever processual inequívoco
de notificar as partes, e não os seus mandatários, das decisões que proferiam;
h) Ciente disso, e para que a prescrição aproveitasse ao arguido, o
seu defensor, ora subscritor, não lhe comunicou, deliberadamente, o teor do
douto acórdão, fazendo‑o no que entende ser o cumprimento da sua leges artis e
dos seus deveres deontológicos;
i) O venerando Tribunal da Relação de Coimbra, ao não notificar
pessoalmente o arguido do douto acórdão dos autos, omissão essa que não se
encontra sanada, e a M.ma Juiz a quo, ao indeferir o pedido de prescrição
fundando‑se, para isso, no facto de considerar o arguido notificado através do
seu mandatário, violaram frontalmente o comando expresso constante do n.º 6 do
artigo 425.º do Código de Processo Penal;
j) Os artigos 113.º, n.º 9, 425.º, n.º 6, e 411.º, n.º 1, todos do
Código de Processo Penal, na interpretação que lhes é dada pela M.ma Juiz a quo,
no sentido de que a notificação de uma decisão condenatória, relevante para a
contagem de prazo de interposição de recurso, e, consequentemente, para o seu
trânsito em julgado, é apenas a notificação ao defensor, independentemente, em
qualquer caso, da notificação pessoal ao arguido, sem exceptuar os casos em que
este não tenha obtido conhecimento pessoal da decisão condenatória, é
inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa.»
A este recurso foi negado provimento pelo acórdão ora recorrido, com
a seguinte fundamentação jurídica:
«O arguido, inconformado com a decisão de 1.ª instância que o
condenou como reincidente pela prática de uma contra‑ordenação prevista pelo
artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, interpôs recurso para o Tribunal
da Relação de Coimbra, que decidiu negar provimento ao recurso e manter a
decisão recorrida.
Proferida tal decisão, dela apenas foi notificado o seu mandatário,
como decorre de fls. 105.
Remetidos os autos à 1.ª instância, o mesmo arguido, alicerçado em
que a falta de notificação pessoal própria do mencionado aresto deste Tribunal
configuraria uma omissão que obstaria ao trânsito em julgado da decisão, veio
requerer ao tribunal que declarasse prescrita a contra‑ordenação cometida,
atendendo ao tempo entretanto decorrido sobre a prática da mesma.
Novamente sem êxito, pois que, através do despacho de que agora
recorre, o M.mo Juiz indeferiu o requerido.
A questão a decidir é saber se, em contrário do decidido, a
notificação do anterior acórdão proferido por este Tribunal devia também ser
realizada pessoalmente ao próprio arguido/recorrente ou, tal como decidido, se
basta a lei processual penal, no caso, com a simples notificação realizada na
pessoa do seu mandatário.
A jurisprudência tem decidido que a notificação de uma decisão
proferida por tribunal superior apenas deve ser notificada ao mandatário, não
sendo necessário proceder à notificação pessoal do arguido.
Os acórdãos proferidos pelas Relações apenas são notificados aos
recorrentes na pessoa dos seus mandatários, não tendo aplicação o disposto no
artigo 113.º, n.º 9, do CPP [Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 6 de
Fevereiro de 2002, in Colectânea de Jurisprudência, ano X, tomo I, pp.
200/202].
Com efeito, este preceito legal, ressalvando a regra geral da
representação do arguido pelo respectivo defensor ou advogado, apenas impõe a
notificação ao arguido das decisões respeitantes ‘à acusação, à decisão
instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as
relativas à aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial e a
dedução do pedido de indemnização civil’.
Das situações referidas parece resultar bem clara a intenção de se
excluir qualquer referência a actos processuais ocorridos na fase de recurso,
onde o arguido está obrigatoriamente assistido por defensor, nos termos da
alínea d) do n.º 1 do artigo 64.º do CPP, por justamente se reconhecer a
necessidade de apoio em questões e matérias essencialmente de direito.
Tanto assim é que o arguido começa por não ser notificado
(pessoalmente) da própria admissão dos recursos e, nesta fase, não tem qualquer
intervenção pessoal – é sempre representado pelo defensor –, excepto na
audiência com renovação da prova, para a qual é convocado, sem que a sua falta
dê origem a adiamento da mesma.
Ora, um acórdão proferido em recurso obedece a formalismo próprio
que não se confunde na sua totalidade com o formalismo das sentenças proferidas
em 1.ª instância, como aliás decorre do preceituado no n.º 6 do artigo 425.º do
CPP, onde se diz: ‘O acórdão é notificado aos recorrentes, aos recorridos e ao
Ministério Público’.
Como é sabido, o defensor é um sujeito do processo, um órgão de
administração da justiça, actuando embora exclusivamente em favor do arguido.
Como órgão da justiça, o seu poder dever emana da lei. Sendo assim, a lei
determina a sua intervenção no processo, conferindo‑lhe direitos e deveres e
disciplinando, em relação aos actos processuais, a sua função de substituto
(representante) do arguido ou a exclusão dessa qualidade, tudo assente na
constatação de que ele é um órgão de administração da justiça e de que
desempenha uma função pública.
Assim, a lei basta‑se com a sua intervenção em determinados actos
processuais, sem a presença ou convocação do arguido, como acontece na
audiência dos tribunais superiores (artigo 412.º, n.º 4), salvo no caso de
renovação da prova no recurso perante as Relações, mas, ainda assim, com uma
imperatividade muito focalizada, como resulta do n.º 4 do artigo 420.º, que diz:
‘O arguido é sempre convocado para a audiência, mas, se tiver sido regularmente
convocado, a sua falta não dá lugar a adiamento, salvo decisão do tribunal em
contrário’.
Como resulta do disposto nos artigos 372.º, 373.º e 425.º do CPP, é
diferente a tramitação do acórdão, conforme tenha lugar em primeira ou segunda
instância. No primeiro caso, a leitura da sentença equivale à sua notificação
aos sujeitos processuais que deverem considerar‑se presentes em audiência,
procedendo‑se, em seguida, ao seu depósito na secretaria, com entrega de cópia
aos interessados (n.ºs 4 e 5 do artigo 372.º). O arguido que não estiver
presente considera‑se notificado da sentença depois de esta ter sido lida
perante o defensor nomeado ou constituído (n.º 3 do artigo 373.º). No segundo
caso, e não havendo lugar à renovação da prova (artigo 430.º do CPP), o arguido
não é obrigado a estar presente, não há leitura do acórdão, nem a lei se refere
ao seu depósito (artigo 425.º do CPP). Também nos termos do artigo 411.º, n.º 1,
do CPP e não se tratando de decisão oral reproduzida em acta, o prazo para
interposição do recurso conta‑se a partir da notificação da decisão ou,
tratando‑se de sentença, do respectivo depósito na secretaria. No artigo 425.º
não se fala em depósito do acórdão e ainda que este efectivamente se verifique,
os intervenientes processuais não têm possibilidade de determinar a data em que
o mesmo é feito, pois não há leitura pública do mesmo. ‘O acórdão do Tribunal
da Relação, mesmo proferido após audiência, deve ser notificado ao defensor ou
advogado do arguido, não impondo a lei a notificação pessoal deste’ [Acórdão do
Tribunal da Relação de Coimbra, de 4 de Outubro de 2006, Proc. 132/05.9TBCTB].
Do exposto, a conclusão inevitável de que, proferido o anterior
acórdão deste Tribunal, se procedeu à devida tramitação, notificando‑se do mesmo
tão‑somente o mandatário do arguido/recorrente, pelo que a decisão proferida
transitou em julgado.
Quer dizer que, tendo transitado a decisão, não há lugar à
prescrição do procedimento contra‑ordenacional, pelo que se deverá manter a
decisão recorrida.
*
Sempre se dirá, todavia, que, mesmo que assim não fosse, a
infracção praticada pelo arguido não se encontra prescrita, pois o artigo
188.º do Código da Estrada veio fixar o prazo normal de prescrição, que passou a
ser de dois anos, em vez de um ano como até aí, afastando‑se, neste particular,
do artigo 27.º do RGCC, continuando a aplicar‑se as restantes regras por força
do disposto no artigo 132.º do mesmo Código da Estrada, designadamente no que
se reporta à interrupção e à suspensão da prescrição, artigos 27.º‑A e 28.º do
RGCC, de onde decorre que o prazo máximo de prescrição do procedimento
[contra‑ordenacional] cifra‑se agora em três anos e seis [meses], prazo normal
de prescrição, acrescido de metade – artigo 28.º, n.º 3, do RGCC, acrescentado
do prazo de suspensão que não pode ir além de seis meses – artigo 27.º‑A do
mesmo diploma.
Nada existe no Código da Estrada que nos permita afastar o
princípio geral nesta matéria, a legislação especial fixa o prazo normal de
prescrição e a legislação geral, Código Penal, relativamente aos crimes, e
Regime Geral de Contra‑Ordenações e Coimas quando, como é o caso, se trata deste
tipo de ilícitos.
Aliás, mal se compreendia que um Código ditado pelas fortes
necessidades de prevenção e repressão de ilícitos estradais, como resulta do
agravamento das sanções e obrigações nele previstas, viesse encurtar um prazo
prescricional.
O facto de se desejar com as alterações ao Código da Estrada um
processo mais célere que encurte o prazo entre a infracção e a sua punição e
uma maior eficácia das sanções nada contende, pensamos nós, com o alargamento do
prazo prescricional, que permite precisamente que mais infractores sejam
punidos.
O Código da Estrada, como outra legislação avulsa, verbi gratia a
Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (RGIT), mais não fez do que fixar um prazo normal
de prescrição para as infracções nele previstas, deixando para a lei geral a
contagem efectiva desse prazo [Cf. Código da Estrada, anotado por Taipa de
Carvalho, anotação ao artigo 188.º, de onde resulta de forma clara que se
aplicam os artigos 27.º‑A e 28.º às contra‑ordenações estradais].»
3. Como resulta da precedente transcrição do acórdão recorrido, a
decisão de improvimento do recurso, com confirmação do indeferimento da
pretensão do recorrente de ser declarada a extinção, por prescrição, do
procedimento contra‑ordenacional, assentou em dois fundamentos, qualquer um
deles suficiente para manter tal sentido decisório: (i) considerar‑se que a
notificação de acórdãos proferidos em tribunais superiores em recursos de
decisões judiciais proferidas em impugnações de decisões administrativas
sancionadoras de contra‑ordenações é feita ao defensor ou mandatário do
arguido, não sendo legalmente exigida a notificação pessoal do arguido, pelo
que a notificação do acórdão de 21 de Novembro de 2007 se mostra regularmente
efectuada, tendo o mesmo transitado em julgado, com a consequente extinção, pelo
julgamento definitivo, do procedimento contra‑ordenacional, o que afasta de todo
a possibilidade de ser colocada a questão da posterior extinção do mesmo
procedimento, por prescrição; e (ii) considerar‑se que o regime geral de
suspensão e interrupção da prescrição do procedimento contra‑ordenacional (e
das coimas e das sanções acessórias) previsto nos artigos 27.º‑A e 28.º do
Decreto‑Lei n.º 433/82 se aplica às contra‑ordenações previstas no Código da
Estrada, conjugadamente com o alargamento para dois anos do prazo normal de
prescrição efectuado pelo artigo 188.º deste Código, o que determina que, no
caso, o prazo de prescrição do procedimento contra‑ordenacional seja de três
anos e seis meses, que ainda não decorreu, uma vez que a infracção em causa foi
praticada em 25 de Abril de 2006.
Atendendo à reconhecida natureza instrumental do recurso de
constitucionalidade, era sustentável não se conhecer, por inutilidade, do
mérito do presente recurso, dado que, mesmo que viesse a ser‑lhe concedido
provimento, determinando‑se a reformulação da decisão recorrida, com eliminação
do seu primeiro fundamento, sempre se manteria o sentido dessa decisão, embora
com a sua base de sustentação limitada ao segundo fundamento, que não foi
incluído pelo recorrente no objecto do presente recurso e, por isso, se mostra,
de forma definitiva, insusceptível de alteração [Anote‑se que, no Acórdão n.º
604/2008, este Tribunal já teve oportunidade de julgar manifestamente infundada
a questão da inconstitucionalidade do entendimento, sufragado no acórdão então
recorrido, no sentido da aplicabilidade subsidiária das normas sobre suspensão
e interrupção dos prazos prescricionais estabelecidos no regime geral do ilícito
de mera ordenação social aos prazos de prescrição relativos a
contra‑ordenações previstas no âmbito do Código da Estrada].
Admitindo‑se, porém, que o próprio acórdão recorrido não terá
colocado os dois aludidos fundamentos ao mesmo nível, e, sobretudo, que se pode
atribuir à adopção do primeiro fundamento um maior grau de estabilidade quanto à
ininvocabilidade, no presente caso, da prescrição do procedimento
contra‑ordenacional, considera‑se preferível a emissão de um juízo de mérito do
recurso, assente, como se demonstrará, no carácter manifestamente infundado da
questão de inconstitucionalidade suscitada.
4. O recorrente fundamenta a arguição de inconstitucionalidade em
pretensa violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP – que proclama: «O
processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso»
–, partindo do pressuposto da aplicação sem reservas desse comando ao processo
contra‑ordenacional, que equipara inteiramente ao processo criminal,
designadamente quanto aos requisitos de notificação das decisões dos tribunais
superiores, relevantes para efeitos da contagem dos prazos de interposição de
recurso.
Ora, é justamente esse ponto de partida da tese do recorrente que
manifestamente claudica.
Na verdade, constitui afirmação recorrente na jurisprudência do
Tribunal Constitucional a da não aplicabilidade directa e global aos processos
contra‑ordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo
criminal, salientando‑se (cf., designadamente, os Acórdãos n.ºs 659/2006,
313/2007 e 135/2009), que, no artigo 32.º da CRP, só o disposto no seu n.º 10 se
dirige directamente aos processos de contra‑ordenação, e que, com a introdução
dessa norma constitucional (efectuada, pela revisão constitucional de 1989,
quanto aos processos de contra‑ordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a
quaisquer processos sancionatórios), o que se pretendeu foi assegurar, nesses
tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos
estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente
assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função
pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao actual artigo 269.º, n.º 3).
Tal norma implica tão‑só ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de
sanção, contra‑ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou
qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição)
e possa defender‑se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa),
apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a
apurar a verdade (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa
Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do
n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão
constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento
ao arguido, «nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios», de
«todas as garantias do processo criminal» (artigo 32.º‑B do Projecto de Revisão
Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da
Assembleia da República, II Série‑RC, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp.
541‑544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466).
É certo que, como se reconheceu no Acórdão n.º 659/2006, não se
limitam aos direitos de audição e defesa as garantias dos arguidos em processos
sancionatórios, mas é noutros preceitos constitucionais, que não no n.º 10 do
artigo 32.º, que eles encontram esteio. É o caso, desde logo, do direito de
impugnação perante os tribunais das decisões sancionatórias em causa, direito
que se funda, em geral, no artigo 20.º, n.º 1, e, especificamente para as
decisões administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da CRP. E, entrados esses
processos na «fase jurisdicional», na sequência da impugnação perante os
tribunais dessas decisões, gozam os mesmos das genéricas garantias
constitucionais dos processos judiciais, quer directamente referidas naquele
artigo 20.º (direito a decisão em prazo razoável e garantia de processo
equitativo), quer dimanados do princípio do Estado de direito democrático
(artigo 2.º da CRP), sendo descabida a invocação, para esta fase, do disposto
no n.º 10 do artigo 32.º da CRP.
Porém, entre esses direitos não se conta o direito de recurso (ou de
duplo grau de jurisdição) consagrado, especificamente para o processo criminal,
no n.º 1 do artigo 32.º da CRP, tendo o citado Acórdão n.º 659/2006 julgado não
inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 73.º do Decreto‑Lei n.º
433/82, interpretado no sentido de não permitir recurso para o Tribunal da
Relação de despacho de indeferimento de arguição de nulidade processual,
proferido posteriormente à decisão de rejeição de impugnação judicial de
decisão administrativa sancionadora de contra‑ordenação.
Já no Acórdão n.º 77/2005, após se expressarem reservas quanto à
atribuição ao n.º 10 do artigo 32.º da CRP de um alcance tão amplo que
abarcasse, no «direito de defesa» nele contemplado, quer o direito de
impugnação judicial das decisões de aplicação de coimas, quer ainda o direito de
recorrer das decisões desta impugnação judicial, isto é, a imposição da
garantia de uma segunda instância judicial para apreciação da impugnação da
decisão administrativa, se decidiu não julgar inconstitucional o artigo 74.º,
n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 433/82, «interpretado no sentido de que, sendo
notificado o mandatário do dia designado para leitura da decisão de impugnação
judicial em processo contra‑ordenacional, o prazo para recorrer se conta a
partir da data da leitura da decisão em audiência, esteja ou não presente o
arguido ou o seu mandatário».
Sendo, assim, manifesto não constituir o n.º 1 do artigo 32.º da
CRP, único preceito constitucional invocado pelo recorrente, base adequada à
afirmação de um direito de recurso das decisões dos tribunais proferidas no
âmbito da impugnação judicial de decisões administrativas sancionadoras de
contra‑ordenações, direito esse a que instrumentalmente se ligariam os
requisitos de notificação daquelas decisões, a questão de inconstitucionalidade
suscitada no presente recurso surge como manifestamente infundada, o que permite
a prolação de decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC.”
1.2. A reclamação apresentada pelo recorrente assenta
nos seguintes fundamentos:
“1.º – Vem o Ex.mo Senhor Conselheiro Relator suscitar duas questões
processuais com as quais o recorrente se não conforma, a saber:
a) O facto de entender que o TRC se pronunciou pela
prorrogabilidade, nos termos gerais do RGCO, dos prazos prescricionais previstos
no Código da Estrada;
b) O facto de o recorrente se ter limitado a invocar a violação do
artigo 32.º, n.º 1, da CRP, pelo que ficaria assim precludida a possibilidade de
conhecer da violação de outras normas constitucionais, por respectiva omissão
de referência em sede de recurso;
2.º – Em relação à primeira das questões enunciadas, cumpre, antes
de mais, referir que, precisamente devido à natureza instrumental do processo
constitucional, não cabe no mesmo conhecer e qualificar questões de que lhe não
seja lícito conhecer.
3.º – Efectivamente, o âmbito do recurso, em processos
contra‑ordenacionais, é limitado àquele que venha a ser definido como seu
objecto – artigo 403.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 72.º‑A (em
interpretação correcta) do RGCO e, evidentemente, ao âmbito material da própria
decisão recorrida.
4.º – O Tribunal da Relação de Coimbra não tem poderes de cognição
sobre a matéria da prorrogabilidade do prazo prescricional, uma vez que a M.ma
Juiz a quo sobre ela se não pronunciou.
5.º – Assim, das afirmações a esse respeito feitas nesse, aliás
douto, acórdão não se pode atribuir o valor de decisão e, muito menos,
considerar que produza efeitos no processo, designadamente quanto à formação de
caso julgado nessa matéria.
6.º – Qualquer entendimento em contrário constitui irregularidade
processual.
7.º – De qualquer forma, não teria o Tribunal Constitucional, mas
sim o STJ, jurisdição para conhecer de tal matéria, caso a questão efectivamente
fosse suscitável.
8.º – No entanto, ainda assim, o Ex.mo Senhor Conselheiro Relator,
ao descer, por sua própria iniciativa, ao conhecimento de matéria processual não
constitucional deverá, por maioria de razão, ficar sujeito ao respectivo regime
processual ordinário.
9.º – Pelo exposto, ao entender que tal considerando do douto
acórdão é algo mais que um mero considerando e constitui elemento estruturante
da decisão do TRC e dos respectivos efeitos, além de incorrer em incompetência
absoluta em razão da matéria, incorreria, o Ex.mo Senhor Conselheiro Relator, em
irregularidade processual por violação do disposto nos mencionados artigos, bem
como por exceder os limites do alcance da decisão a quo.
10.º – Nessa medida, e para que se não venha posteriormente
considerar, com suporte nesta decisão, que tal considerando do TRC forma caso
julgado, desde já se requer a anulação da mencionada decisão, na parte
respeitante a tal matéria.
11.º – Quanto à segunda das questões enunciadas em 1.º, diz o Ex.mo
Senhor Conselheiro Relator: «Sendo, assim, manifesto não constituir o n.º 1 do
artigo 32.º da CRP, único preceito constitucional invocado pela recorrente, base
adequada à formação de um direito de recurso das decisões dos tribunais
proferidas no âmbito da impugnação judicial de decisões administrativas
sancionadoras de contra‑ordenações, direito esse a que instrumentalmente se
ligariam os requisitos da notificação daquelas decisões, a questão de
inconstitucionalidade suscitada no presente recurso surge como manifestamente
infundada, o que permite a prolação de decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do
artigo 78.º‑A da LTC».
12.º – Desta mencionada afirmação decorre, sem qualquer dúvida, que
o Ex.mo Senhor Relator restringiu o conhecimento da questão à alegada violação
do disposto no n.º 1 do artigo 32.º da CRP, não se pronunciando sobre qualquer
outra norma que pudesse estar violada pela normas e interpretação postas em
crise, nem sequer para dizer que nenhuma outra norma constitucional aplicável a
processos contra‑ordenacionais se encontra violada.
Ora,
13.º – Dispõe o artigo 79.º‑C da Lei do Tribunal Constitucional que:
«O Tribunal Constitucional só pode considerar inconstitucional ou ilegal a norma
que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja
recusado aplicação, mas pode fazê‑lo com fundamento na violação de normas ou
princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi
invocada».
14.º – A expressão «pode», constante dessa norma, numa leitura
apressada poderia levar a pensar que, quando está a avaliar a
inconstitucionalidade de uma norma legal e respectiva interpretação, o TC apenas
está vinculado a conhecer da inconstitucionalidade expressamente invocada,
ficando ao seu livre arbítrio decidir se, detectando outras
inconstitucionalidades, delas conhece ou não.
15.º – Porém, não é assim: tal poder é um poder‑dever ou um poder
vinculado, e obriga o TC a fundamentar a (in)existência de quaisquer
inconstitucionalidades, e não apenas a (in)existência da inconstitucionalidade
invocada. E ao omitir tal fundamentação o TC não só comete uma irregularidade
processual,
16.º – Como ainda o próprio artigo 79.º‑C da LTC, interpretado no
sentido de que aquele se não encontra vinculado a fundamentar senão a
existência, ou inexistência, da inconstitucionalidade expressamente invocada em
recurso, ficando ao seu livre arbítrio decidir se conhece, ou não, de outras
inconstitucionalidades que venha a detectar, viola ele próprio os princípios
constitucionais fixados nos artigos 2.º, 18.º, n.º 1, 20.º, n.º 5, e sobretudo
202.º, n.º 2, e 204.º da CRP.
[17.º] – Termos em que a decisão reclamada deve ser anulada na
medida em que não é devidamente fundamentada, devendo vir a ser reformulada em
respeito do disposto no mencionado artigo 79.º‑C da Lei do Tribunal
Constitucional ou, bem assim, revogada e conferido prazo ao recorrente para
produzir as suas alegações de direito.
[18.º] – De qualquer forma, muito embora o lugar próprio para tal
sejam as alegações de direito, sempre pode o recorrente adiantar que é
lamentável, e mesmo perigoso para o Estado de Direito, que se faça uma
sistemática interpretação restritiva do regime processual de recurso por forma
a não conhecer do fundo das questões, mas sim e apenas da admissibilidade
processual do recurso. Muito embora aqui se não esteja perante a admissibilidade
processual em sentido estrito, está‑se francamente ante uma manifestada falta de
vontade, do Ex.mo Senhor Conselheiro Relator, em procurar (e com facilidade
encontraria) normas constitucionais efectivamente violadas in casu, sem
necessidade de recorrer ao subterfúgio da inaplicabilidade das normas
constitucionais penais constantes do artigo 32.º da CRP ao processo de
contra‑ordenação.
[19.º] – São, a respeito de tal conduta processual, sintomáticas as
sucessivas condenações de que o Estado Português tem sido objecto nas várias
instâncias internacionais competentes.
[20.º] – E quanto à pretensa inaplicabilidade do artigo 32.º da CRP
ao processo contra‑ordenacional, e ao emergente entendimento, no seio do TC,
que as respectivas garantias não são aplicáveis ao ilícito contra‑ordenacional,
cumpre advertir V.as Ex.as do seguinte: como é notório para os agentes da
justiça (pelo menos para alguns), o processo contra‑ordenacional foi a forma de
o poder administrativo, com a cumplicidade ou conivência do poder legislativo,
descriminalizar extensas matérias de ilícito penal, remetendo‑as da jurisdição
dos tribunais para a da administração pública.
[21.º] – Neste momento, como V.as Ex.as muito bem sabem, o âmbito de
aplicação do direito contra‑ordenacional é cada vez mais extenso e invade a
quase totalidade da vida dos cidadãos, em quase todos os seus aspectos.
[22.º] – Por via disso, a única forma de garantir a efectividade do
princípio do Estado de Direito, consignado no artigo 2.º da Constituição, é
manter a aplicação de todas as garantias legais e constitucionais do direito e
processo penal ao processo contra‑ordenacional.
[23.º] – Não assusta ao mandatário do recorrente porque agora é este
e apenas este que o afirma, e assume para si e apenas para si, a
responsabilidade por custas ou outra da presente reclamação, afirmar expressa e
deliberadamente que descolar, do processo contra‑ordenacional, as garantias do
processo criminal poderá constituir sentença de morte para o Estado de Direito,
traduzindo-se na desgarantização maciça de cada vez mais extensa maioria de
matérias de ilícito que podem afectar gravemente a vida dos cidadãos.
[24.º] – Assinale-se, a mero título de exemplo, o regime
contra‑ordenacional de higiene e segurança alimentar e económica que, pela sua
extensão e pelas práticas dos organismos encarregues de proceder à respectiva
fiscalização e punição, se torna invasivo mesmo em práticas da vida privada,
designadamente nas zonas rurais.
[25.º] – Com todo o respeito, e pede‑se a V.as Ex.as que não tomem
tal afirmação por mais que aquilo que é, ao permitir a desgarantização do
direito contra‑ordenacional, entre outras coisas, os órgãos jurisdicionais estão
a permitir a abertura de espaço a uma nova forma de totalitarismo que, uma vez
instalado, acabará por os destruir na sua essência, bem como a todos os valores
ínsitos na Constituição e no actual regime, deixando a tais órgãos
jurisdicionais, com o Tribunal Constitucional à cabeça, o ingrato papel de
coveiros do Estado de Direito, e vítimas da sua própria complacência.
[26.º] – Queira Deus que não seja assim ou que, pelo menos, se assim
for, a vossa consciência vos não julgue com a severidade com que a história o
fará.
[27.º] – E é por estas razões que, muito embora se esteja a discutir
uma simples questão de contra-ordenação estradal, se não pode deixar de reagir
como se reage.
Nestes termos, pede‑se, ou melhor, implora‑se, a V.as Ex.as, que,
além de decretarem a anulação da douta decisão singular dos autos nos termos do
acima referenciado, fixem, mesmo ao arrepio da orientação jurisprudencial desse
Tribunal, que o artigo 32.º da CRP, bem todas as demais normas garantísticas,
penais e processuais penais, ínsitas na Constituição e nos seus princípios,
sejam consideradas aplicáveis, em toda a sua extensão, a todo o normativo
contra‑ordenacional, substantivo ou processual, não em nome da desoneração duma
simples sanção de inibição de conduzir, mas em nome dos princípios ínsitos na
Constituição, e contra os princípios ínsitos em todas as posições jurisdicionais
que levaram o recorrente até ao presente momento e que constituem a norma em
toda a ordem de questões, dando assim provimento à reclamação,
Assim fazendo Justiça!”
1.3. O representante do Ministério Público neste
Tribunal apresentou resposta, na qual propugna o indeferimento da reclamação,
dado que “a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da decisão
reclamada e da corrente jurisprudencial que lhe subjaz”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. O objecto adequado das reclamações de decisões
sumárias proferidas ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC cinge‑se,
naturalmente, à reapreciação do fundamento efectivamente invocado e aplicado em
tal decisão como ratio decidendi.
No presente caso, o único e efectivo fundamento de tal
decisão consta do respectivo n.º 4 e consiste no entendimento de que a questão
de inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente era de qualificar como
manifestamente infundada, o que determinou a prolação de uma decisão de “negar
provimento ao recurso”.
No n.º 3 da decisão sumária ora reclamada, perante a
constatação do facto de o acórdão recorrido assentar num duplo fundamento [1.º –
a desnecessidade de notificação pessoal ao arguido do acórdão de 21 de Novembro
de 2007, de que deriva ter esse acórdão transitado em julgado, o que afastava,
de todo, a possibilidade de questionar‑se a prescrição do procedimento
contra‑ordenacional; 2.º – sendo aplicável à prescrição do procedimento por
contra‑ordenações estradais as regras de suspensão e interrupção da prescrição
constantes dos artigos 27.º‑A e 28.º do Decreto‑Lei n.º 433/82, o prazo máximo
de prescrição ser, no caso, de 3 anos e 6 meses (e não de 2 anos, como
sustentava o recorrente), que ainda não se tinha completado], colocou‑se a
questão da eventual inutilidade do conhecimento do recurso de
constitucionalidade, cujo objecto apenas contendia com o primeiro fundamento
invocado. Tratou‑se de indagação que ao Tribunal Constitucional era lícito
proceder, pois lhe compete, antes de entrar na apreciação do mérito do recurso
de constitucionalidade, aferir da admissibilidade do recurso e da utilidade do
seu conhecimento, o que pode envolver a necessidade de ponderação de outras
partes da decisão recorrida, para além da especificamente questionada no
recurso, como sempre sucede quando se questiona a utilidade do conhecimento do
recurso por o seu eventual provimento ser insusceptível de determinar a
alteração do sentido da decisão recorrida, por esta assentar em outro
fundamento, autónomo, não incluído no objecto do recurso, como no presente caso
justamente ocorria. No entanto – apesar da constatação do facto indesmentível de
o acórdão recorrido ter expressamente considerado aplicáveis ao procedimento
contra‑ordenacional estradal as regras gerais de suspensão e de interrupção da
prescrição do procedimento contra‑ordenacional, o que determinava, no caso, a
não verificação da prescrição, e apesar de ser igualmente indesmentível, face à
mera análise dos autos, que o recorrente não arguiu a nulidade desse
pronunciamento do acórdão recorrido, designadamente por excesso de pronúncia
–, entendeu‑se na decisão sumária ora reclamada não se justificar a prolação de
uma decisão de não conhecimento do recurso, fundada na inutilidade desse
conhecimento, essencialmente por se reconhecer ser diverso o alcance do decidido
consoante esteado num ou noutro dos fundamentos invocados. Na verdade, o
segundo fundamento, por si só, apenas impedia que se considerasse prescrito o
procedimento enquanto não se perfizessem 3 anos e 6 meses sobre a data da
infracção, enquanto o primeiro fundamento, considerando transitado em julgado o
acórdão confirmativo da condenação, significava que, extinto o procedimento pela
condenação definitiva, já não mais se podia colocar sequer a questão da
prescrição do procedimento. Daqui resulta que das considerações tecidas no n.º 3
da decisão sumária se conclui, sem possibilidade de dúvida, que não se entendeu
que o conhecimento do recurso era inútil (o que teria determinado uma decisão de
não conhecimento do recurso, e não uma decisão de improvimento, que foi a
proferida), pelo que surge como irrelevante o aduzido pelo recorrente nos n.ºs
2.º a 10.º da presente reclamação.
Quanto ao único efectivo fundamento da decisão sumária
de improvimento do recurso – ser a questão de constitucionalidade suscitada pelo
recorrente de qualificar como manifestamente infundada –, reitera‑se a
orientação firme deste Tribunal no sentido da inaplicabilidade ao processo
contra‑ordenacional da garantia de duplo grau de jurisdição que, para as
decisões condenatórias ou lesivas de direitos fundamentais do arguido em
processo criminal, se extrai do artigo 32.º, n.º 1, da CRP. Foi essa, assim
delineada, a questão de inconstitucionalidade que o recorrente elegeu para
objecto do recurso, controvertendo a necessidade de notificação pessoal ao
arguido do acórdão da Relação confirmativo da condenação contra‑ordenacional
sempre na perspectiva da instrumentalidade dessa notificação para efeitos de
interposição de recurso do acórdão da Relação.
A definição da questão de constitucionalidade em causa
foi feita, pelo recorrente, sob sua exclusiva responsabilidade, através da
conjugação de uma determinada interpretação de normas de direito ordinário, por
um lado, e da invocação de determinada norma ou princípio constitucional, por
outro. É essa específica questão de inconstitucionalidade, assim definida, que
ao Tribunal Constitucional compete apreciar se é, ou não, de qualificar como
manifestamente infundada, juízo esse que foi emitido na decisão sumária
reclamada, com expressa e desenvolvida invocação de reiterada jurisprudência,
juízo esse que ora se reitera, surgindo como claramente excessiva a pretensão
do recorrente de que, para poder considerar uma questão de
inconstitucionalidade como manifestamente infundada, o Tribunal Constitucional
tivesse de ponderar, não apenas o específico fundamento de
inconstitucionalidade invocado pelo recorrente, mas todos os outros possíveis
fundamentos que se pudessem imaginar. A desrazoabilidade da tese do recorrente
mais se evidencia quando se constata que ele, na presente reclamação, não logra
apontar qualquer outro fundamento de inconstitucionalidade do critério
normativo impugnado que pudesse ser invocado, para além do reportado ao artigo
32.º, n.º 1, da CRP.
3. Termos em que acordam em indeferir a presente
reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 20 de Maio de 2009.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos