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Processo nº 136/09
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é
recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente
recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei da Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele
Tribunal de 21 de Janeiro de 2009.
2. Em 2 de Abril de 2009, foi proferida decisão de não conhecimento do objecto
do recurso interposto, com a seguinte fundamentação:
«Face ao teor da resposta ao convite que lhe foi dirigido ao abrigo do nº 6 do
artigo 75º-A da LTC, é de concluir que o recorrente pretende que o Tribunal
Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da norma da alínea a) do nº 2 do
artigo 5º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a
recorribilidade ou não da decisão instrutória se afere pela lei vigente à data
da sua prolação.
Constitui requisito do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do
nº 1 do artigo 70º da LTC a suscitação prévia, durante o processo, da questão de
inconstitucionalidade que o recorrente pretende que o Tribunal aprecie. Preciso
é, ainda, que tal suscitação ocorra de modo processualmente adequado, em termos
do tribunal que proferiu a decisão recorrida estar obrigado a dela conhecer
(artigo 72º, nº 2, da LTC).
Das passagens das peças processuais indicadas em cumprimento da parte final do
nº 2 do artigo 75º-A da LTC e destas peças globalmente consideradas, resulta que
o recorrente não questionou a constitucionalidade da norma cuja apreciação
requer. Na primeira (parte final da resposta ao “Parecer” do Mº Pº), não aborda
sequer a problemática da recorribilidade da decisão instrutória à luz das regras
de aplicação da lei processual penal no tempo; na segunda (ponto A1 da motivação
do recurso para o Tribunal da Relação), limita-se a defender a interpretação do
artigo 5º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal que reputa correcta à
luz da Constituição.
Não podendo dar-se por observado o ónus da suscitação prévia e de forma adequada
da questão de inconstitucionalidade (artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2,
da LTC), cumpre concluir pelo não conhecimento do objecto do recurso interposto,
o que justifica a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC).
3. O recorrente vem agora reclamar para a conferência com os seguintes
fundamentos:
«Com efeito, salvo o devido respeito, o reclamante entende que a norma do n° 2
do art. 72.° minus dixit quam voluit. Não tem sentido, na verdade, exigir-se a
premunição do vício da inconstitucionalidade através do requerimento da “parte”,
uma vez que estas não são, em regra – ai delas – dotadas de poderes de
adivinhação. Por conseguinte não pode exigir-se-lhes que antecipem um erro e,
pior do que isso – como é o caso – um erro grosseiro em matéria que não exige
especiais conhecimentos.
Se iura novit curia e o Tribunal a quo procedeu à aplicação de uma norma que
constitui, ao cabo e ao resto, o fundamento da sua decisão, o processo
encontra-se inquinado e, por conseguinte, não deve o TC deixar de conhecer do
vício. Face ao exposto só ante uma interpretação inadmissivelmente redutora do
disposto no n° 2 do já assinalado art. 72.° – e, por conseguinte, salvo o devido
respeito, insufragável – poderia acolher-se a interpretação a que foi feito
apelo na referida decisão sumária.
Estamos, ao cabo e ao resto, no âmbito das “decisões-surpresa”, pois nem do mais
suspicaz espírito é legítimo exigir encontrar-se num tal estado de tensão que o
leve a “tapar todas as saídas” que podem ser descobertas pelas instâncias, para
mais quando as mesmas, face à intensidade da sua irritude, não são, à partida,
razoavelmente excogitáveis.
O que é o caso.
Como tal e não obliterando as considerações bordadas no anterior requerimento
apresentado pelo ora requerente a inconstitucionalidade foi suscitada logo que
passível de sê-lo, isto é, de “modo processualmente adequado”. Ademais, como
também se refere na parte final do requerimento de interposição do recurso, e
agora se recalcitra a título subsidiário, a questão da inconstitucionalidade
normativa foi igualmente suscitada e de modo processualmente adequado não só na
parte final da resposta ao “Parecer” do M° P° junto do Tribunal da Relação, como
no ponto A1, fs. 1 da motivação recursória».
4. Notificado, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal
respondeu-lhe nos termos seguintes:
«1º
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º
Na verdade a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da decisão
reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do recurso, em
consequência do incumprimento dos ónus que incidiam sobre o recorrente».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A decisão sumária conclui pelo não conhecimento do objecto do recurso interposto
com fundamento na não suscitação prévia e de forma adequada da questão de
inconstitucionalidade (artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da LTC). O
reclamante sustenta, por um lado, que questionou a constitucionalidade da norma
de modo processualmente adequado nas passagens das peças processuais já
anteriormente indicadas; e, por outro, invoca que se trata de decisão-surpresa,
não lhe sendo exigível a “premunição do vício da inconstitucionalidade”.
A alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, ao abrigo da qual o presente recurso
foi interposto, estabelece que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das
decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido
suscitada durante o processo, ou seja, “a tempo de o tribunal recorrido poder
decidir essa questão” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 155/95, Diário da
República, II Série, de 20 de Junho de 1995).
Nos presentes autos e contrariamente ao defendido pelo reclamante, ao Tribunal
da Relação de Coimbra não foi posta, de modo processualmente adequado, em termos
de este estar obrigado a dela conhecer, qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa relativamente ao artigo 5º, nº 2, alínea a), do
Código de Processo Penal. Reiterando a conclusão constante da decisão reclamada
é de afirmar que a problemática da recorribilidade da decisão instrutória à luz
das regras de aplicação da lei processual penal no tempo não é sequer abordada
na parte final da resposta ao “Parecer” do Ministério Público; e que o
recorrente se limita a defender a interpretação do artigo 5º, nº 2, alínea a),
do Código de Processo Penal que reputa correcta à luz da Constituição, no ponto
A1 da motivação do recurso para o Tribunal da Relação. Mais precisamente, o
recorrente limita-se a demonstrar, suportado no artigo 32º, nºs 2 e 5, da
Constituição, que a aplicação da lei processual nova acarretaria um agravamento
sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma
limitação do seu direito de defesa.
Não tendo questionado previamente e de forma adequada a constitucionalidade da
norma aplicada, como ratio decidendi, pelo tribunal recorrido, importa verificar
se o recorrente estava dispensado do ónus de suscitar a questão de
inconstitucionalidade antes da prolação do acórdão do Tribunal da Relação de
Coimbra.
Este Tribunal tem vindo a entender, num plano conformador da sua jurisprudência
genérica sobre o requisito da suscitação prévia, que naqueles casos anómalos em
que o recorrente não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão
de constitucionalidade durante o processo, isto é, antes de esgotado o poder
jurisdicional do tribunal a quo sobre a matéria a decidir, ainda assim existirá
o direito ao recurso de constitucionalidade (Acórdão nº 61/92, Diário da
República, II Série, de 18 de Agosto de 1992). E tem vindo a entender “que uma
das situações em que o interessado não dispõe de oportunidade processual para
suscitar a questão da constitucionalidade antes de esgotado o poder
jurisdicional é precisamente a daqueles casos em que é confrontado com uma
situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida,
de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a
antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da
prolação dessa decisão” (Acórdão nº 426/2002, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, a interpretação que o tribunal recorrido fez do artigo 5º, nº 2, alínea a),
do Código de Processo Penal não pode ser qualificada de imprevista ou
inesperada.
Face à sucessão de leis, entretanto verificada, e ao teor do artigo 5º, nº 2,
alínea a), daquele Código, o recorrente concluiu que a aplicação da lei
processual nova acarretaria um agravamento sensível e ainda evitável da situação
processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa,
suportando-se no artigo 32º, nºs 5 e 2, da Constituição, o que é significativo
de que se lhe pôs um problema de constitucionalidade e de que, portanto, era
afinal previsível uma interpretação que conduzisse à irrecorribilidade da
decisão instrutória na parte em que apreciou nulidades.
Por outro lado e para além de o recorrente ter intitulado o ponto A1 da
motivação do recurso para o Tribunal da Relação “Da admissibilidade do presente
recurso”, deve notar-se que, em processo penal, vale a regra da aplicação
imediata da lei (artigo 5º, nº 1, do Código) e que o artigo 310º, nº 1, do
Código, na redacção entretanto introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto,
passou a dispor que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos
constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível, mesmo na parte em
que apreciar nulidades. Ou seja, o Tribunal da Relação confrontar-se-ia sempre
com a questão de saber se da aplicação desta norma resultaria um agravamento
sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma
limitação do seu direito de defesa. Questão à qual o tribunal recorrido
respondeu negativamente, por ter entendido que a lei processual penal nova já
estava em vigor quando foi proferido o despacho de pronúncia.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 6 de Maio de 2009
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão