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Processo n.º 41/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, na 2.ª Secção, do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – O Ministério Público, junto do 1.º Juízo Criminal do Tribunal de
Família e Menores e de Comarca de Portimão, recorre para o Tribunal
Constitucional do despacho do juiz daquele Tribunal, de 10 de Novembro de 2008,
que recusou a aplicação do art.º 219.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na
redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29/08, no segmento em que veda ao
Ministério Público a possibilidade de recorrer, em prejuízo do arguido, da
decisão judicial que não aplicou a medida de coação de prisão preventiva, por si
requerida, pretextando que a mesma viola o disposto nos artigos 13.º e 219.º,
n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
2 – A questão de constitucionalidade emergiu da seguinte situação:
2.1 – No Proc. 2024/08.0PAPTM, após o primeiro interrogatório do
arguido detido, A., o Ministério Público requereu que lhe fosse aplicada a
medida de coação de prisão preventiva.
O juiz de instrução, após considerar existirem indícios da prática,
pelo arguido, de um crime de “simples” homicídio, tentado, p. e p. pelo artigo
131.º do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo
artigo 86.º, n.º 1, alínea c), com referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea
ax), e 3.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2005, de 23 de Fevereiro, mas não terem “as
medidas de coação finalidade de natureza substantiva, tão pouco de antecipação
da tutela jurídico-penal que, ao caso, possa vir a ser aplicada”, indeferiu o
requerimento do Ministério Público e “nos termos conjugados das disposições dos
artigos 191.º, n.º 1, 192.º, n.º 1, 193.º, n.º 1, 194.º, n.ºs 1 a 3, 196.º, n.º
1, 198.º, n.º 1, e 200.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), todos do CPP decidiu [o]
que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes
medidas de coação:
TIR já prestado;
a) apresentação diária na esquadra da PSP de Portimão;
b) proibição de se ausentar para o estrangeiro;
c) proibição de se ausentar desta cidade de Portimão, excepto se
devidamente autorizado pelo Tribunal; e
d) proibição de contactar por qualquer meio com o ofendido e/ou seus
familiares”, por se lhe afigurarem ser essas medidas proporcionais, necessárias
e suficientes para acautelar a exigência cautelar referida”.
2.2 – Afirmando-se inconformado e alegando, no próprio requerimento
de interposição do recurso, a inconstitucionalidade material da norma resultante
das disposições combinadas dos artigos 219.º, n.ºs 1 a 3, e 399.º, in fine, do
CPP, quando interpretada no sentido de não admitir a recorribilidade da decisão,
por violação dos princípios e normas vertidas nos art.ºs 2.º, 18.º, 20.º, n.º 4,
27.º, n.º 3, 32.º e 219.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa,
o Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação
de Évora.
Na motivação deste recurso, entregue conjuntamente com o
requerimento da sua interposição, o Ministério Público desenvolveu a sua posição
quanto à questão de inconstitucionalidade colocada.
3 – Por despacho de 10 de Novembro de 2008, o tribunal a quo
rejeitou, com base na sua inconstitucionalidade material, a referida norma
extraída dos art.ºs 219.º, n.ºs 1 e 3, e 399.º do CPP, e admitiu o recurso
interposto para a Relação.
Para tanto, abonou-se nas seguintes considerações:
“I.
Recurso interposto pelo Ministério Público sobre o despacho proferido em 1°
interrogatório judicial, que indeferiu a requerida aplicação da medida de
coacção de prisão preventiva, apresentado a fls. 149 e ss.: visto.
Resposta a este recurso apresentada pelo arguido a fls. 193 e ss., via fax,
(originais a fls. 200 e ss): visto.
1. Da admissibilidade ou não do recurso interposto pelo Ministério Público.
O Ministério Público entende, em apertada síntese, que o recurso deve ser
admitido por a norma que se extrai do art. 219°-1 e 3, do CPP, padecer de
inconstitucionalidade.
O arguido propende para a inadmissibilidade do presente recurso.
Cumpre apreciar.
Prescreve o art. 219°-1 e 3, do CPP (na redacção dada pela Lei 48/2007, de
29/08) o seguinte:
«1- Só o arguido e o Ministério Público em benefício do arguido podem interpor
recurso da decisão que aplicar, mantiver ou substituir medidas previstas no
presente título. (...)
3- A decisão que indeferir a aplicação, revogar ou declarar extintas as medidas
previstas no presente título é irrecorrível».
Extraem-se da conjugação destas disposições da lei processual penal dois
comandos limitativos distintos:
Uma primeira limitação subjectiva ao direito de recurso sobre a decisão relativa
a medidas de coacção (quem pode recorrer) e outra, digamos, objectiva ao
exercício desse direito (de que se pode recorrer).
A primeira prende-se com o sujeito processual que pode pedir ao Tribunal
Superior, por via do recurso, a apreciação da bondade da decisão de que se
recorre: o arguido ou o Ministério Público (apenas) em benefício deste.
A segunda refere-se ao tipo de decisão sobre a medida de coacção que se
proferiu: apenas da decisão que indeferiu a aplicação requerida (i), da que
revogou a medida de coacção que já havia sido aplicada (ii) e daquela outra que
a julgou extinta (iii).
Em relação à primeira limitação compreende-se que o direito ao recurso esteja
previsto para o arguido, pois que este será, sempre, a pessoa concreta afectada
pela decisão do Juiz que aplica, mantém ou substitui a medida de coacção.
Em relação ao arguido nada de novo ocorre. De facto, já existia norma que lhe
permitia lançar mão do recurso, cfr. art°s. 219°, 399° e 401°-1, al. b), do CPP,
antes da reforma operada pela Lei 48/2007, de 29/08.
Actualmente, continuam os art°s. 399° e 401°-1, ai. b), do CPP, a manter a mesma
redacção, e é redundante, parece-me, a nova redacção dada ao art. 219°-1, do
CPP, primeira parte.
A lei anterior, todavia, não limitava subjectivamente o direito à interposição
do recurso, cfr. o antigo art., 219°, do CPP, como igualmente não limitava
objectivamente o respectivo exercício. Tudo se resolvia, estamos em crer e salvo
o devido respeito, pela interpretação conjugada dos art. 219°, 399° e 401°-1,
als. a) e b), do CPP.
A lei nova, art. 219°-1, do CPP, agrilhoa em um único sentido a intervenção do
Ministério Público em sede de interposição de recurso: só o pode fazer em
benefício do arguido (para salvaguarda dos interesses deste) e desde que a
decisão de que recorra não caia na previsão do art. 219°-3, do CPP.
Proferida decisão que aplique qualquer medida de coacção dela podem recorrer
apenas o arguido e o Ministério Público em benefício deste.
Idêntica realidade pode, todavia, consubstanciar uma irritação intra sistemática
que emerge da conjugação dos art°s. 194°-2, 219°-1, 399º e 401°-1, al. a), do
CPP.
Vejamos!
Por força da redacção do art. 194°-2, do CPP, o juiz, durante o inquérito, não
pode aplicar medida mais grave do que a requerida pelo Ministério Público.
Indeferida a pretensão do Ministério Público (a aplicação da medida de coacção
X) tal situação fica sem remédio à luz das normas dos art°s. 219°-1 e 3 e 399°,
do CPP.
O arguido, por certo, não terá interesse em recorrer.
E o Ministério Público?
Foi o Ministério Público que impulsionou a aplicação da medida, que a requereu,
e quando o fez por certo que não agiu em benefício do arguido (não o terá feito
para salvaguarda dos interesses deste mas em ordem à defesa de outros
interesses) e, assim sendo, não pode recorrer da decisão que lhe indeferiu o
requerimento?
O problema não se resume a eventual falta de legitimidade formal do Ministério
Público — a decisão do juiz ao indeferir nega, desde logo, uma pretensão do
Ministério Público, cfr. art. 401°- 1, al. a), do CPP — mas vai muito mais além.
É a concepção dos poderes-deveres funcionais atribuídos ao Ministério Público
implícita (ou que decorre da) na conjugação das normas dos art°s. 219°-1 e 3 (o
Ministério Público só pode recorrer em benefício do arguido; a decisão que
indeferir é irrecorrível), 399° (regra geral da recorribilidade) e art. 401°-1,
al. a), (legitimidade do Ministério Público para recorrer de quaisquer
decisões), todos do CPP, que choca, em meu entender, com a Lei Fundamental.
Ao Ministério Público, como decorre do art. 219°-1 e 2, da Constituição da
República Portuguesa, compete, para além do mais, exercer a acção penal
orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
Ora, o exercício da acção penal com tal teleologia não se coaduna com uma
intervenção apenas em função dos interesses de um sujeito processual;
coaduna-se, isso sim, por uma intervenção que tenha na sua base a defesa de
todos «os interesses em jogo», não só os do arguido. Essa mesma teleologia logo
justificou, em sede de lei ordinária, que o Ministério Público dispusesse de
legitimidade para recorrer não só de quaisquer decisões mas também daquelas que,
em seu entender, prejudicassem o arguido, cfr. art. 219°, 399° e 401°-1, al. a),
do CPP, na redacção anterior à da reforma.
Na redacção actual da conjugação das normas dos art°s. 219°-1 e 3 e 399°, do
CPP, fica vedada a possibilidade de recurso ao Ministério Público em face da
decisão que recaiu sobre o seu requerimento para aplicação da concreta medida de
coacção, requerimento esse que teve na sua génese, não os interesses do arguido,
mas outros e diversos interesses que com aqueles não se confundem e que a
Constituição da República Portuguesa prevê como atributos (funções) típicos do
Ministério Público.
Assim, uma vez que por força da conjugação das disposições dos art. 21 9°-1 e 3
e 399°, do CPP, nos termos referidos, resulta a violação:
- do princípio da legalidade das medidas de coacção (estas só podem ser
aplicadas em função de exigências processuais de natureza cautelar), art.
191°-1, do CPP, (i);
- do princípio da igualdade (o Ministério Público não pode recorrer da decisão
que indeferiu a aplicação de uma medida de afastamento requerida por se indiciar
fortemente o crime de violência doméstica e verificar-se perigo de continuação
da actividade criminosa, por exemplo), art. 13°, da Constituição da República
Portuguesa, quando tal princípio constitui «uma determinante heterónoma da
legislação» (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, 4 Edição
Revista, págs. 333 e ss.) (ii);
- da função constitucional do Ministério Público no exercício da acção penal
orientada pelo princípio da legalidade e como defensor da legalidade democrática
(o Ministério Público actua e deve actuar, sempre, à «charge» ou à «decharge» do
arguido, art. 219°-1, da CRP, quando se veda ao Ministério Público a
possibilidade de interpor recurso de decisão que indeferiu o seu requerimento
para aplicação de medida de coacção decido:
a) Declarar inconstitucionais tais normas nesta dimensão interpretativa;
b) Não as aplicar à luz do disposto no art. 204° da Constituição da República
Portuguesa;
c) Repristinar a norma anterior, o art. 219°, do CPP, na redacção antecedente à
da reforma da Lei 48/2007, de 29/08, e, em consequência, proferir despacho sobre
o recurso interposto pelo Ministério Público a esta luz.
*
2. Da admissão.
Por se tratar de decisão recorrível, art°s. 219° e 399°, dispor o recorrente de
legitimidade, art. 401°-1, al. a), ser a interposição tempestiva, art. 411°-1,
al. c), estar o Ministério Público isento do pagamento de taxa de justiça, art.
522°-1, do CPP, e encontrar-se motivado, art. 411°-3, admito o recurso
interposto pelo Ministério Público a fls. 149 e ss., art. 414°-1, o qual tem
subida em separado, art. 406°-2, imediata, art. 407°-2, al. c) e com efeito
devolutivo, art. 408° a contrario, todos do CPP.
Notifique”.
4 – Alegando, no Tribunal Constitucional, o Procurador-Geral Adjunto
concluiu do seguinte jeito a sua argumentação:
«1. A norma do nº 1 do artigo 219º do Código de Processo Penal, no segmento em
que veda ao Ministério Público a possibilidade de recorrer, em prejuízo do
arguido, da decisão judicial que não aplicou a medida de coação de prisão
preventiva, por si requerida, é materialmente inconstitucional, por violação dos
artigos 2°, 13°, 20°, nº 1, 32°, 165°, nº 1, alínea c) e 219° da Constituição.
2. Termos em que não deverá proceder o presente recurso, confirmando-se o juízo
de inconstitucionalidade da decisão recorrida».
5 – O recorrido não contra-alegou.
6 – Vindo o processo a julgamento da Secção, foi decidido, pelo
Acórdão n.º 165/2009, proferido nos autos, “ordenar a notificação do Ministério
Público para se pronunciar, querendo, sobre a questão do eventual não
conhecimento do objecto do recurso pela sua irrecorribilidade para o Tribunal
Constitucional (cf. Ac. n.º 267/91)”.
7 – O Ministério Público não respondeu à questão prévia.
B – Fundamentação
8 – A questão prévia que se suscita nos autos é a de saber se,
proferido pelo juiz de instrução despacho de admissão de um recurso interposto
pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação de uma decisão do mesmo juiz
que aplicou ao arguido medida de coação menos grave do que a por ele proposta,
com o fundamento em alegada inconstitucionalidade material do art.º 219.º, n.º
1, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29/08,
no segmento em que veda ao Ministério Público a possibilidade de recorrer, em
prejuízo do arguido, pode o Tribunal Constitucional conhecer do recurso de
constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea a) do artigo 70.º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão.
Trata-se de uma temática sobre a qual se pronunciou já o Tribunal
Constitucional no seu Acórdão n.º 267/91, publicado no Diário da República II
Série, de 23 de Outubro de 1991, a propósito, então, das normas constantes dos
artigos 371.º, 647.º/1.º e seu § 4.º, do Código de Processo Penal de 1929, e no
qual tomou posição no sentido do voto de vencido do Conselheiro Vital Moreira,
aposto ao Acórdão n.º 92/87, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional,
9.º volume, pp. 625 e segs.
Discreteando sobre ela, assim se discorreu em tal aresto:
«4 — A recorribilidade da decisão.
Esta questão prévia também suscitada pelo Procurador-Geral Adjunto
neste Tribunal, nas suas alegações, vem fundamentada essencialmente no argumento
de que «a decisão recorrida — despacho de admissão de recurso ordinário
proferido pelo tribunal a quo — é uma decisão provisória, que não vincula o
tribunal superior e insusceptível de impugnação autónoma, mediante recurso ou
reclamação, pois as partes só a podem impugnar nas alegações do recurso admitido
por essa decisão (n.º 4 do artigo 687.º do Código de Processo Civil)», não
constituindo assim tal decisão «uma decisão de tribunal» para o efeito de
permitir a abertura do recurso de constitucionalidade, invocando neste sentido
as razões constantes do voto de vencido do Cons. Vital Moreira no Acórdão n.º
92/87 (in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 365, p. 261), que transcreve.
Vejamos.
O parâmetro constitucional acerca desta matéria consta do artigo
280.º, n.º 1, alínea a), preceito que a Lei do Tribunal Constitucional reproduz
com ligeira alteração de redacção, e estabelece que há recurso das «decisões dos
tribunais» que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua
inconstitucionalidade. Este recurso é obrigatório para o Ministério Público
sempre que a norma desaplicada conste de convenção internacional, acto
legislativo ou decreto regulamentar.
Mas, deverá admitir-se recurso de constitucionalidade de todas as
decisões dos tribunais sem distinção ou deverá aceitar-se que a particular
natureza de algumas decisões obsta ao conhecimento do recurso de
constitucionalidade interposto?
Propende o Tribunal, decididamente, para esta segunda alternativa.
Os tribunais, de acordo com o preceituado no artigo 208.º da
Constituição, proferem decisões que devem ser fundamentadas, são obrigatórias
para todas as entidades públicas e privadas, prevalecem sobre as de quaisquer
outras autoridades e têm o seu modo de execução regulado na lei. No exercício da
função jurisdicional que lhes está cometida, aos tribunais cabe resolver um
conflito concreto entre dois sujeitos, pela utilização de critérios previamente
definidos nas normas jurídicas.
Porém, para alcançarem a decisão final de tal conflito, torna-se
indispensável que se vão proferindo decisões interlocutórias e que mais não
visam do que preparar a elaboração da decisão última da questão.
Ora, no caso em apreço, a «decisão» de que se recorre é um despacho
de admissão do recurso ordinário interposto por réu não preso nem caucionado —
situação em que o regime processual penal aplicável não admitia recurso pelo que
o julgador se sentiu na necessidade de, para admitir o recurso, julgar
inconstitucionais as normas que o proibiam.
Estas normas, do Código de Processo Penal de 1929, têm o seguinte
teor:
Artigo 371.º
Do despacho de pronúncia podem recorrer o Ministério Público, a
parte acusadora e os indiciados, depois de presos ou de haverem prestado caução,
e do despacho de não pronúncia podem recorrer o Ministério Público e a parte
acusadora.
Artigo 647.º
Podem recorrer:
1.º ………………………………………………………………
2.º O réu e a parte acusadora das decisões contra eles
proferidas.
§ 4.º O réu não pode recorrer da pronúncia, sem estar preso ou
caucionado, nem do despacho que julgar quebrada a caução, sem ter dado entrada
na cadeia.
A «decisão» recorrida veio afinal a recusar aplicação a uma norma
extraível destes preceitos e aplicável por analogia à situação do réu
pronunciado e obrigado a prestar termo de identidade e residência por tal forma
que só seria admissível recurso do despacho de pronúncia por parte desse réu
depois dele haver cumprido tais obrigações fixadas no referido despacho —
situação que se considerou violadora das garantias de defesa do arguido (artigo
32.º, n.º 1, da CRP).
Nos termos do artigo 687.º, n.º 4, do Código de Processo Civil
(CPC), «a decisão que admita o recurso, fixe a sua espécie ou determine o efeito
que lhe compete não vincula o tribunal superior, e as partes só a podem impugnar
nas suas alegações».
Valem aqui, pertinentemente, as considerações feitas a este
propósito pelo Conselheiro Vital Moreira na declaração de voto que apôs ao
Acórdão n.º 92/87 (in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 365, pp. 261 e
segs.) e que se transcrevem:
Nos termos do direito processual comum (civil e penal), os despachos
de admissão de recurso proferidos pelo tribunal a quo possuem as seguintes
características: (a) não fazem caso julgado; (b) não são susceptíveis de
impugnação autónoma, mediante recurso ou reclamação; (c) não carecem de ser
impugnadas pelas partes; (d) são necessariamente consumidas pela decisão do
tribunal ad quem, o qual, ele sim, decide afinal da admissão do recurso. O
mínimo que se pode dizer de tais despachos é que eles, afinal, não decidem da
admissão dos recursos (pois decidir significa resolver uma questão).
Com efeito, acerca do mesmo tema escreve o Prof. Castro Mendes (in
Recursos, AAFDL, 1980, p. 44): «Há decisões que se destinam necessariamente a
ser substituídas por outras ou nelas integradas, ou pelo menos podem sê-lo se as
partes o solicitarem. A lei então só permite o recurso da decisão substituta ou
absorvente; as primeiras são irrecorríveis, como não definitivas». E, mais
adiante (p. 46), refere este ilustre processualista como dela não cabendo
recurso, «a decisão que admite um recurso, fixa a sua espécie ou determina o seu
efeito».
Tem, assim, de se concluir que o despacho de admissão de recurso não
tem qualquer autonomia, porquanto a decisão final sobre tal matéria cabe sempre
ao tribunal de recurso que, independentemente de qualquer requerimento das
partes, tem o dever de se pronunciar sobre se o recurso deve ou não ser
admitido, em definitivo (artigo 701.º do CPC).
A decisão do juiz recorrido mais não é do que, como certeiramente a
qualifica Vital Moreira (voto de vencido citado) «uma pré-decisão, quando muito
uma decisão provisória, que nunca subsiste por si mesma (...)».
Não sendo estas decisões passíveis de recurso processual comum, será
legítimo e correcto admitir-se que possam ser susceptíveis de recurso de
constitucionalidade, designadamente, como no caso dos autos, de recurso
obrigatório de constitucionalidade?
Os recursos são um pedido de reponderação sobre certa decisão
judicial, apresentado a um órgão judiciariamente superior (Castro Mendes,
ibidem, p. 3) e têm como finalidade impugnar decisões judiciais que, sem a
interposição do recurso, se tornariam definitivas, formando caso julgado.
No caso do recurso de constitucionalidade, podem observar-se as
mesmas natureza e finalidades referidas aos recursos em geral, só que agora
restritas à questão de constitucionalidade. No caso de se tratar de um recurso
obrigatório para o Ministério Público (n.º 3 do artigo 280.º da CRP), a sua
razão de ser é a de obviar a que subsistam quaisquer decisões dos tribunais que
desapliquem normas com fundamento na sua inconstitucionalidade sem que o
Tribunal Constitucional seja chamado a reponderar a questão, uma vez que é o
órgão a quem «[c]compete especificamente administrar a justiça em matérias de
natureza jurídico-constitucional» (artigo 223.º da CRP).
Ora, destinando-se o despacho de admissão recorrido a ser
substituído por outro — este sim, definitivo — e não sendo passível de recurso
comum e não podendo sobre ele formar-se caso julgado, admitir que dele se possa
interpor recurso de constitucionalidade é, afinal, retirar ao tribunal de
recurso a possibilidade de decidir dentro da sua competência sobre a questão da
admissibilidade ou inadmissibilidade do recurso, tornando desde logo definitiva
a questão (a constitucionalidade) quando a decisão em que ela se insere é
meramente provisória, pois ainda não está tomada por forma a que sobre ela se
venha a formar caso julgado.
A decisão que viesse a ser proferida pelo Tribunal Constitucional —
que faz, esta sim, caso julgado e se impõe aos outros tribunais — iria
condicionar por forma radical a decisão do tribunal de recurso que era, afinal,
o tribunal ao qual verdadeiramente competiria definir a questão da
admissibilidade do recurso.
De qualquer modo, a não admissibilidade, neste momento, do recurso
de constitucionalidade em nada prejudicará a finalidade do respectivo recurso.
Com efeito, ou o Tribunal da Relação decide não admitir o recurso e,
então, as normas em causa serão aplicadas pois se modificou o julgamento sobre a
sua conformidade constitucional — o que obviará à interposição de qualquer
recurso obrigatório de constitucionalidade, embora tal decisão pudesse gerar
outro tipo de recurso, ou então, a Relação confirma a decisão recorrida e a
consequente desaplicação das normas e, então, desta decisão definitiva, caberá
recurso de constitucionalidade, a interpor obrigatoriamente pelo Ministério
Público do acórdão da Relação, mesmo que nele a confirmação da decisão de 1.ª
instância não fosse expressa, porquanto, só de tal decisão poderia decorrer — se
sobre ela viesse a formar-se caso julgado — a violação da integridade da ordem
jurídica cuja defesa é uma das razões porque a lei confere ao Ministério Público
legitimidade para o recurso obrigatório de constitucionalidade (cfr. Jorge
Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo II, 2.ª ed., Coimbra, 1988, pp.
376-377).
Entende o Tribunal que o princípio decorrente do artigo 687.º, n.º
4, do CPC — as decisões de admissão de recursos que necessariamente têm de ser
substituídas por outras ou que nelas vêm a ser integradas, são enquanto tais não
definitivas e por isso irrecorríveis — é um princípio também válido em processo
constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LOTC).
Neste sentido — isto é, de que os recursos previstos no n.º 1 do
artigo 280.º da CRP só serão de admitir de decisões definitivas e não meramente
provisórias — decidiu, embora num contexto totalmente diferenciado, o Acórdão
deste Tribunal n.º 151/85 (in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 360
(suplemento), p. 710).
O que significa que é inteiramente procedente a questão prévia
suscitada pelo Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal quanto a
irrecorribilidade da decisão em apreço”.
Esta argumentação, cuja bondade se sufraga, é completamente
transponível para o caso dos autos.
Assim sendo, impõe-se concluir pelo não conhecimento do recurso de
constitucionalidade.
C – Decisão
9 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 8 de Julho de 2009
Benjamim Rodrigues
Mário Torres
Joaquim de Sousa Ribeiro
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos