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Processo n.º 75/09
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos da 9.ª Vara Cível de Lisboa, em que é recorrente
o MINISTÉRIO PÚBLICO e recorrido A., S.A., foi interposto recurso de
constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do
despacho daquele Tribunal de 10.09.2008, nos seguintes termos:
«O Magistrado do Ministério Público neste Tribunal, fazendo uso da faculdade
conferida pelo art.° 145.° n.º 5 do C.P.C., vem, em obediência e nos termos do
disposto pelos arts 280.° n.° 1 al. a) e n.° 3 da Constituição da República
Portuguesa, 69.°, 70.° al. a) e 72.° n.° 1 al. a) da Lei do Tribunal
Constitucional - Lei n.° 28/82 de 15/11 -, interpor recurso para o Tribunal
Constitucional da parte da decisão de fls. 3478 a 3490 que recusou a aplicação
da norma resultante da conjugação dos art.ºs 13.°, n.°1, 15.° n.°1, al. o),
18.°, n.°2 e tabela anexa ao C.C.J. na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.°
224-A/96 de 26 de Novembro por considerar aquela norma ferida de
inconstitucionalidade material e violadora do direito de acesso aos tribunais
consagrado pelo art. 20.° da C.R.P., conjugado com o princípio da proibição do
excesso decorrente do art.° 2.° da C.R.P.»
2. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
apresentou alegações, tendo concluído o seguinte:
«1º
A norma resultante dos artigos 13.º n.º 1, 15.º, n.º1, alínea o) e 18.º, n.º 2
do Código das Custas Judiciais, na versão emergente do Decreto-Lei nº 224-A/96,
de 26 de Novembro, conjugada com a tabela anexa, interpretada em termos de o
montante das custas decorrente do decaimento numa acção com o valor tributário
de € 3.854.261,23 e respectivos apensos, incidentes e recursos (incluindo duas
providências cautelares do arresto) – ser calculado em função de tal valor, sem
que se preveja a aplicação de qualquer limite máximo, originando um valor global
de €253.033,92 de custas, não pode considerar-se, em si mesma, violadora do
direito de acesso à justiça e do princípio da proporcionalidade.
2º
Na verdade, essa tributação uma acção de valor consideravelmente elevado não
implica quebra da estrutura bilateral ou sinalagmática das taxas, representando
a ponderação – não apenas do valor de custo do serviço em causa – mas também do
valor presumivelmente resultante da utilidade alcançável através do recurso ao
tribunal e da complexidade que esteve subjacente à tramitação da causa e
respectivos apensos que – no caso dos autos – envolveu processado de particular
complexidade e extensão (expresso em 15 volumes e 6 apensos), em que forem
esgotados pelos interessados os meios impugnatórios possíveis.
3º
Não funcionando o princípio da igualdade em termos diacrónicos, não é possível
realizar uma comparação entre tal regime, decorrente da versão de 1996 do Código
das Custas Judiciais, e o actualmente estabelecido no artigo 27.º, não aplicável
ao caso dos autos, representando uma ponderação inovatória e constitutiva do
legislador que não pressupõe a inconstitucionalidade da solução que constava da
lei anteriormente vigente.
4º
Termos em que deverá proceder o presente recurso.»
3. A recorrida não contra-alegou.
4. O despacho recorrido tem o seguinte teor, na parte que agora releva:
«(…)Na presente acção, que tinha o valor tributário de €3.854.261,23, foram
contadas à Autora custas no montante total de € 253.033,092, respeitando
€173.383,53 a taxas, correspondendo € 9.684,44 à taxa do incidente de apoio
judiciário, reduzida a ¼, nos termos do art.° 15.°, n.° 1, do C.C.J., na
redacção do D.L. n.° 224-A/96, de 26 de Novembro, €19.368,88 de taxa de
justiça em cada um de três recursos, €25.105,22 noutra taxa de justiça de
recurso, €12.552,61 noutra taxa de justiça de recurso , todas reduzidas a ½, nos
termos do art.° 18.°, n.° 2, do C.C.J., na redacção do D.L. n.° 224-A/96, de 26
de Novembro, €45.748,60 de procuradoria com natureza de taxa e, finalmente,
€45.453,04 a título de custas de parte.
A acção comportou designadamente:
I- ACÇÃO PRINCIPAL:
- Base Instrutória com 45 quesitos (fls. 367 a 376);
- dezasseis sessões de julgamento : fls. 627 ( 5.11.98), fls. 635
(11.11.98), fls. 726 (2.12.98), fls. 737 ( 7.1.99), fls. 931 ( 26.1.99), fls.
1066 (11.2.99), fls. 1478 ( 15.4.99), fls. 1507 ( 20.4.99), fls. 1563 (
21.4.99), fls. 1633 (13.5.99), fls. 1651 ( 17.6.99), fls. 1749 ( 23.6.99), fls.
1752 ( 26.9.99), fls. 1764 ( 6.7.99), fls. 2313 ( 9.11.2001), fls.
2319(30.11.2001);
- inspecção ao local (fls. 737-738);
- realização de prova pericial (cfr. fls. 1856, 1878 e ss.);
- despacho de revogação do beneficio de apoio judiciário concedido à
Autora (fls.2380 a 2383);
- sentença a fls. 2384 a 2397;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a fls. 2532 a 2545;
- junção de pareceres de professores universitários a fls. 2704 e
ss.;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a fls . 2816 a 2823;
II — APENSO A (Arresto intentado pela Autora contra a Ré em 26.5.98):
- julgamento em 8.7.98 (fls. 36);
- julgamento na oposição a fls. 316 ( 2.12.98), fls. 337 ( 26.1.99),
fls. 419 ( 11.2.99), fls. 652 (14.1.2000);
- sentença final a fls. 653 a 660 (4.2.2000);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a fls. 1041 a 1048
(23.1.2002);
III — APENSO B ( agravo do despacho que revogou o benefício de apoio
judiciário):
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.12.2002 (fis. 150 a
155);
IV- APENSO C (procedimento cautelar de arresto intentado pela Autora
contra a Ré em 25.7.2002):
- indeferimento liminar a fls. 93 (8.8.2002);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a fls. 1431-1432(
12.12.2002);
-julgamento e sentença a fls. 203 a 209 (21.5.2003);
-julgamento em oposição a fls. 1333 (19.1.2004);
- sentença de revogação do arresto a fls. 1520 a 1522 (27.2.2004);
- despacho a declarar deserto o agravo a fls. 1720 (31.5.2004);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a fls. 1860 a 1862
(4.8.2004);
V- APENSO D (agravo interposto pela ré do despacho de fls. 3372 a
3375):
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a fls. 392 a 405
(19.1.2006);
VI- APENSO E ( agravo interposto pela ré do despacho de fls. 2531 a
2536 que decidiu reclamação à conta):
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a fls. 765 a 779
(13.10.05);
VII- APENSO F (recurso de agravo interposto pela Autora do despacho
que indeferiu o pedido de reforma da conta de custas elaborada no arresto):
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a fls. 218 a 223
(27.3.2007’);
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a fls. 295 a 297 (
6.11.2007).
Resulta do arrazoado que antecede que a acção e seus apensos teve um
processado que, de forma alguma, se pode classificar de breve e singelo. A
dificuldade do apuramento dos factos materiais e forte litigiosidade que a
acompanhou justificam, em grande parte, a extensão e complexidade do processado.
Apesar do que fica dito, cremos que a complexidade demonstrada não
justifica os valores agora apurados, os quais se afiguram desproporcionais e
injustificadamente inibidores da utilização dos serviços públicos de justiça.
Para a fixação desses valores contribuiu a ausência de previsão de um
limite máximo ou da possibilidade da intervenção moderadora do juiz na fixação
do valor das taxas devidas pela tramitação ocorrida.
Pelo que, também aqui, concluímos que essa desproporção flagrante e o
exagero daquela quantia viola não só o principio estruturante constitucional da
proibição do excesso, como também o direito de acesso aos tribunais, previsto no
art.° 20.°, n.° 1, da Constituição.
*
Pelo exposto:
a) julgo inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais,
consagrado no art.° 20.°, da C.R.P., conjugado com o princípio da proibição do
excesso, decorrente do art.° 2.°, da C.R.P., a norma que se extrai da conjugação
do disposto nos artigos 13.°, n.° 1, 15.°, n.º 1, o), 18.°, n.º 2, e tabela
anexa do C.C.J., na redacção do D.L. n.° 224-A/96, de 26 de Novembro, na parte
em que dela resulta que as custas (incluindo taxas de justiça, custas dos
incidentes, procuradoria e custas de parte) devidas por um processo, comportando
a tramitação descrita em I a VII, ascendem ao montante global de €253.033,92,
determinado exclusivamente em função do valor da acção, sem o estabelecimento de
qualquer limite máximo, e na medida em que não se permite que o tribunal reduza
o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta,
designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter
manifestamente desproporcionado desse montante;
b) ordeno se proceda à reforma da conta nos termos previstos no art.° 27.°, do
C.C.J., na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.° 324/2003, de
27-12, aplicando-se a respectiva Tabela de taxa de justiça;
c) no mais, julgo improcedente por não provada a reclamação apresentada.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II − Fundamentação
5. É sabido que o factor básico de distinção constitucional entre imposto e taxa
repousa no carácter unilateral ou bilateral do tributo: enquanto que o imposto
tem estrutura unilateral, a taxa apresenta um carácter bilateral ou
sinalagamático.
Quer isto dizer que a prestação pecuniária correspondente à taxa está em relação
de correspectividade com a obtenção de um benefício individualmente produzido na
esfera do particular obrigado ao seu pagamento. É como contrapartida desse
benefício, como preço a pagar por uma utilidade especificamente proporcionada
por um ente público, que a taxa é devida.
De entre a tipificação tripartida das situações causalmente determinantes do
pagamento de taxas, estabelecida no artigo 4.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária
(Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro), a saber, “prestação concreta de um
serviço público”, “utilização de um bem do domínio público” e “remoção de um
obstáculo ao comportamento dos particulares”, é indubitavelmente no primeiro
grupo que se integram as custas judiciais.
Compreendendo a taxa de justiça e os encargos (artigo 1.º, n.º 1, do CCJ, na
redacção do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro), e consistindo estes no
reembolso das despesas e retribuições enumeradas no artigo 32.º do mesmo Código,
a taxa de justiça consubstancia a contrapartida pecuniária da utilização do
serviço de administração de justiça.
6. Mas o vínculo de sinalagmaticidade, que une entre si a utilização
individualizada dos serviços dos tribunais e as quantias cobradas, a título de
taxa, por essa utilização, nada mais traduz do que uma relação de reciprocidade
e de interdependência causal, assinalando, designadamente, que a obrigação em
que se constitui o utente encontra a sua génese e razão de ser na prestação que
o Estado lhe disponibilizou.
Como o Tribunal tem sistematicamente sublinhado, também a propósito da taxa em
causa nos presentes autos – cfr., por último, o Acórdão n.º471/2007 −, esta
equivalência jurídica não vem necessariamente acompanhada por uma equivalência
estrita, em termos económicos, entre o valor do serviço prestado e o montante da
quantia devida pela sua percepção.
O legislador goza, nesta matéria, de uma muito ampla liberdade de conformação, à
luz de critérios diversificados, que vão desde o atendimento dos custos reais de
produção, ao grau de utilidade propiciada ao particular, na satisfação da sua
necessidade individual, e ao interesse público na generalização ou,
inversamente, na retracção do acesso ao bem ou serviço em questão. É da
ponderação, em cada tipo de caso, destes e de outros parâmetros, e da valoração
do complexo de interesses conjugadamente presentes nas situações de
obrigatoriedade de taxa – valoração a que não são alheias razões de conveniência
e oportunidade – que resulta a determinação do valor a prestar.
7. O reconhecimento dessa larga margem de liberdade apreciativa do legislador
não importa, todavia, como é bom de ver, que a fixação do montante das taxas
seja refractária a um controlo de constitucionalidade.
Na verdade, o Estado encontra-se constitucionalmente vinculado a uma actividade
prestativa que satisfaça o direito dos cidadãos de acesso à justiça (artigo 20.º
da CRP). Este direito corresponde a um direito fundamental dotado da força
jurídica própria dos direitos, liberdades e garantias, pelo que o princípio da
proporcionalidade, sempre vigente, como princípio básico do Estado de direito,
em qualquer campo de actuação estadual que contenda com interesses dos
particulares, encontra aqui uma qualificada expressão aplicativa (artigo 18.º,
n.º 2, da CRP).
Sendo assim, não impondo a Constituição a gratuitidade da utilização dos
serviços de justiça, impõe seguramente que o montante das custas judiciais não
se transforme num sério factor inibitório do recurso aos tribunais, com
esvaziamento da garantia de tutela jurisdicional constitucionalmente consagrada.
A concretização do preceito constitucional que garante o direito à solução dos
litígios pela via judicial, de acordo apenas com as normas do ordenamento
jurídico, como é timbre de um Estado de direito, claudicaria, sem transposição
efectiva para a prática social, se ao legislador fosse dado fixar montantes de
custas judiciais de tal forma elevados que perdessem toda a conexão razoável com
o custo e o valor do serviço prestado. Pois, desse modo, o “custo da justiça”
não poderia ser suportado, sem sacrifícios inexigíveis, pela generalidade dos
cidadãos, constituindo um obstáculo insuperável ao exercício de um direito que a
Constituição reconhece.
Nesta perspectiva, para satisfação adequada do direito de acesso aos tribunais,
na sua dimensão prestacional, impõe-se, não apenas a remoção, através do sistema
de apoio judiciário, das incapacitações causadas por insuficiência de meios dos
mais carenciados para pagar taxas, ainda que de montante ajustado, mas também a
fixação dessas taxas em valores não excessivamente gravosos, para o universo de
todos aqueles que não estão isentos do seu pagamento ou não beneficiam das
reduções previstas. Ambas as vertentes se encontram cobertas pela proibição de
denegação de justiça por insuficiência de meios económicos (parte final do n.º 1
do artigo 18.º).
Nesta linha de pensamento, escreveu-se no Acórdão n.º 352/91, a propósito da
liberdade do legislador na determinação das custas judiciais:
«Esta liberdade constitutiva do legislador tem, no entanto, um limite – limite
que é o da justiça ser realmente acessível à generalidade dos cidadãos sem terem
de recorrer ao sistema de apoio judiciário.
É que o nosso ordenamento jurídico concebe o sistema de apoio judiciário como
algo que apenas visa garantir o acesso aos tribunais aos economicamente
carenciados, e não como um instrumento ao serviço também das pessoas de médios
rendimentos (salvo, naturalmente, se estas houverem de intervir em acções de
muito elevado valor).
Na fixação das custas judiciais, há-de, pois, o legislador ter sempre na devida
conta o nível geral dos rendimentos dos cidadãos de modo a não tornar
incomportável para o comum das pessoas o custeio de uma demanda judicial, pois
se tal suceder, se o acesso aos tribunais se tornar insuportável ou
especialmente gravoso, violar-se-á o direito em causa».
Pode, pois, concluir-se que, na medida em que conduz inevitavelmente a perdas de
efectividade do direito à justiça, a determinação de montantes de custas
judiciais em valores excessiva e desproporcionadamente elevados deve ser tida
como uma restrição ofensiva desse direito.
8. É à luz destes parâmetros que cumpre agora apreciar se tal se pode ter por
verificado no caso dos autos. Há que ajuizar se os critérios constantes das
normas impugnadas violam o direito de acesso à justiça, para o que se requer a
aferição, pelo princípio da proporcionalidade, do montante das custas judiciais
apuradas, em sua aplicação.
Recorde-se que, tendo a acção o valor de € 3.854.261,23, a autora foi condenada
a custas no montante total de € 253.033,092.
O despacho recorrido entendeu que os valores em causa “se afiguram
desproporcionais e injustificadamente inibidores da utilização dos serviços de
justiça”. Tal terá ficado a dever-se à “ausência de previsão de um limite máximo
ou da possibilidade da intervenção moderadora do juiz na fixação do valor das
taxas devidas pela tramitação ocorrida”.
Como melhor transparece da fórmula decisória, a censura constitucional recaiu
sobre o facto de, ao abrigo das normas contestadas, ser exclusivamente por
atinência ao valor da acção que o montante das custas é calculado, sem um tecto
máximo e sem permissão de uma correcção redutora por iniciativa do tribunal,
“tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo”.
A decisão recorrida reproduz, na parte referente à imputação do juízo de
inconstitucionalidade à ausência destas previsões potencialmente limitativas do
montante das custas, a decisão, por maioria, constante do Acórdão n.º 471/2007,
prolatado por esta Secção do Tribunal Constitucional. E já anteriormente, no
Acórdão n.º 227/07, igualmente da 2.ª Secção, o prescindir a lei da fixação de
um limite máximo e a não atendibilidade, em concreto, da natureza e da
complexidade do processo foram apontadas como razões justificativas de idêntica
decisão de inconstitucionalidade.
Haverá fundamento, no caso dos autos, para uma decisão do mesmo teor?
9. Cumpre notar, antes de mais, que a questão de constitucionalidade aqui em
apreciação tem a ver com o facto de o valor das custas reflectir automática e
ilimitadamente o valor da acção, o que pode conduzir a taxas de elevado
montante, eventualmente desproporcionado em relação ao custo e à utilidade do
serviço. Foi esse o objecto de censura nos dois acórdãos acima mencionados, que
se pronunciaram pela inconstitucionalidade. Esta ficou a dever-se, precisamente,
à impossibilidade de correcção adaptativa às circunstâncias do caso concreto, do
montante assim obtido, por forma a evitar um valor excedente um limite máximo
e/ou sem correspondência na natureza e na complexidade do processo.
Ora, sendo assim, estando em causa o apuramento da proporcionalidade ou não de
um valor quantitativamente determinado, as configurações casuísticas, no plano
da fiscalização concreta da constitucionalidade, contam como elemento de
valoração, sem pôr em cheque a natureza normativa do nosso sistema de controlo.
Daí a admissibilidade, sem contradição, de juízos discordantes sobre o mesmo
critério normativo, dada a sua diferente projecção consequencialista sobre
distintas realidades, do ponto de vista da natureza e do valor do serviço
prestado.
O que queremos dizer é que a potencialidade de um critério gerar valores
desproporcionados de custas, por não acolhimento de factores que os teriam
evitado, só releva quando essa potencialidade, em face das circunstâncias do
caso e do montante concretamente apurado, se tenha concretizado. Ou, dito de
outra forma: a ausência de previsão desses factores correctivos só releva quando
eles, no caso em apreciação, teriam actuado restritivamente, reconduzindo o
valor pecuniário a prestar aos limites da proporcionalidade, que, de outro modo,
resulta violada. Mas já não tem cabimento a invocação dessa falha de previsão
quando, à partida, o montante das custas possa ser considerado não exorbitante e
em correspondência com a natureza e a complexidade do processo. Nessa hipótese,
as variáveis que alegadamente deveriam estar normativizadas abonam a
proporcionalidade do resultado aplicativo do critério em análise, pelo que a sua
não inclusão na previsão legal não pode fundar um juízo em sentido contrário.
Na verdade, estando em causa a aferição da proporcionalidade de um determinado
quantitativo pecuniário, no caso de ele se mostrar como contrapartida adequada
da utilização de um serviço, atentas as características da sua natureza e da sua
concreta execução, com incidência nos custos, não faz sentido concluir que ele
viola a proibição do excesso, com fundamento em que, noutras circunstâncias
aplicativas, seria esse o resultado a que conduziria o critério de cálculo.
Quando a censura constitucional tem como alvo a rigidez e automaticidade do
critério legal, com a consequente falta de flexibilidade adaptativa a
circunstâncias específicas que podem justificar uma redução de taxa, essas
circunstâncias, na fiscalização concreta, têm que ser tidas em consideração.
10. Ora, nesta perspectiva, não pode passar despercebido que a situação sub
judicio difere substancialmente, sob o ponto de vista da natureza do processo e
da complexidade da tramitação, das duas outras sobre que recaíram aqueles
acórdãos, em que foi emitido um juízo de inconstitucionalidade.
Quanto ao Acórdão n.º 227/07, o cálculo de custas nele em apreciação referia-se
a procedimentos cautelares e respectivos recursos, tendo sido apurado um valor
de € 584.403,82, muito superior ao que está em questão nos presentes autos.
No caso do Acórdão n.º 471/07, foi decisiva da pronúncia de
inconstitucionalidade a simplicidade da tramitação, que findou, em 1.ª
instância, no saneador. Como se salienta na respectiva fundamentação:
«Tendo em consideração a linearidade da tramitação da acção acima descrita e a
fase em que a mesma terminou na 1.ª instância, a contagem de € 123.903,43 de
taxas é manifestamente desproporcionada às características do serviço público
concreto prestado, atendendo ao custo de vida em Portugal. Na verdade, este
montante exagerado resulta apenas do elevado valor da acção, sem qualquer
tradução na complexidade do processo, o qual decorreu com uma tramitação
simples, não existindo qualquer correspondência entre os custos dos meios do
Estado envolvidos e o valor total das taxas cobradas».
É patente o contraste com o figurino da acção que motivou o recurso em
apreciação. Esta, iniciada em 1994, comportou uma acção principal e seis
apensos. No seu âmbito, e com uma base instrutória de 45 quesitos, realizaram-se
16 sessões de julgamento em 1.ª instância, com produção de prova pericial e
inspecção ao local, junção de pareceres de professores universitários e recurso
até ao Supremo Tribunal de Justiça. Nos apensos, por sua vez, foram processados
dois procedimentos cautelares de arresto e vários agravos.
Mais detalhadamente, e como resulta do teor do despacho recorrido, a acção de
onde emerge o presente recurso de constitucionalidade implicou a seguinte
tramitação processual:
I- ACÇÃO PRINCIPAL: Base Instrutória com 45 quesitos; dezasseis sessões de
julgamento; inspecção ao local; realização de prova pericial; despacho de
revogação do beneficio de apoio judiciário concedido à Autora; sentença a fls.
2384 a 2397; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa; junção de pareceres de
professores universitários; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça;
II — APENSO A (Arresto intentado pela Autora contra a Ré em 26.5.98): julgamento
em 8.7.98; julgamento na oposição (que decorreu em 2.12.98, 26.1.99, 11.2.99 e
14.1.2000); sentença final (4.2.2000); Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
(23.1.2002);
III — APENSO B (agravo do despacho que revogou o benefício de apoio judiciário):
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.12.2002;
IV- APENSO C (procedimento cautelar de arresto intentado pela Autora contra a Ré
em 25.7.2002): indeferimento liminar (8.8.2002); Acórdão do Tribunal da Relação
de Lisboa ( 12.12.2002); julgamento e sentença (21.5.2003); julgamento em
oposição (19.1.2004); sentença de revogação do arresto (27.2.2004); despacho a
declarar deserto o agravo (31.5.2004); Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
(4.8.2004);
V- APENSO D (agravo interposto pela ré do despacho de fls. 3372 a 3375): Acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa a fls. 392 a 405 (19.1.2006);
VI- APENSO E ( agravo interposto pela ré do despacho de fls. 2531 a 2536 que
decidiu reclamação à conta): Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
(13.10.05);
VII- APENSO F (recurso de agravo interposto pela Autora do despacho que
indeferiu o pedido de reforma da conta de custas elaborada no arresto): Acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa (27.3.2007); Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça (6.11.2007).
Todo o processado, que demandou uma muito laboriosa actividade jurisdicional,
não linear, de vários órgãos judicantes, documentada em 3.498 folhas que se
estendem por 15 volumes e 6 apensos, revela “a dificuldade de apuramento dos
factos materiais e forte litigiosidade que a acompanhou”, como a própria decisão
recorrida reconhece.
Neste contexto, como qualificar o montante tributário fixado?
Ele é, sem dúvida, elevado, em valor absoluto. Mas não pode considerar-se que
seja uma refracção cega do valor da causa. Para o seu atingimento muito
contribuiu a complexidade objectiva das questões suscitadas e a própria conduta
processual das partes, que recorreram sistematicamente aos meios impugnatórios
admissíveis (foram contabilizados, ao todo, doze incidentes).
A complexidade da tramitação efectivamente processada teve uma repercussão
directa no montante das custas apuradas, pelo que não pode sustentar-se que este
se fique a dever exclusivamente ao valor da acção. Dá impressiva conta disso a
decomposição daquele montante global pelas parcelas que o constituem: dos €
173.383,53 que respeitam a taxas, € 9.684,44 correspondem à taxa do incidente de
apoio judiciário, € 19.368,88 à taxa de justiça em cada um de três recursos, €
25.105,22 a taxa de justiça de outro recurso, € 12.552,61 ainda a outra taxa de
recurso, € 45.748,60 a procuradoria com natureza de taxa e, finalmente, €
45.453,04 a título de custas de parte.
Numa valoração contextualizada, atenta aos dados concretos da forma como a conta
de custas se gerou, no caso dos autos, não pode dizer-se, pelo menos com o
carácter de evidência requerido por um controlo da proibição do excesso, que
estejamos perante um montante claramente desproporcionado. Se a prestação
exigida, a título de custas, atingiu valores elevados, pouco comuns, também, em
contrapartida, o serviço fornecido envolveu meios e acarretou necessariamente
custos que ultrapassaram o padrão mais habitual do funcionamento judiciário e do
processamento dos autos. A correspectividade material entre as duas prestações
não se mostra, assim, manifestamente desvirtuada, pelo que não se evidencia que
os limites (flexíveis) de taxação resultantes da estrutura bilateral das taxas
tenham sido desrespeitados.
Não custa conceder que outros critérios de cálculo possam satisfazer melhor, de
forma mais proporcionada e mais próxima da realização do ideal de Justiça não
demasiadamente onerosa, as exigências e os limites postulados pela
bilateralidade de um tributo com a natureza de taxa.
Mas considerações desta índole passam ao lado da valoração ajustada à natureza e
ao objecto da questão de constitucionalidade aqui posta. Na verdade, o que está
em causa é a contenção ou não dentro de limites ainda toleráveis ou admissíveis,
de tal forma que o juízo de não inconstitucionalidade se basta com a não
infracção desses limites, sem que esse juízo possa ser invalidado pela
representação de regimes alternativos mais favoráveis, quanto aos custos da
justiça para os particulares que a ela recorrem.
Desde que não ultrapassados aqueles limites, é da competência do legislador
proceder à ponderação da forma como entende mais adequada a repartição dos
pesados custos de funcionamento do aparelho de administração da justiça, a
fixação da parcela, maior ou menor, em que eles devem ser suportados pelos
sujeitos que dela beneficiam ou levados à conta das despesas do Orçamento do
Estado.
Também não custa admitir, por outro lado, que alterações legislativas
posteriores, designadamente as introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27
de Dezembro, caminharam no sentido de um regime menos oneroso, ao estabelecerem
que nas “causas de valor superior a € 250.00 não é considerado o excesso para
efeito do cálculo do montante da taxa de justiça inicial e subsequente”, apenas
sendo o remanescente considerado na conta a final (artigo 27.º, n.ºs 1 e 2 do
Código das Custas Judiciais, na redacção daquele diploma), possibilitando-se ao
juiz, “de forma fundamentada e atendendo, designadamente, à complexidade da
causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento do remanescente”
(artigo 27.º, n.º 3).
Mas, de uma alteração legislativa que introduz previsões limitativas do montante
de custas não pode inferir-se, sem mais, a inconstitucionalidade das soluções,
anteriormente consagradas, que as ignoravam. Ela representa apenas uma opção
distinta do legislador, no exercício da liberdade conformativa de que dispõe,
sem que tal justifique refracções retroactivas na valoração do regime
anteriormente vigente, cuja conformidade constitucional tem que ser apreciada
pelo seu conteúdo e alcance próprios.
11. Há a concluir, pois, que o critério legal não conduziu a uma taxa que
ultrapasse um limite de admissibilidade, por manifestamente excessiva. A taxa
devida encontra justificação no princípio da cobertura dos custos, pelo menos,
estando em relação de correspondência ainda razoavelmente adequada com a
complexidade da actividade jurisdicional desenvolvida e com o figurino da
tramitação a que deu azo.
Não pode, assim, invocar-se, no caso dos autos, a não fixação de um limite
máximo e o não acolhimento, no critério legal, da natureza e complexidade do
processo, pois nem um nem outro factor teriam aqui operado em sentido redutor do
montante da taxa.
Este respeita, de forma satisfatória, os três sentidos possíveis do princípio da
proporcionalidade, em matéria de custas judiciais, de acordo com a especificação
analítica levada a cabo pelo Acórdão n.º 608/99: o do “equilíbrio entre a
consagração do direito de acesso ao direito e aos tribunais e os custos
inerentes a tal exercício”; o da responsabilização de cada parte pelas custas
“de acordo com a regra da causalidade, da sucumbência ou do proveito retirado da
intervenção jurisdicional”, o do ajustamento dos “quantitativos globais das
custas a determinados critérios relacionados com o valor do processo, com a
respectiva tramitação, com a maior ou menor complexidade da causa e até com os
comportamentos das partes”.
Não se mostrando violado o princípio da proporcionalidade, também não foi
nuclearmente afectado o direito de acesso ao tribunal, tendo até em conta a
natureza do sujeito onerado: uma organização empresarial, necessariamente regida
por regras de economicidade estrita na tomada de decisões e, tipicamente, com
maior facilidade de dispor de meios financeiros significativos, quer por
aplicação de meios próprios, quer, como operação corrente no fluxo da sua
actividade, por recurso ao crédito bancário.
III − Decisão
Pelo exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma resultante dos artigos 13.º, n.º 1,
15.º, n.º 1, alínea o), e 18.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais (na versão
emergente do Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro), conjugada com a tabela
anexa ao CCJ, quando os valores das custas a que a sua aplicação conduziu se
mostram proporcionais, no caso dos autos, à especial complexidade do processo;
b) Julgar procedente o recurso, ordenando a reformulação do despacho
recorrido em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 22 de Junho de 2009
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano (vencido conforme declaração que junto)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por ter entendido que apesar da tramitação da acção aqui em causa
ter esgotado as instâncias admissíveis, com alguns incidentes de diminuta
complexidade, e ter sido julgada em 1ª instância em audiência com 16 sessões, a
contagem de € 250.000,00 de taxas, nos termos do sistema do Código das Custas
Judiciais, na redacção do Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, é
manifestamente desproporcionada às características do serviço público concreto
prestado, atendendo ao custo de vida em Portugal.
Na verdade, este montante exagerado resultou apenas do elevado valor da acção,
sem tradução na complexidade do processo, não existindo qualquer correspondência
entre os custos dos meios do Estado envolvidos e o valor total das taxas
cobradas.
Só a ausência de previsão de um limite máximo ou da possibilidade da intervenção
moderadora do juiz na fixação do valor das taxas devidas pela tramitação
ocorrida permitiu que estas atingissem aquele valor manifestamente
desproporcionado e injustificadamente inibidor da utilização dos serviços
públicos de justiça.
Essa desproporção flagrante e o exagero daquela quantia violou não só o
principio estruturante constitucional da proibição do excesso, como também o
direito de acesso aos tribunais, previsto no artº 20.º, nº 1, do C.R.P., pelo
que entendi que se deveria confirmar o juízo de inconstitucionalidade efectuado
pela decisão recorrida, julgando-se improcedente o recurso interposto pelo
Ministério Público.
João Cura Mariano